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HORROR
NOIRE
“Nossos nomes serão escritos
em milhares de paredes.
Venha comigo e torne-se imortal.”
CANDYMAN
ROBIN R.
MEANS COLEMAN
HORROR
NOIRE
SUMÁRIO
ASHLEE
BLACKWELL
Como chegamos aqui?
PRÓLOGO
Em busca do sentimento de equilíbrio
PREFÁCIO
A promessa revelatória do cinema de gênero
INTRODUÇÃO
Estudando negros e filmes de terror
PRÉ-1930
O nascimento do bicho-papão negro no imaginário
1930
Febre na selva: um romance de horror
1940
Bandidos aterrorizantes e miseráveis menestréis
1950, 1960
Invisibilidade negra, ciência branca e uma noite com Ben
1970
Grite, branquelo, grite: retribuição, mulheres duronas e carnalidade
1980
Nós sempre morremos primeiro: invisibilidade, segregação racial
econômica e o sacrifício voluntário
1990
Estamos de volta! A vingança e o terreno urbano
CONCLUSÃO
Capturando alguns Zzzzzs: os negroz e o terror no século XXI
NOTAS
CINEMATECA
BIBLIOGRAFIA
AGRADECIMENTOS
HORROR
NOIRE
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
ASHLEE
BLACKWELL
COMO CHEGAMOS AQUI?
Era uma noite insistentemente gelada, e, geralmente, eu
não estaria até tão tarde na rua numa terça-feira de
fevereiro. A rua principal, muitas vezes cheia, estava um
tanto deserta, me deixando ainda mais ansiosa para que
o meu ônibus chegasse. Meu plano, além de me manter
alerta e aquecida, era guardar as imagens da estreia
fenomenal de Corra! de Jordan Peele frescas em minha
mente. Eu morava do outro lado da cidade e precisava
anotar imediatamente minhas ideias em uma página
digital. Naquela época, eu já havia passado alguns anos
em um estudo on-line sobre terror que foi tão único e
respeitado que acabei sendo convidada para aquela pré-
estreia. Eu tinha esperanças de que Corra! pudesse se
tornar aquele filme de terror mainstream dirigido por um
artista negro e que seria abraçado pela estratosfera
autoral. E o filme definitivamente alcançou isso.
O aspecto mais tocante de Corra!, para mim, não
foram as várias camadas de racismo institucionalizado,
supremacia branca e subtextos de políticas raciais, mas a
personificação interna dessas questões maiores
enclausuradas na psique de Chris (Daniel Kaluuya). Rose
(Allison Williams) não apenas predou um homem negro
que estava vivendo sua vida: ela atacou a fragilidade da
perda de Chris. A perda da estabilidade familiar (pai
ausente, mãe morta em um acidente trágico) e o desejo
de uma comunidade (os reflexos da vida negra em sua
fotografia, sua confiança inabalável em Rod, interpretado
por Lil Rel Howery). É a perseverança de Chris, apesar
dessas adversidades, junto de seu olhar talentoso, que
fazem dele a presa ideal para que Rose o transporte ao
que parece ser outra dimensão, mas que na verdade não
é. Porque uma vez que pessoas negras saem da
segurança de suas casas, famílias e comunidades e vão
para um mundo repleto de microagressões raciais e
comportamentos discriminatórios, há uma verdadeira e
consciente angústia em relação à perda de identidade e
extinção. Essa angústia foi incorporada em nosso DNA por
meio de traumas geracionais.
Em minha resenha de Corra!, disponível no site
Graveyard Shift Sisters, eu descrevo Chris como uma
figura fragmentada. Foi uma revelação em meu próprio
trabalho como uma escritora e fã de terror, mulher e
negra, porque eu também me sentia fragmentada em
um ambiente onde poucos se pareciam comigo. Estive
desprotegida e era verbalmente insegura em lugares de
encontro de terror por ser a única. Minha presença era
claramente indesejada, e Corra! se utiliza do terror para
demonstrar esses sentimentos tão tangíveis que várias
pessoas não brancas sentem em espaços que sugerem
que suas cores e culturas sejam educadamente
suavizadas no melhor dos casos, e invisibilizadas nos
piores.
Pensamentos do tipo já estavam na minha cabeça,
como sem*ntes, quando Corra! chegou aos cinemas. O
tipo de pensamento que, na época, eu não sabia como
expressar de forma exata ao meu novo amigo Phil Nobile
Jr. Ele era apenas um cara legal que conheci em uma
convenção de terror dois verões atrás e que eu via às
vezes no Twitter, até que ele me convidou para escrever
para o Birth.Movies. Death, um site famoso. Ele não
apenas surgiu na minha caixa de entrada do e-mail com
um pedido vago e genérico de resenha. Ele fez a
proposta sabendo que eu daria mais importância para
um filme de terror escrito e dirigido por um homem negro
e estrelado por negros, e para uma história com um
fundo definitivamente afro-estadunidense. O que eu
gosto no Phil é esse cuidado de tirar um tempo para
entender quais tópicos particulares compelem alguém a
usar seus talentos para ir mais a fundo. A fundação de
nosso relacionamento, como colegas de trabalho, nos fez
sentar juntos para um almoço em determinado dia,
sabendo que Corra! era o nascer do sol no horizonte de
um movimento.
A pergunta “Como chegamos aqui?” foi a transição
perfeita na preparação de um argumento para contar a
história e expressar teorias críticas em torno do terror
negro. E começou com Horror Noire, uma monografia de
mais de dez anos da dra. Robin R. Means Coleman. A dra.
Coleman é uma nativa da Pensilvânia, de Pittsburgh, que
dividia o tempo com sua família em drive-ins,
testemunhando as mais modernas novidades em relação
a criaturas e deleites fantasmagóricos. Uma vez que seu
lugar de origem foi o lar de alguns dos trabalhos mais
celebrados do cineasta George A. Romero, como A noite
dos mortos-vivos (1968) e Despertar dos mortos (1978) e
com as locações acessíveis, Robin pôde criar o que ela
descreveu como uma relação puramente “especial” com
o gênero. Essas influências indubitavelmente a fizeram
canalizar a energia dessas experiências em sua pesquisa
investigativa acerca da experiência negra no terror com
tanta riqueza de detalhes, que hoje este é o trabalho
mais seminal sobre o tópico, ainda não igualado. A dra.
Coleman acendeu em mim o tipo de chama com a qual
eu havia apenas sonhado enquanto era uma estudante
universitária. Foi uma honra usar meu conhecimento
adquirido para introduzir o trabalho de Robin a outras
pessoas. Mas, enquanto eu produzia alguns dos meus
primeiros escritos on-line de maneira intensa, não me dei
conta do quanto a minha pesquisa e a entrevista com a
dra. Coleman poderiam impressionar Phil e suas
sensibilidades como fã de terror.
Já estabelecido como profissional versátil e
desenvolvedor de produções cinematográficas e
televisivas na Center City Film & Video, na Stage 3
Productions e em outras companhias mais antigas na
Filadélfia, Pensilvânia, ele se utilizou de sua longevidade
e da confiança de seus superiores para pensar fora da
caixa em relação aos programas que eles estavam
desenvolvendo. Com seu entusiasmo em relação a
Corra!, minha proximidade imediata e igual fervor, ele
apresentou uma ideia que era insensata demais para
deixar passar: contar a história do terror negro na forma
de documentário. Corra! já tinha atenção mundial, mas
era importante, para manter a efervescência dessa
atenção, dar reconhecimento à história escondida que
havia levado a esse avanço na cultura pop.
Eu me coloquei à disposição para reuniões e
contribuições para colocar esse projeto em ação. Robin
estava entusiasmada com a ideia de transformar seu
livro em uma jornada multimídia e de se tornar uma
produtora executiva. Foram marcadas reuniões com
algumas produtoras em Los Angeles, onde Phil e eu nos
encarregamos de enfatizar a importância dessa história a
ser contada e o impacto que o terror teve na audiência
negra por décadas. Em uma tarde ensolarada em Santa
Mônica, eu olhei para Phil e propus a Shudder como o
meio de distribuição. Ele respondeu de maneira casual
que levaria a proposta em consideração.
Eu conhecia a Shudder como um serviço de streaming
com uma vasta e variada biblioteca
,no
Brooklyn é tratado como um filme negro de terror. É
válido lembrar, então, aquilo que o estudioso de cinema
Ed Guerrero escreve em Framing Blackness: “nenhum
filme hollywoodiano de imagem negra é fruto da
inspiração ou esforço de um indivíduo, mas um esforço
colaborativo no qual estética, economia e política
compartilham (às vezes de forma antagônica)
influências”.33
Juntos, filmes de terror “com negros” e “filmes
negros” de terror oferecem uma oportunidade
extraordinária de se examinar como raça, identidades e
relações raciais são construídas e representadas. Talvez o
mais interessante para os dois tipos seja quando e de
que maneira esses filmes posicionam de forma variada
os negros como a coisa que horroriza ou como a vítima
que é horrorizada. A narrativa única do gênero de terror,
assim como sua estética e suas qualidades comerciais,
providencia a noção de que “o gênero, mais do que
nunca, se mostra ‘útil’ para debater os dilemas da
diferença”.34 Certamente, o terror sempre prestou
atenção aos problemas sociais de forma provocativa. No
entanto, este momento da sociopolítica estadunidense —
nas interseções da globalização de mídia, formação
identitária, performance e circulação, entendimento de
raça (negritude em particular e a noção de uma era pós-
racial), além do acesso a (e o uso de) novas tecnologias
— é um momento ideal para mergulhar nesse fenômeno
cinematográfico, criador de raças e ideologias.
FLUXO EPISTEMOLÓGICO
Horror Noire é guiado por várias conjecturas básicas. A
primeira delas é que o estudo de raça continua a ser
importante. Em seu livro Darkwater: Voices from Within
the Veil (1920), W.E.B. Du Bois nota que, ao focar no
assunto de raça nos Estados Unidos, ele se encontra
mais uma vez escrevendo (tristemente) acerca de um
tema “sobre o qual grandes almas já disseram grandes
palavras”.35 O tema da raça não perde o interesse para
Dubois pelas mesmas razões que o impeliram a escrever
sobre o assunto pela primeira vez — o problema sempre
presente da divisão entre cores. O “estranho significado
de ser negro” no início do século XX, quando Dubois
escrevia, nos seguiu até o século XXI. O “estranho
significado” de ser negro neste milênio continua a se
referir, em partes, ao “problema da divisão entre cores”
(ao contrário das proclamações recentes a respeito de
uma sociedade pós-racial). Trata-se de um questão ainda
exacerbada pelo “sentido de sempre olhar para si
mesmo por meio dos olhos de outros, de medir a própria
alma pela fita métrica de um mundo que o olha com
divertido desdém e pena”.36 Para o historiador de cinema
Thomas Cripps, os filmes de Hollywood, “desde o início”,
tiveram um papel vital em aguçar a distinção da linha de
cor, enquanto trabalhavam de maneira efetiva para
espalhar as crenças raciais e as angústias da
sociedade.37 Este livro também leva em conta um
número de “-ismos”. Ele interroga as consequências do
racismo, machismo, classismo, separatismo,
heterossexismo, noções de masculino e masculinidade,
assim como de feminino e feminilidade. As notórias
estudiosas feministas Patricia Hill Collins e bell hooks
exigem que entremos em sintonia com as intersecções e
interconexões entre discursos dominantes sobre raça,
classe, gênero e sexualidades. Assim sendo, este é um
projeto de viés negro/feminista no qual os negros são
identificados como sujeitos, e não apenas como objetos
(o que também é o caso em muitos destes filmes); a
realidade histórica da negritude de acordo com os filmes
é definida e exposta; e a história do filme negro de terror
é contada de um vantajoso ponto de empoderamento e
com o objetivo de elevar a consciência.38
Este livro é também uma extensão do ensaio “Her
Body, Himself: Gender in the Slasher Film”,39 de Clover, e
da obra de Pinedo, que, em Recreational Terror: Women
and the Pleasures of Horror Film Viewing,40 argumenta
que há mais nos filmes de terror do que misoginia,
violência e olhares voyeurísticos. Embora esses e outros
casos problemáticos de “-ismos” sejam encontrados nos
filmes, este livro argumenta que também existem
oportunidades — ainda que não haja muito esforço —
dentro dos filmes para perturbar ou eviscerar nossas
visões dominantes e presunçosas acerca do lugar de
cada um no mundo. Questões perturbadoras de mácula,
escuridão e bufonaria não são as únicas intenções deste
livro. Em vez disso, o terror também tem sido um meio
capaz de tomar todos os tópicos de empoderamento e
revolução para reescrever os lugares do heroísmo e da
maldade. “Embora os paralelos diretos entre as forças
sociais e a cultura popular sejam arriscados, na melhor
das hipóteses”, estão presentes aqui dois entendimentos
distintos a respeito do funcionamento da participação
negra nos filmes de terror.41 Na primeira instância, os
negros têm sido mostrados como deficientes — infantis,
contaminosos, situados nas esferas mais baixas da
escala socioeconômica, servindo de metáfora e como
catalizadores do mal, e demonizados, ainda que nem
sempre tenham sido escalados, propriamente, no papel
do diabo. No segundo momento, este livro trabalha para
revelar como o gênero do terror tem o potencial de
desmitificar representações onerosas dos afro-
estadunidenses, que são calcadas em, e derivadas de,
um tipo de “menestrel do fim do século”.42 Ao contrário,
a negritude pode ser tão madura, temente a Deus e
resistente ao mal, inteira e completa, sábia e antiga,
totalmente engajada contra o mal, e estar presente no
centro ou nas cercanias das edificações de bondade.
UM SÉCULO DE HORROR NEGRO
O capítulo 1, “O nascimento do bicho-papão negro:
pré-1930”, começa com os filmes mudos e os curtas
“antropológicos” como Native Woman Washing a Negro
Baby in Nassau, de 1895, para situar como os negros
eram representados e a negritude era percebida nos
primeiros anos do cinema. Este capítulo descreve de que
maneira filmes iniciais (usando a pintura facial
blackface), como A nigg*r in the Woodpile, de 1904,
eram apresentados como curtas humorísticos para a
população não negra, mas também podiam ser
interpretados como horror por causa de suas
representações de ataques violentos e criminosos contra
as comunidades negras. Esses filmes não apenas
refletem as sensibilidades do tempo, mas também
apresentam lições devastadoras acerca da hierarquia
racial e supremacia branca na virada do século XX. O
capítulo também examina o uso de convenções do horror
por parte de inovadores do cinema como George Méliès,
um cineasta e ilusionista que apresentou um dos
primeiros casos de filmes de terror “com negros”, e D.W.
Griffith, um diretor de cinema que ofereceu um dos mais
duradouros e pérfidos entendimentos dos negros como,
literalmente, bêtes noires, ou feras negras. Essa era do
cinema também é notável por sua contribuição seminal à
mídia do entretenimento pelos cineastas negros
pioneiros do país, os quais buscavam desafiar as
miríades de discursos danosos que igualavam a
negritude à maldade.
Esse capítulo revela que cineastas negros como John
W. Noble e Oscar Micheaux, por meio de Deus e a
humanidade (1918) e Nos limites dos portões (1920),
respectivamente, trabalharam para combater as imagens
racistas ao apresentarem negros nas telas como figuras
desenvolvidas e complexas.
O capítulo 2, “Febre da selva — um romance de
horror: os anos 1930”, revela a fascinação do terror por
figuras de primatas predadores, assim como sua
tendência narrativa problemática de identificar negros e
macacos como inseparáveis na escala evolutiva. Negros
e primatas nesses filmes de terror “com negros” são
ligados, como alguns já observaram em relação à
representação de King Kong (1933). Também, durante
esse período, eles estão explicitamente (de forma literal
e figurativa) unidos pela biologia — quer dizer, negros e
primatas são apresentados procriando (bestialidade),
produzindo, dessa maneira, a cria de negros/macacos
que são indistinguíveis em sua primitividade. O capítulo
,então se dirige para a ilha de Hispaniola, e para o Haiti. O
país viu trabalhadores negros escravizados trazerem
práticas culturais que eram vistas como estrangeiras na
melhor das hipóteses, e deficitárias na pior delas, pelos
colonizadores franceses, espanhóis, norte-americanos e
britânicos. Práticas e religiosidade de matriz africanas
foram exotizadas de forma imagética e distorcidas
durante essa década em filmes seminais como Zumbi
branco (1932).
No terceiro capítulo, “Bandidos aterrorizantes e
miseráveis menestréis: os anos 1940”, eu examino a
transição que os filmes de terror fazem ao exibir os
negros como símbolos perigosamente mortais do mal
(por exemplo, os malignos praticantes de vodu) para
mostrá-los como um povo digno de ser alvo de risadas e
ridicularizações. Explorando a presença e o uso de
negros como alívio cômico no terror, o capítulo foca nas
contribuições de atores como Willie “Sleep ’n’ Eat” Best e
Mantan Moreland e suas performances influenciadas
pelos shows de menestréis (por exemplo, O rei dos
zumbis [1941]). Em seguida, o capítulo se atenta à
qualidade crescente e poderosa dos “filmes negros” de
terror. Esses filmes revelam uma confiança em contos
moralizantes que definem a imoralidade como uma porta
ao mal sobrenatural. Os filmes de Spencer Williams (O
sangue de Jesus [1941]), por exemplo, são usados para
ilustrar como o monstruoso é definido quando criadores
(conscientes de raça) estão no controle.
O capítulo 4, “Invisibilidade negra, ciência branca e
uma noite com Ben: os anos 1950-1960”, conta a história
de como Hollywood mudou o foco de sua atenção dos
males sobrenaturais para os males tecnológicos. Tem
início a Era Atômica e, com ela, surgem temas
assustadores que dão conta de como a ciência e a
tecnologia se perdem quando a experimentação e a
descoberta não são supervisionadas. Uma vez que os
norte-americanos achavam que os laboratórios eram o
berço das coisas mais terríveis (como a bomba de fusão),
Hollywood considerou que esses espaços de realizações
intelectuais e inventivas estavam fora do alcance dos
negros (isto é, na imaginação da mídia, os negros não
poderiam ser eruditos analíticos). Como resultado, os
negros foram omitidos do gênero ou relegados aos
papéis coadjuvantes de lanches para insetos mutantes.
Monster from Green Hell (1957) é a epítome desse
modismo. Nesse capítulo também detalho a grande
significância cultural do clássico cult A noite dos mortos-
vivos (1968), do diretor George Romero, um filme que
falou direta e abertamente sobre os problemas sociais e
o clima racial dos Estados Unidos nos anos 1960.
Os negros voltam aos filmes de terror querendo
vingança (trocadilho intencional), conforme detalhado no
capítulo 5, “Grite, branquelo, grite — retribuição,
mulheres duronas e carnalidade: os anos 1970”. Nele, eu
aponto o retorno dos negros para o terror, tanto nos
“filmes negros” de terror quanto nos filmes de terror
“com negros”, por meio de um fluxo de filmes oferecidos,
sem nenhuma surpresa, durante a ascensão do
movimento Black Power. Os dois tipos de filmes foram
profundamente influenciados por esses tempos de
nacionalismo negro, bem como pela duradoura e gráfica
“guerra televisionada” do Vietnã e a violência nacional
(assassinatos e revoltas). Nesse capítulo, eu detalho
filmes que são notáveis por suas ideologias contrárias à
assimilação, temas de revolução e vingança, e
“resistência” heroica, assim como mulheres negras
resilientes que derrotam o monstro e permanecem vivas,
prontas para vencer outro dia. Eu também observo que o
vodu é retomado nesses filmes como uma arma
poderosa contra o racismo (Os gritos de Blácula [1973] e
A vingança dos mortos [1974]). Os filmes de terror da
década de 1970 também não escapam da rotulação
“blaxploitation” — a predominância de filmes financeira e
culturalmente exploradores que exibiam a negritude
durante aquela década. Aqui, filmes da era blaxploitation
frequentemente empregavam a noção de
empoderamento negro por meio da revolução violenta
(Bem-vindo de volta, irmão Charles [1975]), enquanto
apresentavam simultaneamente narrativas contra os
direitos humanos que eram alternadamente
heterossexistas e hom*ofóbicas, hiper-masculinas e
misóginas. Também é possível notar no capítulo que,
embora houvesse muitos filmes de terror contendo
negritude, essas produções foram derivadas de clássicos
— Blácula (1972), Blackenstein (1973), e Monstro sem
alma (1976), todos tomavam emprestado dos filmes de
Drácula, Frankenstein e O médico e o monstro.
O capítulo 6, “Nós sempre morremos primeiro —
invisibilidade, segregação racial econômica e o sacrifício
voluntário: os anos 1980”, revela um declínio dos temas
cinematográficos inspirados pelo movimento Black Power
que eram comuns nos anos 1970. Na década de 1980,
numa reversão notável, os negros iniciam uma relação
de apoio com brancos (monstruosos), na qual exibem um
sistema de lealdade e confiança que geralmente é
desproporcional e unilateral. Notavelmente, essa
lealdade é medida pelo sacrifício extremo do negro —
que entrega a própria vida (por exemplo, O iluminado
[1980]). Essa tendência de representação do
autossacrifício negro e devoção aos brancos aparece de
forma mais proeminente nos filmes de terror “com
negros”. Ou seja, a negritude é mais valiosa quando se
submete aos sistemas de valores e ideologias de uma
(estereotipicamente monolítica) branquitude. Nesse
capítulo, eu também detalho como a década de 1980
gentrifica e segrega sua branquitude — conduzindo os
monstros brancos e presas para os subúrbios, lugares
considerados inacessíveis para os negros. Esses lugares
incluem paisagens rurais ou suburbanas como a Elm
Street, Haddonville, Illinois e o Acampamento Crystal
Lake, representados em A hora do pesadelo (1984),
Halloween: a noite do terror (1978) e Sexta-feira 13
(1980), respectivamente. Finalmente, nesse capítulo, eu
aponto o retorno do “curta” de terror com Michael
Jackson (Thriller [1983]).
O capítulo 7, “Estamos de volta! A vingança e o
terreno urbano: os anos 1990”, saúda o retorno dos
“filmes negros” de terror, definidos pela reintrodução da
subjetividade negra autônoma e o reconhecimento de
personagens resilientes e empoderados — que
representam os novos filmes raciais. Esse capítulo
descreve como a negritude é, mais uma vez, exibida
como um todo completo, diverso e complexo, e,
portanto, vista em situações e papéis de terror que foram
amplamente elusivos aos negros ao longo das décadas. A
mais notável entre essas produções é Def by Temptation
(1990), que lembra as histórias morais de Spencer
Williams nos anos 1940. Os filmes negros de terror da
década de 1990 também ofereceram uma inversão única
dos papéis de maioria/ minoria racial. Se os brancos
eram sequer apresentados, a eles eram destinados os
papéis de coadjuvantes ou alívios cômicos
incompetentes. Durante os anos 1990, particularmente
em “filmes negros” de terror, a branquitude se tornou o
símbolo deficitário. Nesses filmes, há uma
autoconsciência narrativa que deixa evidente para o
público que a perturbação e a inversão dos tipos são
propositais — parte vingança, parte reparação forçada.
Isso fica mais óbvio no filme Contos macabros (1995), do
diretor Rusty Cundieff, no qual ele apresenta histórias
morais que dão conta da preservação e salvação do
“gueto” — enclaves urbanos negros. No fim das contas,
essa era exibe um período no qual a sobrevivência de
personagens negros e/ou o seu desaparecimento não
cresce nem diminui de acordo com a vontade e os
favores de não negros. Os filmes dessa época também
apresentam as batalhas entre o bem e o mal
acontecendo dentro dos confins dos centros urbanos
predominantemente negros e da classe baixa
trabalhadora. O interior das cidades é tão assustador nos
anos de 1990 que entidades estranhas de todos os tipos,
como o Predador em O predador 2: a caçada continua
(1990) e as crianças de Colheita maldita 3:
,a colheita
urbana (1995), decidem fazer uma visita aos centros
urbanos.
Eu termino o livro com “Capturando alguns Zzzzzs —
os negroz e o terror no século XXI”. Aqui eu apresento
uma análise focando amplamente em “filmes negros” de
terror que são inspirados pela cultura hip-hop. Esse
capítulo detalha a (potencialmente) problemática
exaltação da blaxploitation em filmes de cineastas
negros, como Bones: o anjo das trevas (2001), dirigido
por Ernest Dickerson e estrelado pelo rapper e ator
Snoop Dogg. Esses “filmes negros” de terror do novo
milênio continuam a apresentar uma aliança espacial
com o gueto como na década de 1990. Contudo, nos
anos 2000, uma explicação racional para tal foco
geográfico é a credibilidade histórica e estética que
lugares do tipo prometem. Filmes que têm a geração hip-
hop como alvo prevalecem de forma quantitativa nesse
período (por exemplo, Bloodz vs. Wolvez [2006]) e são,
de forma bem literal, embalados por batidas do hip-hop
(Now Eat [2000]).
Não há falta de “filmes negros” de terror nesse
período, e alguns deles evidenciam grande imaginação e
criatividade, enquanto outros são banais graças à
proliferação de filmes underground de baixo orçamento
que miram no grande mercado em crescimento direto-
para-DVD (como Dream House [2006]). As possibilidades
de liberdade do meio comercial estabelecido e as
possibilidades alternativas de distribuição são
consideradas. Eu identifico empresas de produção de
filmes como a Maverick Entertainment como realizadoras
independentes e inovadoras da indústria, que estão
fazendo e distribuindo filmes negros de terror de
qualidade. Esse capítulo também apresenta uma
discussão final provocativa sobre a linha que entremeia
os capítulos anteriores, dando proeminência aos pontos
que trabalham para responder às difíceis perguntas: O
que o terror significa para a negritude? E o que a
negritude significa para o terror?
O filme de terror é fascinante, ainda que apenas pelo
fato de se vangloriar por chegar de fininho perto do tabu,
ao mesmo tempo que confunde nossas noções de bem e
mal, monstruoso e divino, sagrado e profano. É uma das
formas mais intrépidas de entretenimento em seu
escrutínio da nossa humanidade e do nosso mundo
social. Eu espero sinceramente que Horror Noire: A
Representação Negra no Cinema de Terror não seja
considerado a palavra final em relação à contribuição
negra aos filmes de terror. Pelo contrário, minha intenção
e esperança é iniciar um debate engajado, provocar
divergências incríveis e engatilhar investigações ainda
mais detalhadas e exatas.
* O livro Pensamento Feminista Negro, da socióloga Patricia Hill
Collins (Boitempo, 2019), fala a respeito das imagens de controle
como uma representação específica de gênero para pessoas negras
que se articula a partir de padrões estabelecidos no interior da
cultura ocidental branca eurocêntrica. As imagens de controle são
diferentes de estereótipos por serem manipuladas dentro dos
sistemas de poder e controlam o comportamento e os corpos de
mulheres negras, criando obstáculos intransponíveis nos processos
de subjetivação, autonomia e e exercício da cidadania destas
mulheres. [NE]
HORROR
NOIRE
PRÉ-1930
O NASCIMENTO DO BICHO-PAPÃO
NEGRO NO IMAGINÁRIO
Você só precisa procurar “negro” no
Dicionário Oxford da Língua Inglesa para
ver a gama de associações estabelecidas
no século XVI; a palavra é usada como
sinônimo para, entre outras coisas,
maligno, sinistro, cruel, triste etc. Ainda
mais revelador, “homem negro” podia
fazer referência tanto a um Preto quanto
ao Diabo. — LIVELY (14)1
Em meados de 1800, os homens brancos com ocupações
tão diversas quanto cientistas, fabricantes de óculos e
mágicos, começavam a explorar os limites tecnológicos
dos filmes e a usar suas habilidades de contar histórias.2
Na Europa, os cineastas provavam que qualquer coisa
que saísse da imaginação deles podia ser transposta
para os filmes. Isso incluía dar à luz (possivelmente) ao
primeiro filme de terror propriamente dito — um curta
mudo de dois minutos chamado O solar do diabo,
apresentado numa noite de Natal de 1896 no Théâtre
Robert-Houdin em Paris pelo mágico/ator de teatro
francês Georges Méliès:
Um grande morcego voa para dentro de um
castelo medieval. Circulando lentamente, ele
bate suas asas monstruosas e, de repente, se
transforma em Mefistófeles. Conjurando um
caldeirão, o demônio produz esqueletos,
fantasmas e bruxas do conteúdo borbulhante
antes que um dos cavaleiros vindos do
submundo erga um crucifixo e Satanás
desapareça em uma lufada de fumaça.3
Era a época dos filmes mudos (fim de 1800 até o final da
década de 1920), um período em que a imagem em
movimento ainda não podia ser unida a um sistema de
som sincronizado para a reprodução em massa e
exibição nos cinemas. Era também o período em que ser
um cineasta significava ter acesso ao equipamento
necessário (geralmente experimental, de invenção
própria) para capturar uma série de imagens paradas e
fazê-las se movimentar (por exemplo, os zootropos ou
“lanternas mágicas”) ou possuir a capacidade de
capturar imagens usando uma câmera de filme.4 Os
diretores criaram as chamadas “peças cinematográficas”
(photoplays), que em sua maioria duravam meros
minutos ou segundos inicialmente, e, dessa forma, seus
filmes foram apelidados de “curtas”. Os filmes,
inicialmente, eram assistidos por meio de máquinas
como o cinetoscópio, que acomodava um espectador por
vez. Contudo, o avanço na tecnologia de filmes evoluiu
rapidamente e a projeção de imagens em movimento
para grandes audiências pagantes foi alcançada em
1893. Embora mudos, não era incomum que os filmes
desse período fossem acompanhados por música
orquestral ao vivo e efeitos sonoros. “Intertítulos”,
imagens de textos escritos ou diálogos transcritos, eram
inseridos nos filmes para detalhar pontos da história
enquanto os atores pantominavam suas falas. Em 1926 o
primeiro filme com som pré-gravado e sincronizado foi
lançado.5 Em 1927, O cantor de jazz incluía música, sons
e, significativamente, diálogos. Daí em diante, os “filmes
sonoros” se estabeleceram.6
Nos primeiros anos do cinema, os negros eram
representados por brancos, que encenavam estereótipos
racistas usando a pintura blackface. Um dos primeiros
tratamentos conhecidos de negros naquilo que pode ser
considerado um filme de terror propriamente dito
(embora o termo “terror” não fosse amplamente usado
na época) ocorreu no filme francês L’Omnibus des toqués
blancs et noirs (1901).7 O filme foi feito pelo mágico e
ilusionista Georges Méliès, também conhecido por suas
performances no teatro e aproximadamente quinhentos
curtas que incluem temas sobrenaturais e macabros. O
curta em questão é repleto de figuras fantasmagóricas
descritas da seguinte forma no catálogo de Méliès:
Um ônibus puxado por um extraordinário cavalo
mecânico é puxado por quatro pretos. O cavalo
chuta e irrita os pretos, que ao caírem se
transformam em palhaços brancos. Eles
começam a se estapear, e a cada tapa se
transformam em negros novamente. Chutando
uns aos outros, eles se tornam brancos de novo.
De repente todos eles viram um só preto
grande. Quando ele se recusa a pagar sua
passagem, o condutor incendia o ônibus e o
preto explode em mil pedaços.8
Os “pretos” do filme foram representados por atores
brancos com os rostos pintados de preto, que,
aparentemente, foram encarregados de mostrar a
violência iminente ao se cruzar limites raciais, as tensões
ao redor do baile de máscaras racial e, finalmente, o fim
brutal do metafórico fardo do homem branco com a
destruição do negro.
O público norte-americano dificilmente ficou de fora
das primeiras experiências do cinema. Uma referência
inicial de negros associados a temas assustadores data
de 1897, quando o estúdio norte-americano Biograph
lançou um curta, provavelmente uma comédia, com o
título ofensivo de Hallowe’en in Coontown [Halloween na
Cidade
,dos Pretos Malandros], relacionando, assim, os
negros ao feriado assustador.9 Hallowe’en se uniu a
vários outros filmes de “pretos malandros”, como The
Wooing and Wedding of a Coon [O cortejo e o casamento
com um preto malandro] (1907) ou Coontown
Suffragettes [As sufragistas da Cidade dos Pretos
Malandros] (1914), nos quais os negros, representados
por brancos com pintura blackface, eram ridicularizados
de forma cômica. O curta Minstrels Battling in a Room
[Menestréis duelando em uma sala] (c. 1897-1900)
situava-se em local mais complexo. Aqui, homens e
mulheres negros (representados por homens brancos em
blackface) estão dentro de alguma espécie de clube
noturno onde as coisas começam a ficar pesadas. Os
“negros” chegam até mesmo a se voltarem contra um
branco.10 O destino dos negros no filme por duelarem
com um homem branco é desconhecido — mas na ficção
da época existem sérias consequências para negros que
atacam brancos. O estado deteriorado do filme
impossibilita uma conclusão acertada.11 Na verdade,
muitos filmes anteriores à década de 1950 foram
perdidos ou danificados de forma irrecuperável. A
deterioração de um filme pode ser atribuída à maneira
como foi feito — com o uso de nitratos altamente
inflamáveis. G. William Jones, no livro Black Cinema
Treasures: Lost and Found, detalha o problema:
O nitrato era usado universalmente em filmes de
35 mm até a Segunda Guerra Mundial. A
composição química do nitrato é muito próxima
da composição química da pólvora, e isso
acelerou a transição para um estoque de acetato
não inflamável para que o nitrato fosse usado na
guerra. […] porque o nitrato estocado tem a
tendência de se destruir. Primeiramente, esses
filmes ficam cobertos por uma camada fina de
poeira amarelada à medida que as bordas
começam a se partir. Então, as imagens
começam a grudar no rolo seguinte, de forma
que desenrolar o filme causa ainda mais danos
[…]. Por fim, o filme se torna uma mistura de
massas grudentas e semissólidas em uma poça
de poeira. Estimase que quase 50% da herança
cinematográfica pré-1950 esteja perdida para
sempre — a maioria por causa da decomposição
do nitrato.12
Alguns filmes realmente sobreviveram. Por exemplo, em
1898 os diretores Edwin S. Porter e George S. Fleming,
trabalhando sob os auspícios da Edison Manufacturing
Company, filmaram Shooting Captured Insurgents. Uma
filmagem real de quatro soldados brancos executando
quatro homens negros. Ao fazer isso, a companhia de
Edison talvez tenha produzido um dos dois curtas mais
horríficos dos Estados Unidos. O segundo é o curta
documental An Execution by Hanging, de 1898. A
produtora do filme, Biograph, saudou An Execution, que
registrava o enforcamento de um negro em uma prisão
de Jacksonville, na Flórida, como o único enforcamento
capturado em câmeras ao vivo. Butters descreve as
cenas como “explícitas” e “assombrosas”:
o carrasco ajusta um capuz sobre a cabeça do
prisioneiro. A forca é colocada em seu pescoço.
Depois que o homem é enforcado, seu corpo
treme e sacode por causa da tensão. A
afirmação nostálgica acerca da inocência do
cinema mudo é quebrada por esse filme. A
morte de um afro-americano é vista em cena
claramente. Seu crime nunca é anunciado; sua
punição é tudo que o espectador entende.13
Negros “de verdade”, e não brancos com a cara pintada,
eram vistos frequentemente em filmes mudos e
etnográficos com cenas de pessoas levando a vida
enquanto um branco “aventureiro”/cineasta
documentava as atividades delas. Contudo, essas
representações tinham pouco de real, pois serviam para
elencar os negros como os Outros — curiosidades e
estranhezas tão marcadamente diferentes dos brancos
que até os seus hábitos mais mundanos precisavam ser
documentados e exibidos como se os negros fossem
animais em um zoológico.* A filmagem parece, em
determinados momentos, ter sido feita à paisana, sem o
conhecimento de sua “estrela” negra, ou, em outros
momentos, os personagens dos filmes parecem dar
continuidade a suas atividades conscientes, e apesar, da
câmera apontada para eles. Em 1895, curtas como
Native Woman Coaling a Ship at St. Thomas, Native
Woman Washing a Negro Baby in Nassau e Native
Woman Washing Clothes at St. Vincent apresentavam
negros em suas rotinas, conforme a seleção do diretor.
Musser alerta para o fato de que essas imagens não
apresentavam “um tipo de inocência não racista e
primitiva”, já que estão longe de ser documentais.14
Essas perspectivas de negros como estranhos e
primitivos se tornariam algo constante no terror ao longo
do século seguinte, especialmente em filmes que
retratavam os negros como selvagens, nativos perigosos
(como em Lua negra [1934]).
Frequentemente, os filmes focavam em uma pequena
gama de atividades negras, muitas das quais eram
preparadas pelos cineastas. Por exemplo, houve o filme
Watermelon Contest (1895), estrelando um grupo de
homens negros incitados a competir um com o outro
para ver quem acabava primeiro com um enorme pedaço
de melancia. Edison (1898) e o imigrante alemão
Sigmund Lubin (1903) produziram filmes com o nome de
Buck Dance. Lubin, ao descrever sua versão, afirmou que
o filme continha “um bando esfumaçado dançando por
causa de sua melancia favorita”.15 Estranhamente, os
filmes do início do século XX diziam muito sobre a forma
como os cineastas brancos eram obcecados por aquilo
que julgavam ser inerente aos negros — melancia e
galinhas (por exemplo, Watermelon Feast [1903] e Who
Said Chicken? [c. 1910]). Ao longo das décadas
seguintes, o terror iria se apropriar de tais estereótipos,
usando o tal amor dos negros por melancia e galinhas
como uma grande distração dos monstros que os
perseguiam. Para ilustrar, anos mais tarde, na comédia
de terror Os “anjos” no castelo misterioso (1940), o
personagem negro Scruno (Ernest “Sunshine Sammy”
Morrison) para de tremer de medo de um fantasma por
tempo suficiente para cantarolar louvores a uma
melancia, bem como comê-la.
O mundo negro, de acordo com os primeiros curtas,
era bem definido em classe, status e contribuição. Os
negros eram vistos sempre na rua, e não em casa. Seus
trabalhos, quando tinham, eram sempre braçais.
Imagens íntimas da família negra eram sempre elusivas.
Lubin lançou In Zululand (1915), descrito como “humor
cartunesco”, no qual mulheres negras se vestem de
fantasma com o intuito de assustar uma parente para
que ela não se casasse com “um crioulo que não vale
nada”.16 O filme Hoodoo Ann (1916), de Lloyd Ingraham,
também possui uma trama de casamento. Uma mulher,
Ann (Mae Marsh), convoca sua empregada, Preta Cindy
(Madame Sul-Te-Wan), a ajudá-la a se livrar de uma
maldição para que o casamento dela seja “o funeral do
vodu”.17 O público não recebia nenhuma dica de que
existiam intelectuais negros como W.E.B. Du Bois, Booker
T. Washington, Ida B. Wells, James Weldon Johnson e
Nannie Helen Burroughs. Nesses curtas não haviam
poetas, políticos, jornalistas, doutores em Harvard,
presidentes de grêmios estudantis ou ativistas dos
direitos humanos. Ainda assim, talvez, uma ausência de
referências aos negros teria sido melhor do que a
alternativa, evidenciada, por exemplo, pela
representação do clero negro em A nigg*r in the
Woodpile, de 1904.
A nigg*r in the Woodpile não foi imbuído com os
tropos do gênero de terror. Contudo, pode ser
considerado horripilante do mesmo jeito. No filme, um
diácono negro (interpretado por um ator branco com
pintura blackface) é retratado como um ladrão frequente
da lenha de um fazendeiro branco. Esperando acabar
com o roubo, o fazendeiro substitui um toco de lenha por
gravetos de dinamite. Conforme esperado, o diácono
surge para roubar a lenha e, sem saber, pega os
explosivos. O diácono é exibido em sua volta para casa,
quando se detém para cumprimentar a esposa (um ator
branco com o rosto pintado de preto, contribuindo
também para o detrimento da mulher), que está
preparando comida na cozinha, e então coloca
,a “lenha”
no fogão. A casa explode ao redor deles, e o que resta é
o casal, chamuscado pelo fogo, cambaleando por seu lar
em ruínas. Então, o fazendeiro branco chega juntamente
com um ajudante branco. Eles seguram o diácono e o
levam. Talvez os fazendeiros planejassem levar o diácono
para que as autoridades responsáveis cuidassem do caso
(como se explodir a casa de alguém já não fosse uma
punição suficiente); contudo, o contexto real de 1904 nos
impossibilita imaginar tal conclusão. Nesse período,
havia linchamentos desenfreados, e os supremacistas
brancos militantes aterrorizavam os negros.
Por boa parte do início de 1900, as qualidades
genéricas do terror permaneceram inexploradas. O
conceito de filme de “terror” não entrou no léxico
popular até a década de 1930. Contudo, os elementos
mais genéricos do terror podem ser vistos desde o início:
a inclusão do fantástico, batalhas entre o bem e o mal,
perturbação do cotidiano e da racionalidade, e, claro, a
invocação do medo. O modo como os negros
asseguraram o seu lugar no gênero e a natureza dessas
representações requer uma exploração dos momentos
iniciais do cinema norte-americano, quando a noção da
negritude como algo monstruoso foi introduzida.
Embora tais representações de negritude tivessem
sido conceituadas primeiramente fora do gênero do
terror, essas imagens deram uma grande contribuição
para o gênero e continuam, até mesmo hoje, a figurar de
forma proeminente na noção cinematográfica americana
do que é mais horrífico em nossa sociedade. Elas
funcionam como lembranças-chave do pouco valor
atribuído à vida negra e poderiam ser interpretadas
como horrorizantes. Butters nota que as ações
representadas em filmes como A nigg*r in the Woodpile
podem ser facilmente relevadas por alguns: “Alguém
pode argumentar que as representações violentas de
afro-estadunidenses eram apenas parte da tradição de
humor pastelão que dominava as representações iniciais
nas telas. Comédia pastelão […] envolve humor cruel e
violência.”18 No entanto, o filme também explora as
ansiedades acerca dos negros e os estereótipos de
criminalidade negra para evocar os medos dos brancos
em relação à presença inquietante de “crioulos” entre
eles.19
O cineasta Lubin, conhecido pela sua série de filmes
com Sambo e Rastus, introduzidos por volta de 1909 e
repletos de estereótipos, uniu terror e pastelão com
atores negros de verdade para lançar um dos primeiros
“filmes negros” de terror. A comédia de terror The
Undertaker’s Daughter, dirigida por Willard Louis, é um
curta mudo estrelando John Edwards e Mattie Edwards.
De acordo com o material publicitário de Lubin, The
Undertaker’s Daughter contava a seguinte história:
Mattie Cook, a filha do coveiro, ama John Scott,
que não tem emprego, mas seu pai quer que ela
se case com Sime Sloan, que tem um emprego,
e Mattie precisa usar todo o seu poder de
persuasão para dobrar o pai, mas ela está à
altura do desafio. Ela se livra de Sime e de Bime
[outros pretendentes] ao prometer se casar com
um deles caso provem seu amor por ela. Um
deles precisa dormir em um dos caixões do pai e
outro deve ficar sentado perto dele a noite
inteira. [Com a ajuda de barulhos e de John, ela
se livra deles. ] Cheios de medo, eles correm
para uma reunião domiciliar presidida pelo pai,
que leva alguns tombos. Ele finalmente decide
que John é o mais indicado e pode ajudar a
tomar conta do negócio.20
As estrelas do filme, John e Mattie, que eram parte da
“companhia de estoque de negros da seção de comédia
da Companhia Lubin”, apareceriam também em dois
filmes do diretor negro Oscar Micheaux.21
D.W. GRIFFITH E O NASCIMENTO DE UMA
NAÇÃO: TORNANDO OS NEGROS
ASSUSTADORES
É o racista que cria o seu inferior.
— Fanon (93)22
D.W. (David Llewelyn Wark) Griffith nasceu em 1875 em La Grange,
Kentucky, filho de um soldado do Exército Confederado que se tornou
legislador estadual. Durante a Reconstrução, em 1885, enquanto a família
de Griffith passava por dificuldades financeiras significativas, o patriarca da
família morreu. Depois de abandonar a escola para ajudar no sustento da
família, Griffith acabou voltando sua atenção para o objetivo de se tornar um
autor de peças de teatro. Tanto o teatro quanto o cinema eram opções de
carreira aceitáveis para Griffith, e ele tentou escrever e atuar tanto para o
teatro quanto para as telas. Griffith era considerado um escritor sem muita
relevância, e seus roteiros eram frequentemente rejeitados. Em 1907,
depois de se mudar para a Califórnia, Griffith falhou em vender seus roteiros
para Edwin Porter, o famoso diretor da (Thomas) Edison Manufacturing. Em
1908, Griffith procurou Sigmund Lubin para pedir um emprego. A inscrição
de Griffith foi rejeitada. Griffith então foi para Nova York, conseguindo
finalmente um trabalho de atuação com a Biograph Company em 1908.
Pouco depois, Griffith recebeu a chance de dirigir na Biograph, e ao longo
dos cinco anos seguintes ele fez a incrível soma de 450 curtas onde
aprimorou suas habilidades de câmera e edição, incluindo técnicas como
close-ups e edição paralela. Em 1913, como um diretor produtivo e de
sucesso, Griffith saiu da Biograph para abrir o seu Reliance-Majestic Studios.
Foi por meio de seu estúdio que Griffith produziu O nascimento de uma
nação.
O nascimento de uma nação (1915), de D.W. Griffith,
não exibiu suas habilidades de escrita ou a falta delas. O
roteiro do filme foi baseado principalmente em dois livros
pró-supremacia branca e de temática terrorista escritos
por Thomas Dixon Jr., The Leopard’s Spots: A Romance of
the White Man’s Burden (1901) e The Clansman: An
Historical Romance of the Ku Klux Klan (1905). Dixon era
descrito de maneira favorável em uma revista como
“pregador, palestrante, escritor e cavalheiro sulista
conhecido há muito pela seriedade, podemos chamar de
fanatismo, com que ele lida com o […] problema
preto”.23
Griffith pagou Dixon alguns milhares de dólares, e
uma porção dos lucros, em troca de suas histórias e
opiniões. Em resposta, Dixon também passou a integrar
a promoção do filme. Foi Dixon que fez o filme ser
exibido na Casa Branca para o presidente Woodrow
Wilson, que comentou sobre o filme, em partes: “E a
minha tristeza é que, terrivelmente, é tudo verdade”.24
Juntos, Griffith e Dixon arrecadaram milhões com a
produção.
O NASCIMENTO DO BICHO-PAPÃO NEGRO
O filme O nascimento de uma nação conta a história de
duas famílias — os sulistas Camerons e os nortistas
Stonemans — durante a Guerra Civil e o período da
Reconstrução. O enredo do filme, com quase três horas,
é bem direto. A primeira parte conta a versão de Griffith
da história do fim da Guerra Civil e do assassinato do
presidente Abraham Lincoln. A segunda trata a respeito
de “raça e vingança”, com a união entre os sulistas
brancos, nortistas de bom coração, e os servos negros
fiéis.25
Os Camerons vivem na cidade de Piedmont e são
antigos donos de escravos. Trata-se de uma família
distinta, cheia de heróis de guerra e mulheres
apaixonadas e compassivas. Os membros da família
Stoneman são seus amigos da Pensilvânia, liderados pelo
patriarca da família, o deputado Austin Stoneman (Ralph
Lewis). Stoneman é um abolicionista que, apesar de um
político influente, também é retratado como uma figura
fraca e emasculada — é doente, não tem uma esposa,
manca por conta de um pé torto e é exibido como um
integracionista que foi ideologicamente enganado pelos
negros. A família Cameron possui três filhos que se
juntam ao Exército Confederado. Dois dos filhos de
Cameron são mortos na Guerra Civil. Um deles, Ben
(Henry Walthall), se torna um herói de guerra e é
apelidado de “o Coronelzinho”. O Coronelzinho (como ele
passa a ser chamado pelo resto do filme) é enviado a um
hospital no norte para se recuperar dos ferimentos, onde
conhece Elsie Stoneman (Lillian Gish) e se apaixona. A
família Stoneman possui dois filhos que se juntam à
União. Um é morto e o outro
,se apaixona por Margaret
Cameron (Miriam Cooper), que ele conhece durante uma
visita à casa da família Cameron. Políticos progressistas
do norte, como Stoneman, são retratados como
descontentes em relação ao sul por suas tentativas de se
separar do resto do país. Stoneman até importa para
Piedmont um “mulato” chamado Silas Lynch (George
Siegmann) para ajudar no trabalho de integração.
De acordo com o historiador de cinema Ed Guerrero,
Nascimento foi o primeiro filme de longa duração feito
nos Estados Unidos a estabelecer o “padrão técnico e
narrativo para a indústria” enquanto continuava a
perpetuar a tendência uniforme em Hollywood de
desvalorizar os afro-estadunidenses como “bufões,
servos e um tipo de subordinados”.26 Os personagens
negros principais em Nascimento são representados por
brancos com pintura blackface. Eles incluem: Gus (Walter
Long), um soldado da União que é linchado pela Ku Klux
Klan por dar em cima de Flora “Irmãzinha” Cameron
(Mae Marsh), uma garotinha; Silas Lynch, um político
corrupto; Lydia (Mary Alden), uma “mulata” maldosa que
sequestra e amarra Elsie porque Lynch deseja a mulher
branca; e Mammy (Jennie Lee) e Tom (Thomas Wilson),
dois ex-escravizados que permanecem fiéis aos Cameron
e continuam a trabalhar como servos. Esses personagens
são unidos a vários outros, alguns interpretados por
atores negros de verdade, e retratam políticos corruptos,
ladrões, supostos estupradores, incendiadores,
trapaceiros e (pretensos) assassinos.
A definição dos negros e de negritude em O
nascimento de uma nação é extremamente
problemática. A introdução inicial dos espectadores à
negritude e a prontidão em associar a cultura negra com
uma monstruosidade surgem quando soldados negros da
União chegam na cidade de Piedmont como uma gangue
de ladrões, saqueando e levando a destruição, conforme
“entram na cidade como monstros”, atacando pessoas
brancas inocentes.27 Eles aparecem em contraste com os
soldados confederados brancos, que se encontram
sitiados e cansados da guerra, mas também são
honestos e estão decididos a proteger suas terras
(brancas) e famílias (brancas). Enquanto a violência da
Guerra Civil era aterrorizante, seu verdadeiro horror, de
acordo com o filme, surgiu depois, na forma de homens
negros livres e incontidos. Por exemplo, em uma cena, o
Coronelzinho está numa calçada. Os negros abrem
caminho de forma violenta e o Coronelzinho é forçado a
sair aos pulos da calçada para não se ferir. Sobre esse
espetáculo, Lynch afirma: “Esta calçada pertence a nós
tanto quanto pertence a você, coronel Cameron”.
Contudo, à medida que Griffith exibe a cena, não há
nenhuma esperança de que alguém julgue o
comportamento dos homens negros ou a reação de
Lynch como equitativos. De tal forma, Griffith retrata os
negros como lobos dominando uma ovelha.
Se os negros são os lobos no filme de Griffith, eles não
são avessos ao canibalismo. Em uma cena, quando
Mammy encontra o servo negro nortista da família
Stoneman, ela dá um chute no traseiro dele enquanto
diz: “Us pretu livri du norti é tudu doido”. Em outra cena,
muito mais violenta, quando o leal (e submisso) Tom se
recusa a se bandear com os soldados contrabandistas da
União, eles amarram Tom pelos braços numa árvore e o
chicoteiam, evocando um poderoso simbolismo de
linchamento. Quando um homem branco tenta resgatar
Tom, ele é baleado pelos negros.
Os negros também apreciam galinhas e bebida, como
Griffith retrata em uma cena chamada “A revolta no
Master Hall: o partido preto no controle da câmara dos
representantes estaduais”. A cena, primeiramente, tem o
objetivo de ser interpretada como tragicômica. Uma série
de homens negros (interpretados por atores negros) são
reunidos em uma legislatura; eles começam a se
comportar mal — um deles leva um pedaço de galinha
escondido, outro tira o sapato e coloca o pé sujo em cima
da mesa, outro bebe sorrateiramente de uma garrafa. Os
homens devem ser vistos como ineptos dignos de pena.
Isto é, até que aprovam uma legislação que autoriza o
casamento inter-racial. Com os homens brancos e
mulheres assistindo à votação do alto da seção branca
numa sacada (em um tipo de segregacionismo reverso
na representação de Griffith), os negros se viram para
olhar as mulheres brancas. A cena agora mostra os
negros menos interessados em carne de galinha e mais
animados com a carne das mulheres brancas.
Contudo, é na cena mais infame e chocante do filme,
“A colheita sombria”, que Griffith se esforça para
solidificar a ideia de que os negros são assustadores.
Gus, “o renegado”, como ele é chamado no filme, está
ansioso para tirar vantagem da sua recente liberdade e
da nova lei de casamento inter-racial. Ele se decide por
uma criança, a filha mais nova da família Cameron, a
“Irmãzinha”. A Irmãzinha é mostrada brincando sozinha
na floresta enquanto Gus a vigia. Por fim, ele se aproxima
e diz: “Sabe, eu sou um capitão agora e quero me
casar”, e toca no braço da garota. A perseguição começa
quando a Irmãzinha se desvencilha e corre em pânico.
Com Gus em seu encalço, a Irmãzinha adentra ainda
mais na floresta até que chega na beira de um precipício.
Enxergando Gus como um destino pior que a morte, a
Irmãzinha se joga. Pouco depois, em seu suspiro de
morte, a Irmãzinha revela para o Coronelzinho que Gus
fora o seu carrasco. Fica claro que Gus deve ser visto
como um negro predador sexual que ataca mulheres
brancas. No livro de Dixon, The Clansman, o estupro
realmente acontece, e não fica implícito como no filme,
com o predador sendo associado a um monstro: “as
garras negras da besta afundaram no pescoço macio e
branco”.28 O filme foi feito numa época em que o mero
olhar de um homem negro na direção de uma mulher
branca (“olho do estupro”) resultava em um linchamento.
O impacto dessas cenas racistas alojadas em um dos
filmes mais importantes dos Estados Unidos do ponto de
vista tecnológico é uma marca que não podemos apagar.
Até mesmo hoje representações negras são influenciadas
por aquelas criadas e popularizadas por Griffith (e Dixon).
A negritude foi efetivamente transformada, e o negro se
tornou uma das criaturas mais terríveis e temidas de
todas.
O ataque de Griffith contra a negritude não parou por
aí. Griffith continuou a usar o “mito da sexualidade
exacerbada do negro” e a ideia de que “todo negro
almeja uma mulher branca” por meio do personagem
Lynch.29 Quando Lynch faz mais do que tocar o braço de
uma branca, como Gus fez, ao ponto de sequestrar e
apalpar Elsie, não resta dúvida de que Griffith quis
indicar todos os negros (até mesmo os “mulatos”) como
estupradores perigosos. As ações de homens como Gus e
Lynch justificam a ascensão da Ku Klux Klan — “Irmãos,
esta bandeira tem a mancha vermelha do sangue de
uma mulher sulista, um sacrifício inestimável no altar de
uma civilização indignada” —, e o grupo de ódio não
desaponta quando lincha Gus e Lynch (fora de cena).
Bolge (1993) confirma que a construção que Griffith
fez do negro como uma fera foi proposital:
FIGURA 1.1 GUS ENCONTRA O SEU FIM PELAS MÃOS DA KKK EM O
NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO.
David W. Griffith Corp./Photofest
Os comentários de Lillian Gish na edição de
janeiro de 1937 da revista Stage atestam o fato
de que Griffith estava bem ciente do contraste e
que ele o usou para atiçar o público. Gish disse:
Um dia, enquanto ensaiávamos a cena em que o
homem de cor pega a menina do norte como um
gorila, meu cabelo, que era muito loiro, ficou
bem abaixo da minha cintura, e Griffith, vendo o
contraste entre as duas figuras, me deu o papel
de Elsie Stoneman.30
Apenas seis anos mais tarde, a organização pelos direitos
civis NAACP encarou o desafio de banir o filme. Dixon
driblou a NAACP e levou o filme até a Casa Branca para
exibi-lo ao presidente Wilson e sua família, assim como à
Suprema Corte e a membros do Congresso.31 Depois de
ver o filme, o presidente Wilson, um historiador, disse: “é
como se a história
,tivesse sido escrita com um
relâmpago”.32 Com o apoio famoso do presidente, os
distribuidores cobraram uma entrada premium de 2
dólares para um público estimado em 3 milhões de
pessoas apenas em Nova York, ao longo do período de
onze meses e 6.266 exibições.33
Griffith não havia terminado de abusar
imageticamente dos negros. Em 1922 ele fez uma
comédia de horror com personagens negros com o título
Uma noite de terror, sobre uma casa mal-assombrada.
“Os personagens negros”, escreve Cripps, “eram
marcadamente bizarros. O personagem central, um
detetive improvável, era um ‘cafre, o terror negro da
gangue do contrabando’. Os outros papéis negros eram
interpretados por brancos com pintura blackface como os
lacaios dóceis de sempre, que passeavam pela
narrativa”.34 Peter Noble acrescenta isso à descrição
enquanto acusa Griffith:
Essa comédia é um exemplo digno de nota sobre
como um diretor imerso em preconceito contra
negros pode influenciar seu público. O
personagem negro em Uma noite de terror
[interpretado por um ator branco com o rosto
pintado] deu início a uma longa linha de
marionetes cinematográficos conhecidos, os
negros covardes cujos cabelos ficam brancos ou
somem quando encontram qualquer tipo de
perigo. Nós os conhecemos bem a esta altura;
eles têm medo do escuro, de trovoadas, de
armas de fogo, de animais, da polícia, e assim
por diante. […] Em O nascimento de uma nação
ele retratou o homem de cor com ódio, e sete
anos depois, em Uma noite de terror, ele o fez
com desdém.35
Apesar dos protestos contra os seus filmes, e de um
encontro desagradável com sua empregada negra — que
disse: “Me machucou, sr. David, ver o que você fez com o
meu povo” —, Griffith se recusou a reconhecer o dano
causado pelos seus filmes.36
GUS COMO O MONSTRO (DE FRANKENSTEIN)
Pegando uma frase emprestada de Carol Clover, autora
de Men, Women and Chain Saws: Gender in the Modern
Horror Film: “Mas onde, exatamente, está o terror
aqui?”.37 Para entender a racialização do negro como
terror em O nascimento de uma nação, é importante e
ilustrativo comparar a infame sequência “A colheita
sombria”, com Gus como o monstro que persegue a
garota branca e que resulta em sua morte, com uma
cena igualmente notável em um evidente filme de terror,
Frankenstein (1931), no qual o monstro mata uma garota
branca.38 Embora os filmes tenham surgido num
intervalo de quinze anos de diferença, que vai da era do
cinema mudo até a era do som, tal comparação é
apropriada, já que os dois filmes habilmente centram a
atenção do público em algo perigoso, acentuando e
significando a monstruosidade por meio da justaposição
de um triunvirato de pureza — branquitude, feminilidade
e infância. O que se torna central é a forma como esses
filmes tratam de maneira diferente os seus monstros e
como pedem que o público sinta algo por eles.
Em Frankenstein (não há negros nesse filme), um
jovem cientista médico, dr. Henry Frankenstein (Colin
Clive), recria um homem a partir de pedaços de corpos e
o anima com eletricidade. O dr. Frankenstein cria o
homem (daí em diante “o Monstro”) apesar dos protestos
de sua noiva, Elizabeth (Mae Clarke), e de seu antigo
professor, dr. Waldman (Edward Van Sloan). O culto e
iluminado dr. Frankenstein tem um ajudante, Fritz, a
quem falta tanto cultura quanto iluminação. Fritz (Dwight
Frye) é marcado como aberrante por meio de suas
deformidades (uma corcunda e cicatrizes faciais) e se
delicia de forma cruel ao torturar o Monstro (Boris
Karloff).
O Monstro está escondido em um porão no laboratório
de Frankenstein, mas não está a salvo de Fritz, que o
atormenta com uma tocha. Quando o medo do Monstro é
interpretado como fúria descontrolada, Frankenstein e
Waldman decidem que ele precisa ser restringido. O
Monstro então é confinado ao porão e acorrentado.
Enquanto está acorrentado, ele mais uma vez é
ameaçado por Fritz e o mata para se defender. Ao
descobrirem o assassinato, Frankenstein e Waldman
drogam o Monstro, e Waldman se prepara para
desmanchar a criatura. Quando Waldman está prestes a
dar início ao procedimento, o Monstro acorda e, em outro
momento de autopreservação, mata Waldman. O
Monstro escapa do confinamento do laboratório de
Frankenstein e sai para explorar o mundo. O Monstro
encontra Maria (Marilyn Harris), uma garotinha que está
brincando sozinha perto de um lago e o chama para
brincar com ela. A besta e a garota começam a brincar
de jogar flores no lago para vê-las flutuar. O Monstro,
pensando que todas as coisas bonitas flutuam, pega
Maria e a joga dentro do lago, descobrindo tarde demais
que havia cometido um erro mortal. A repreensão é
devastadora:
a Criatura não agiu por maldade. Ela erra em
lógica, mas não em sentimento. Suas ações são
a consequência natural de tentar descobrir como
deveria brincar com a menina. Ela queria tratá-
la tão delicadamente quanto havia tratado as
adoráveis flores da montanha. A menina morre,
e a criatura é condenada tanto pelo crime de ser
uma monstruosidade quanto por ser uma
assassina de crianças.39
O Monstro vai até a casa de Frankenstein e entra no
quarto de Elizabeth, onde ela fica assustada o suficiente
com sua aparência para gritar e desmaiar. Os gritos dela
fazem o Monstro fugir para o interior. Enquanto isso, o
pai camponês de Maria recupera o corpo dela e o leva
até a porta de Frankenstein, a quem ele culpa pela morte
da filha. O pai é seguido por uma turba intencionada a
destruir o Monstro. Nas cenas finais do filme, o Monstro é
cercado e encurralado em um velho moinho. O Monstro,
que está triste e perturbado com o entendimento em
relação ao que ele é, dirige sua raiva para Frankenstein.
O Monstro agarra o médico e o atira em direção a morte.
A multidão então incendeia o moinho, destruindo o
Monstro. O que tornou o Monstro tão único, e, dessa
forma, diferente dos “monstros” de O nascimento de
uma nação, como Gus e Lynch, foi a técnica narrativa de
exigir que a audiência simpatizasse com a fera e sua
difícil situação, pois “um monstro que odeia a própria
vida e contempla a existência com um olhar baixo exibe
paralelos perturbadores com humanos deprimidos”.40
Diferente do Monstro, Gus e Lynch estão longe de ser
personagens simpáticos. Seu dilema é a crença
arrogante de que tomar as coisas por meio da força,
assim como literalmente tomar uma mulher branca, está
ao alcance deles. Ainda pior, a “falha” de Gus e Lynch,
que serve para atrair a ira, é sua inabilidade de ver a
própria monstruosidade, ou negritude, como algo
problemático.
FIGURA 1.2 O MONSTRO E MARIA EM FRANKENSTEIN.
Universal/Photofest
A semelhança entre Gus, particularmente, e o Monstro
reside em seus corpos grotescos, que se tornam “pontos
de contradição”.41 O Monstro é uma atrocidade gigante
montada com partes de corpos. Sua carne tem cor de
cadáver e não possui vivacidade; ele ganhou vida por
meio de um choque elétrico, não tem nenhum sangue
pulsando em seu corpo morto-vivo e reanimado. E ainda
assim essa aberração da natureza não cria repulsa no
espectador, apenas pena. É o dr. Frankenstein, um tipo
de intelectual que, com seu complexo de Deus, deve ser
humilhado.
Gus se parece mais com um monstro. Seu uniforme é
sujo e rasgado. O próprio Gus tem a compleição escura e
às vezes parece mais rastejar do que andar de forma
ereta e orgulhosa como os homens da família Cameron
(ou até mesmo como o Monstro). Sua aparência
monstruosa é acentuada pelo uso de blackface. Como
resultado, os grandes olhos brancos de Gus parecem
selvagens e desvairados, sua pele tem um tom escuro
acinzentado e lamacento. Depois que a Irmãzinha se
mata em vez de “se casar” com Gus, ele assegura o seu
destino quando atira e mata um dos seus perseguidores
brancos. Embora o corpo do Monstro tenha a intenção de
ser igualmente problemático, seus olhos taciturnos lhe
dão uma marca de profundidade. O Monstro se torna
mais humano do que Gus jamais será, pois ele não mata
seus perseguidores
,(a multidão de camponeses); em vez
disso, atormentado, ele mata seu criador — um símbolo
do homem e da ciência cometendo erros —, e assim
salva a humanidade de tal húbris.
Gus e o Monstro revelam horrores díspares, ainda que
ambos prometam “momentos particularmente intensos”
de nascimento, entrada, transformação e destruição.42
Ambos são retratados como crias de mentes
privilegiadas. O Monstro é criação do dr. Frankenstein, e
Gus e Lynch nasceram de um progressismo social que
deu errado. Tanto Frankenstein quanto Stoneman são
vistos como cientistas loucos embarcando em um
experimento social irracional e perigoso, ou, como
Butters coloca: “Dessa forma, assim como o dr.
Frankenstein cria o seu monstro sem entender
completamente o que está fazendo, Stoneman cria
Lynch”.43 A entrada de Gus, Lynch e do Monstro no
mundo revela que cada um deles, estejam cientes ou
não, possui uma dependência em relação ao seu mestre
(branco). O Monstro é infantil e vulnerável em sua
entrada. Ao contrário, durante a Reconstrução, Gus e
Lynch entram no mundo branco com seus poderes
incontidos e comportamentos sem limites. A
transformação em monstruosidade por parte do Monstro,
Gus e Lynch só acontece quando cada um deles está
completamente afastado de seus mestres. Mas apenas o
Monstro aprende lições importantes e se torna um novo
“homem” por causa delas. Mesmo que o Monstro tenha
cometido três assassinatos, tendo matado Fritz, o dr.
Waldeman e Maria, sua morte necessária é um ato de
misericórdia. De uma maneira importante, o Monstro não
é visto como monstruoso por conta da luxúria. Esse seria
o caso de Gus e Lynch, já que eles não confundem
garotinhas brancas com flores, mas as enxerga como
amantes em potencial. Como Williams nota, a marca
principal de um monstro é a sua diferença sexual — uma
aberração — em relação ao homem “normal”.44 Ainda
pior, Gus e Lynch não podem ser “normais”; em vez
disso, a tentativa deles de misturar raças é uma
transgressão sexual realçada como algo claramente
perigoso.
Não há, em Nascimento, uma tentativa de
responsabilizar Stoneman por sua criação. Na verdade,
quando Lynch olha de forma romântica para Elsie, a filha
de Stoneman, ele está condenado a ser destruído por
Stoneman, seu próprio criador. Ao fazer isso, Stoneman é
realocado dentro da branquitude, parecendo se libertar
de sua confiança errada nos negros, ou, até mesmo,
deixando seu estado de insanidade temporária. No fim,
não há negros em Nascimento dos quais sentir pena ou
com quem se identificar.
Ao tomar emprestados os livros de Dixon e Shelley,
tanto Nascimento quanto Frankenstein adotaram a
contribuição literária antiga do bom/virtuoso/iluminado
contra o mal/corrupto/escuro. Contudo, o alcance do
filme como mídia de massa, o apelo do cinema como
uma nova tecnologia e as imagens surpreendentes de
Nascimento conduziram as histórias racistas de Dixon a
novos patamares. Nascimento foi o primeiro filme a ser
exibido na Casa Branca. O filme tem sido creditado como
responsável por ciclos de ressurgimento do interesse
pela Ku Klux Klan.45 Já foi usado como peça de
propaganda e ferramenta de recrutamento de
movimentos de supremacia branca e grupos
semelhantes à Ku Klux Klan, os neo-confederados e os
neo-nazis.46 Nascimento foi homenageado pela
Biblioteca do Congresso com a sua inclusão no Registro
Nacional de Filmes (1992) e celebrado pelo Instituto
Americano de Cinema, que o colocou como o 44° filme
mais importante de todos os tempos. Em 2004, o popular
DJ e produtor musical afro-estadunidense DJ Spooky
começou uma turnê mundial para grandes públicos em
locais como o Lincoln Center (Nova York) e o Festival de
Viena, apresentando o seu “remix” do filme, que ele
batizou de O renascimento de uma nação do DJ Spooky. O
DJ Spooky colocou uma batida de hip-hop no filme e
inseriu gráficos coloridos.
Para que fique entendido, O nascimento de uma nação
não faz parte do gênero de terror. Ainda assim, o filme
inseriu e fixou na imaginação popular estadunidense um
personagem de terror por excelência para instigar o
medo. Ao apresentar Gus, assim como outros homens
negros, como malévolos, Nascimento tem a dúbia
distinção de introduzir o desprezível “macho brutal” no
cinema. O macho brutal é um desprezível homem negro,
ainda mais perigoso por seu foco implacável na maldade.
Não é possível ser racional com ele, pois ele é irracional.
O personagem é tão primitivo e básico que só pode ser
visto como animalesco. Donald Bogle traz uma famosa
discussão sobre o dano que Griffith causou ao apresentar
os homens negros como machos brutais: “Crioulos
sempre enormes e malvadões, supersexuais e selvagens,
violentos e loucos ao sonharem com carne branca.
Nenhum pecado é grande demais para o homem negro.
[…] Griffith investiu pesado na bestialidade de seus
vilões negros e usou isso para criar ódio”.47 E, de fato,
variações do tema continuaram a aparecer na mídia,
como o infame comercial político sobre as saídas da
prisão de Willie Horton (1988), no qual um negro
assassino e estuprador condenado é apresentado, e em
filmes como O mistério de Candyman (1992), no qual
homens negros exalando sexualidade mantêm mulheres
brancas como prisioneiras.
NEGROS ASSUMEM OS FILMES DE SUSTO
Em resposta ao Nascimento, com o objetivo de combater
os seus efeitos, filmes negros — ou seja, filmes
estrelando atores negros e apresentando histórias
negras, e (idealmente) feitos e distribuídos por negros —
começaram a aparecer “com força”48 imediatamente.
Cineastas negros anteciparam corretamente o poder das
representações de Griffith e não ficaram parados
enquanto sua raça e cultura eram maculadas em
imagens. Filmes negros foram produzidos em resposta ao
Nascimento. Por exemplo, George e Noble Johnson, por
meio da sua Lincoln Motion Picture Company, fundada no
verão de 1915, lançaram The Realization of a Negro’s
Ambition (1916) em um esforço para apresentar um
contraste positivo a representação dos negros em
Nascimento. Então veio a Frederick Douglass Film
Company, fundada em 1916 pelo dr. George Cannon e
pelo reverendo dr. W.S. Smith com o objetivo específico
de rebater os efeitos de O nascimento de uma nação. O
primeiro filme da empresa, The Colored American
Winning His Suit (1916), mostrava os afro-
estadunidenses como trabalhadores, e a habilidade que
possuíam de se ajudar era o tema dominante.
O aclamado escritor e cineasta Oscar Micheaux, por
meio da sua Micheaux Book and Film Company (1919),
lançou o filme Nos limites dos portões (1920). Portões é
mais memorável não apenas por sua tentativa de rebater
o épico de Griffith, mas por reimaginar a infame cena “A
colheita sombria”. Em Portões, uma mulher negra49 é
quem se vê perseguida por um homem branco que
deseja estuprá-la.
Um dos benefícios do aumento de histórias negras,
produzidas por negros ou não, foi a introdução de uma
gama de imagens negras diversas, apresentando
personagens complexos e multidimensionais, assim
como uma ampla variedade de narrativas, incluindo
filmes de susto. Por exemplo, a Unique Film Co. lançou
Shadowed by the Devil (1916), um “filme negro” de
terror com três rolos e um elenco totalmente negro. Devil
é um conto moral focado em três personagens — “o bom,
o mau e o feio”50 — e naquilo que significaria ser um
“bom homem [negro]”.51 O filme “contrasta as
características de três indivíduos — uma ‘princesa’
mimada, um homem possuído pelo diabo [precisamente],
e Everett, ‘um filho bom e trabalhador de pais pobres,
um jovem sério e quieto, um marido amoroso e […] pai
[que] mostra os traços de sua aprendizagem precoce’”.52
Por mais intrigante que o filme possa parecer, Devil veio
e foi tão rápido quanto a própria Unique, pois a empresa
lançou apenas mais um filme (que não era de terror)
antes de seu súbito desaparecimento. A escassez de
lançamentos da Unique não era uma coisa incomum, já
que “a vulnerabilidade econômica de companhias
cinematográficas,
,fossem elas negras ou brancas, na era
dos filmes mudos significava que a maior parte delas só
tinha um ou dois filmes para mostrar”.53
Na verdade, as dificuldades econômicas encaradas
pelas companhias de cinema eram muito reais. Por
exemplo, Richard Norman, o proprietário branco da
Norman Film Manufacturing Company, detalhou, em uma
carta para Anita Bush, uma atriz negra que estrelou no
filme negro de susto The Crimson Skull (1921), os
desafios monetários e a escassez de recursos que ele
enfrentava. Bush pediu um salário maior pelo seu
trabalho, e, em resposta, Norman explicou suas
limitações financeiras: “como nosso filme vai passar
apenas em cinemas para pessoas negras, ele vai ter uma
distribuição em mais ou menos 120 cinemas; 85% dos
quais tem uma média de 250 assentos. Esses números
não se comparam com os 22 mil cinemas brancos nos
quais o nosso produto não terá espaço”.54 Bush não
recebeu o seu aumento de salário, mas assinou o
contrato com Norman para atuar em The Crimson Skull,
unindo-se ao seu antigo colega de teatro, o ator negro
Lawrence Chenault, no filme.
The Crimson Skull foi anunciado como “um filme de
mistério de faroeste” apresentando “o Caveira” e sua
gangue de “Terrores”, que, numa roupa preta com o
desenho de um esqueleto, brinca com as superstições ao
assombrar, aterrorizar e roubar suas vítimas. O filme
teve uma recepção tão boa em Baltimore, Maryland, no
Carey Theater, que foi “exibido por mais dois dias”.55
Assim como a Norman Film Manufacturing, a Ebony
Film Company (1915) não pertencia a negros. Assim
como algumas companhias brancas de cinema faziam, a
Ebony forneceu suas contribuições estereotípicas para as
representações da negritude em filmes como Money
Talks in Darktown (1916) e Shine Johnson and the
Rabbit’s Foot (1917). Embora fosse de propriedade
branca, a companhia era gerenciada por Luther J. Pollard,
o único funcionário negro, e mantinha um número
considerável de artistas negros. A Ebony Film Company
produziu vários filmes de susto, elevando seu catálogo a
uma impressionante coleção de duas dúzias de filmes. A
Ebony colocou negros no grande número de cinco curtas
de comédia de terror entre 1917 e 1918. Os cinco foram:
Devil for a Day (1917), Ghosts (1917), Mercy, The
Mummy Mumbled (1918), Spooks (1918) e Do The Dead
Talk? (1918).56
Os filmes foram exibidos para audiências brancas e
negras, ainda que fossem mais direcionados aos brancos,
como esta propaganda da empresa publicada em 1918
na revista Motion Picture World revela: “Pessoas de cor
são engraçadas. Se o povo de cor não fosse engraçado,
não existiriam as canções das plantações, nem banjos, a
dança do bolo,* sapateado, nenhum show de menestrel e
nem de vaudeville com pintura blackface. E eles são
engraçados no estúdio”.57
Em resposta aos lançamentos da Ebony, os
espectadores negros ficaram ofendidos, como escreveu a
“sra. J.H.” em uma carta ao editor publicada no jornal
Chicago Defender:
Eu considero meu dever, como parte da
respeitável classe de clientes do cinema,
protestar contra um certo tipo de filme que tem
sido e está sendo exibido nos cinemas deste
distrito. Eu me refiro aos filmes que vêm sendo
explorados pela Ebony Film Company, de acordo
com as propagandas, e que fornecem uma
amostra exagerada das ações desgraçadas dos
elementos mais baixos da raça. Foi com abjeta
humilhação que eu e muitos de meus amigos
assistimos às cenas de degradação exibidas no
cinema, e se o objetivo delas era causar riso, o
resultado não foi esse. Quando ações bestiais
dos degradados do nosso povo são ostentadas
diante dos nossos olhos como diversão, é
chegada a hora de protestar em nome da
decência comum.58
A imprensa negra foi igualmente contundente nas
críticas aos filmes da Ebony. O Chicago Defender
apontou: “quando você topar com a propaganda de um
desses tais filmes ‘só com gente de cor’, guarde o seu
dinheiro e economize tanto as suas moedas quanto o seu
respeito próprio”.59
Tal qual foi o teor geral dos filmes de susto — “pretos”
assustados arregalando os olhos em troca de risadas —
por quase duas décadas do século XX. Contudo, Oscar
Micheaux iria arrancar sorrisos e reinar supremo com
seus lançamentos de “filmes negros” de terror.
OSCAR MICHEAUX: MESTRE DO MACABRO
Oscar Devereaux Micheaux, filho de antigos
escravizados, nasceu em 1884 e foi criado no Kansas.
Com aproximadamente 26 anos de idade, em março de
1910, ele escreveu para o jornal negro semanal Chicago
Defender, descrevendo sua vida como um “residente,
pioneiro e dono de terras” no condado
predominantemente branco de Gregory, Dakota do Sul.
Enquanto cultivava (ele não abraçava a identidade de
“fazendeiro”), Micheaux começou a encher cadernos com
contos autobiográficos do personagem (pouco) ficcional
“Oscar Devereaux”, por fim transformando suas
anotações em seu primeiro livro autopublicado e
distribuído de maneira independente, The Conquest: The
Story of a Negro Pioneer. Este seria o primeiro dos seis
romances que ele escreveria.
A mudança de Micheaux para o cinema começou em
1918, quando George Johnson, da Lincoln Motion Picture
Company, fez contato com o escritor depois de ver um
anúncio no Chicago Defender sobre o seu livro The
Homesteader. A Lincoln estava interessada em adquirir
os direitos do livro a fim de adaptá-lo para as telas. Uma
enxurrada de comunicação entre eles resultou em
Johnson tentando “convencer Micheaux de que tinha
conhecimento suficiente do ‘ramo dos filmes’ e
prometendo que poderia transformar o livro em ‘um filme
de primeira classe’”.60 Contudo, Micheaux insistia que o
seu romance, de quinhentas páginas, merecia um longa-
metragem de seis rolos, e não apenas os dois ou três que
eram produzidos tipicamente pela Lincoln, comum para
os filmes negros do período. As negociações falharam, e
Micheaux determinou-se a produzir ele mesmo The
Homesteader em sua Micheaux Book and Film Company.
A companhia de Micheaux só iria produzir longas, um
reconhecimento de suas ambições em fazer filmes
longos.
Em 1919, com o filme mudo The Homesteader,
Micheaux se tornou o primeiro norte-americano negro a
fazer um longa-metragem. Micheaux continuou a
escrever e também trabalhou com o fim de adaptar seus
romances para a tela grande. O cineasta “escreveu a si
mesmo na história” ao tomar sua, agora famosa,
biografia para criar trabalhos que fornecessem um
ângulo sociopolítico sobre negritude que ainda não tinha
sido visto na cultura popular.61 Essas histórias se
tornaram a base de alguns de seus trabalhos mais
famosos, como os filmes mudos Nos limites dos portões
(1920), O símbolo do inconquistado (1920) e Corpo e
alma (1925). Micheaux era a epítome do cineasta
independente, que usava da bondade de sua rede de
amigos negros que o deixavam “filmar em suas salas e
disponibilizavam cadeiras para as exibições”.62 O
resultado foi uma carreira de mais de trinta anos em que
Micheaux produziu aproximadamente quarenta filmes.
Entre essas produções, havia pelo menos três filmes
mudos de susto que mais se assemelhavam ao gênero
terror de hoje. Micheaux não fazia comédias de terror.
Seus filmes tratavam sobre narrativa, um assunto muito
sério. Um dos filmes do tipo, um filme de susto
dramático, A Son of Satan (1924), quase não chegou a
ver a luz do dia por causa de algumas manobras escusas
de negócio por parte do próprio Micheaux.
As notáveis estudiosas de Micheaux, Pearl Bower e
Louise Spence, no livro Writing Himself into History:
Oscar Micheaux, His Silent Films, and His Audiences,
explicam que, para economizar dinheiro e maximizar os
lucros, o cineasta virou um distribuidor esperto. Ele não
submetia seus filmes, como era exigido, ao
licenciamento até que já estivessem agendados o filme e
a propaganda. A tática permitiu que Micheaux
economizasse tempo e recursos associados ao
asseguramento de uma licença, que eram gastos para
depois ele se ver obrigado a cortar alguma coisa a fim de
atender aos
,requerimentos do quadro de censores. Em
vez disso, Micheaux tentou fazer a banca agir a seu
favor, de maneira rápida e sem confusão, ao explicar que
os cinemas estavam esperando pelo filme dele e que os
censores não precisavam se preocupar com o conteúdo
dos filmes, porque eles só seriam vistos pelo público
negro.63 Para persuadir a banca, “seu cabeçalho durante
esse período listava todos os filmes que ele tinha em
distribuição e descrevia sua firma como “Produtores e
Distribuidores de Filmes Negros de Alta Classe”.64
Quando a banca da Virginia ameaçou o lançamento de
A Son of Satan, Micheaux agendou o filme mesmo assim,
sem aprovação, no Attucks Theatre em Norfolk, e fez
circular propagandas e outros materiais promocionais
para o filme. Só então a banca teve notícias de
Micheaux, que vinha ignorando os pedidos para que
mudanças fossem feitas no filme. No fim, a estratégia foi
uma proeza descarada:
Sua resposta tardia evidencia como ele
manipulou o sistema para fazêlo trabalhar em
sua vantagem, enquanto evitava as
consequências desagradáveis de suas próprias
artimanhas. Estabelecendo a cena para um
melodrama, e fazendo o papel do trapaceiro, ele
apelou para uma nota de “contrição”, dizendo
que havia viajado pelo sul em vagões Jim Crow
infestados de cinzas durante todo o verão e que
estava “sempre cansado e distraído” e por isso
nunca conseguiu ficar bem o suficiente para
“parar e explicar os motivos”. Usando o
paternalismo da banca, ele alegou pobreza e os
lembrou que, afinal, os filmes só eram vistos
pelo público negro”.65
O estado aplicou uma multa de 25 dólares, a pena
mínima, e rejeitou as cenas de miscigenação por
“motivos de discrição”.66
Os sete rolos de A Son of Satan incluíam Lawrence
Chenault, famoso por The Crimson Skull, em seu elenco.
De acordo com as propagandas, o filme apresentava “um
poderoso elenco coadjuvante de cor” atuando em uma
adaptação de uma história de Micheaux, The Ghost of
Tolston’s Manor.67 O filme fala sobre um homem que, em
uma aposta, concorda em passar a noite em uma casa
mal-assombrada, e foi descrito como “uma história de
aventura de deixar os cabelos em pé, que se passa em
uma casa assombrada, onde o arrastar de correntes e
fantasmas ambulantes são tão comuns quanto papagaios
e filhotes de cachorro”.68
O filme, contudo, não escapou de controvérsias. A
produção de Micheaux encontrou o desdém de alguns
por causa de sua representação de negros bebendo,
apostando e jogando dados. A Comissão de Cinema do
Estado de Nova York rejeitou o filme, impedindo, dessa
forma, sua licença para tais representações, como afirma
a Comissão em sua carta para Micheaux:
O filme é repleto de cenas de bebedeiras e
baderna, e mostra homens mascarados ficando
bêbados. Mostra jogos de azar envolvendo
dinheiro, um homem enforcando sua esposa até
a morte, o assassinato do líder do bando
mascarado e o assassinato de um gato por
apedrejamento. Existem muitas cenas de crime.
O filme é tão caricato que, na opinião da
comissão, é “inumano” e “incitaria o crime”.69
O longa, de acordo com os padrões da época, era
particularmente recheado de estereótipos, exibindo
homens negros fazendo “badernas” de todos os tipos,
enquanto os homens brancos eram retratados como
membros selvagens da Klan. De tal forma, o filme
evidenciava como Micheaux podia ser “descaradamente
desafiador para negros e brancos nos Estados Unidos”.70
Ainda assim, A Son of Satan foi, em geral, bem recebido.
D. Ireland Thomas, do Chicago Defender, escreveu sobre
o filme:
alguns podem não gostar da produção, pois ela
exibe a nossa raça nas cores deles. Podem
protestar contra a linguagem empregada. Eu
mesmo não apoiaria esse aspecto do filme, mas
preciso admitir que é realista, sim, eu acho, até
demais. Devemos dar créditos a Oscar por nos
ter fornecido coisas reais […] eu não quero ver a
minha raça em botecos ou mesas de apostas.
Mas o que desejamos não dá dinheiro. Aquilo
que o público pede é o que faz o saco de
moedas tilintar.71
O próximo filme de susto de Micheaux, The Devil’s
Disciple (1925), tem Lawrence Chenault em seu elenco
mais uma vez. É descrito no New York Amsterdam News
como “intensamente cativante e dramático” ao contar a
história dos perigos da cidade grande, o Harlem, no caso,
para mulheres jovens. O perigo toma a forma de um
homem no filme, um discípulo de Satã, que seduz e
explora “mulheres das ruas”. Uma mulher acredita que
ela pode mudar o homem, mas em vez disso se torna
uma vítima da degradação. De acordo com o Pittsburgh
Courier, “o que se segue cria uma história tão cheia de
suspense inquietante e situações dramáticas que você
fica preso no êxtase do entretenimento do qual não
escapa até que o final passe pelos seus olhos”.72
Micheaux ainda não havia terminado de lançar coisas
assombrosas. The Conjure Woman (1926) foi baseado na
coletânea homônima de contos de Charles Chesnutt de
1899. O livro apresenta sete contos, todos situados em
Patesville, Carolina do Norte, centrados nos atos de
conjuramento — uma magia vodu73 — feitos por negros
(escravizados e livres) ao resistirem às crueldades
infligidas a eles por brancos racistas e violentos.
Micheaux escreveu para Chesnutt delineando suas ideias
para uma adaptação cinematográfica da primeira história
de The Conjure Woman:
Eu acho que você poderia desenvolver uma boa
sinopse da primeira história de The Conjure
Woman. Transformar o caso do homem e da
mulher em uma boa história de amor, deixar que
tenha, se possível, uma casa mal-assombrada,
sendo que as assombrações seriam segredos
revelados perto do final, e a heroína que foge
para lá escondida — qualquer coisa que choque
ou surpreenda, mas que tenha um bom final e
que forneça homens e mulheres como
protagonistas fortes (Oscar Micheaux para
Charles Waddell Chesnutt, 30 de outubro de
1921, Arquivos de Charles Waddell Chesnutt,
Sociedade Histórica de Western Reserve,
Cleveland, Ohio).74
Porém o filme, por motivos desconhecidos, não fez muito
barulho. O que se sabe é que a produção não foi muito
promovida e teve exibições limitadas.75
Os filmes de Micheaux têm sido interpretados como
“filmes raciais” e contos morais que tinham o duplo
objetivo de circular mensagens positivas de ascensão da
raça enquanto exibiam os negros como seres humanos
complexos — capazes de amar e bons, falhos e fracos,
maus e honestos. Micheaux também tinha um bom olho
para histórias cativantes. Seus filmes de susto eram
provocativos, suspenses psicológicos (não apenas filmes
assustadores de “encontrões no escuro”). Seu trabalho
abriria as portas para pessoas como o diretor/ator
Spencer Williams e seus “filmes negros” de terror com
temas morais dos anos 1940. Até então, contudo, a
participação negra no terror seria quase exclusivamente
desfigurada por descasos imagísticos em filmes de terror
“com negros”.
CONCLUSÃO
Foi contra o pano de fundo desse início do século XX,
quando W.E.B. Du Bois lamenta pelo negro que mede “a
própria alma pela fita métrica de um mundo que o olha
com divertido desdém e pena”, que os negros entraram
na produção de filmes.76 Eles buscaram oferecer
entretenimento a partir de seu próprio e vantajoso ponto
de vista da negritude enquanto combatiam as
representações desdenhosas prevalecentes que eram
circuladas por aqueles particularmente investidos em
preservar noções puras de brancura. Certamente, para
esses cineastas negros, o lucro em potencial também
não incomodava. Contudo, as mentiras de Griffith se
mostraram motivações fortes para que negros entrassem
na área — rapidamente e em grande número.
Companhias independentes de filmes negros e cinemas
negros começaram a aparecer. No fim da década de
1920, o número impressionante de setecentos cinemas
negros atendiam ao público negro (provando que a
“renascença” não foi apenas um fenômeno do Harlem).77
Ainda assim, a vida do cineasta negro estava longe de
ser fácil. Censura, distribuição, acesso a recursos
,de velhos clássicos e
lançamentos bombásticos saídos de festivais. Eles
também adquiriam documentários. Era um ambiente que
de fato poderia capitalizar com a produção de uma
programação fresca e original. Felizmente para nós, Phil
e eu, Sam Zimmerman, ex-editor-chefe do popular site
de terror Shock Till You Drop, era agora o curador de
filmes da Shudder. Um admirador do meu trabalho e o
primeiro a me oferecer uma oportunidade de escrever
fora do ambiente de meu próprio site, Sam recebeu um
resumo completo do documentário e ele realmente
desejou que o projeto chegasse aos seus chefes. O
conceito original era um seriado em quatro partes com o
título Separate Scares. O objetivo cinematográfico tinha a
ver com o pensamento mais dinâmico de Phil, que
apontava para a ideia do público negro “se ver” nas
telas. Como esse público reagiria, se houvesse uma
reação? Além disso, as pessoas negras contando suas
histórias a partir das cadeiras do cinema permitiria que o
documentário — algo que aprendi com o feminismo
negro — realizasse um exame crítico e imperativo do
conhecimento adquirido por meio da vivência de pessoas
que participaram daquela história. Ademais, seria uma
brincadeira interessante com o humorado estereótipo de
que o público negro é bem vocal em salas de cinema,
especialmente ao assistir filmes de terror. Nós tínhamos
um vídeo promocional que, engenhosamente, abria com
o comediante Eddie Murphy fazendo uma piada sobre
filmes de casas mal-assombradas em seu especial de
comédia stand-up Delirious, de 1983, seguido da
projeção de imagens de personagens negros ao longo
dos mais de cem anos de história do gênero. Nós
estávamos prontos para registrar visualmente essa
história em quatro horas ou mais, traçando
cuidadosamente as décadas e seus melhores momentos
com o livro de Robin servindo de guia. Sam se tornou um
meio de campo entusiasmado entre nós e os titulares da
Shudder para essa produção em potencial. Assim,
esperamos e respondemos perguntas por e-mail à
medida que elas chegavam.
Então, a nonagésima cerimônia do Oscar foi ao ar no
dia 4 de março de 2018. Eu nunca prestei muita atenção
em cerimônias de premiação, mas Peele deixou uma
impressão tão forte de Corra! que conquistou quatro das
principais indicações ao Oscar, o que é extremamente
raro para qualquer coisa que sequer se aproxime do
gênero de terror. Isso foi o bastante para gerar um leve
interesse naquilo que, na minha cabeça, era um assunto
imprevisível. Um choque agradável atravessou meu
corpo quando anunciaram que Jordan Peele havia
ganhado o prêmio de melhor roteiro original. Ele subiu ao
palco e falou sobre as dificuldades que enfrentou para
realizar seu projeto e sua enorme pilha de inseguranças.
Peele enfatizou uma mensagem de perseverança. Eu
ainda não tenho certeza se ele já havia se dado conta do
impacto que o filme criado por ele causaria. Horas
depois, no atribulado dia útil seguinte, Phil e Kelly Ryan
(parceira da Stage 3 e produtora executiva de Horror
Noire) receberam um aviso da Shudder de que eles
estavam prontos para transformar Horror Noire em
realidade.
De uma série em quatro partes, o projeto passou a ser
um filme de setenta a noventa minutos. Juntamente com
essa grande mudança, Phil aproveitou a oportunidade de
se tornar editor-chefe da relançada revista Fangoria, o
que tornou impossível seu envolvimento diário no
projeto. Ele e Kelly conseguiram outra produtora com
anos de experiência na televisão, Danielle Burrows, para
ajudar a tapar os buracos dos aspectos técnicos da
produção de vídeo com os quais eu não estava
familiarizada. Phil deu um jeito de estar conosco sempre
que possível, lidando com os dois empregos de forma
admirável e profissional.
Eu era a pessoa, agora produtora e coautora, que
tinha conhecimento e paixão pelo conteúdo. Meu
trabalho era assegurar que entrevistaríamos as pessoas
certas, confirmar os temas acerca da história do terror
negro que iríamos abordar, desenvolver todos os pontos
de discussão e conduzir cada entrevista. Encontrar um
diretor foi um desafio, já que vários candidatos
talentosos se interessavam por essa história. Xavier
Burgin, graduado na Escola de Artes Cinematográficas da
Universidade da Carolina do Sul, era tão afiado em sua
comunicação e tão cuidadoso em seus trabalhos,
conceitos e visão, além de ser amigável, que todos nós
concordamos que ele era a pessoa certa no lugar certo
para juntar um grupo predominantemente formado por
pessoas negras, as quais eu vi trabalharem juntas
arduamente para dar a Horror Noire a textura visual de
que precisava para ganhar vida. Apesar de problemas
climáticos, físicos ou mentais após mais de oito horas de
filmagem por dia, lançando perguntas e pontos de
discussão para pessoas que eu assisti em alguns dos
meus filmes favoritos por décadas, eu me vi extasiada ao
fazer o trabalho. Levei os feedbacks de Phil e Kelly a
sério e os apliquei. Fico agradecida que eles tenham me
deixado tomar a dianteira enquanto gravávamos, assim
pude afiar minhas habilidades mais adormecidas. Eu
precisava daquele empurrão.
A própria Robin estava na Universidade A&M, em
College Station, a duas horas de distância de Austin,
Texas. Danielle e eu fizemos a viagem e tivemos uma
recepção calorosa por parte de Robin e de sua adorável
equipe para um dia de filmagem. Sua presença na tela
ajudou bastante a arredondar a história que queríamos
oferecer ao público. Como um bebê curioso observando
uma anciã sábia, uma nova explosão de energia nasceu
dessa filmagem, pois, assim como Tananarive Due
(autora, educadora e produtora executiva de Horror
Noire), as duas se aprofundaram muito na história do
terror negro, ao ponto de nós três podermos discutir o
assunto em detalhes. A gravação com Jordan Peele
fechou o círculo quando seu escritório se transformou em
um grande aceno visual, com o diretor sentado na
mesma cadeira em que seu protagonista foi hipnotizado.
Com uma luz mais quente para acentuar suas
características e tendências geeks de terror, Peele
passou uma mensagem sóbria a respeito de como o
terror deve manipular as expectativas da audiência em
relação à representatividade negra. Para quebrar essas
expectativas, sendo ao mesmo tempo sensível à época
em que vivemos, Peele evidenciou que o vácuo de Corra!
é um lugar que ele sempre soube que deveríamos
desconstruir e eliminar de nossas vidas. Mesmo sendo
difícil, ele estava ciente de que nós poderíamos ser mais
e fazer mais em um gênero que havia esquecido a voz
negra por tanto tempo.
Após a filmagem, meu maior obstáculo foi entender
como criar um roteiro a partir de inúmeras páginas de
transcrições e tecer uma história com os temas que Phil
e eu concordávamos ser sólidos e perfeitos para o
projeto. Depois de algumas deliberações, decidimos que
uma abordagem cronológica seria mais interessante
antes de seguir para a edição. Se já houve no mundo um
lugar confortável para ser uma pessoa introvertida
determinada a contar a história dos negros afro-
estadunidenses no cinema, esse lugar foi a sala de
edição, com os editores Scott Strobel e Horatiu Lemnei.
Eles ouviam, eram pacientes e estavam se divertindo
tanto quanto eu. Eu precisava das sugestões deles e
aceitei os pedidos que faziam, e acabei aprendendo
muito sobre o que “funciona” e o que “não funciona”
quando você está montando os quebra-cabeças de horas
de filmagens para formar uma história coerente. Phil
preencheu buracos nas filmagens uniformemente,
Danielle conseguiu novos recortes de imagens e eu
intuitivamente sabia quais filmes usar e onde encontrar
as cenas de que precisávamos. Passamos semanas
refinando corte atrás de corte com notas executivas e
novos pareceres enquanto as notícias do terror
avançavam após o barulho criado por Corra!.
Nem é preciso dizer que o produto final foi o resultado
de um esforço em equipe e uma experiência que nunca
me cansarei de debater. Minha única esperança é que o
público
,(como
equipamentos, atores, pagamentos) e a necessidade de
um retorno do investimento eram problemas
significativos e frequentemente impossíveis de serem
resolvidos. Como resultado, cineastas não negros ainda
dominavam a indústria, e a visão deles acerca dos
negros e da cultura negra prevalecia. Parecia não haver
meios de deter as representações de negros como
figuras monstruosas ou as comédias de terror
racialmente ofensivas, nas quais os negros eram vítimas
de violências nas mãos dos brancos. Pior ainda, o negro
assustado de olhos arregalados estava só começando a
aparecer, chegando ao ápice na década seguinte. A
próxima década, de 1930, viu uma diminuição de
performances com pintura blackface, dando mais
oportunidades para atores negros “reais”. Contudo, os
papéis destinados aos negros, especialmente no gênero
do terror, que estava sendo formalizado nos anos 1930,
eram terrivelmente regressivos. A década também viu
um aumento da participação de mulheres negras: elas
não seriam mais interpretadas por homens brancos com
o rosto pintado, e assim mais papéis foram escritos para
elas, ainda que frequentemente interpretassem bruxas
vodus seminuas ou empregadas completamente vestidas
e praticantes de vodu.
Na década seguinte havia ainda mais problemas
representacionais para os negros surgindo no horizonte.
“Filmes da selva” — sobre as vidas não civilizadas de
negros que viviam em lugares como o continente
africano ou a ilha do Haiti — se tornaram populares nos
anos 1930. As contribuições desses filmes para o gênero
do terror foram profundas, e os tropos dessas produções
continuam populares até hoje. Negros retratados como
figuras selvagens, praticantes malvados de vodu falando
“uga-buga” enquanto se açoitam numa frenética dança
vodu cadenciada por música da selva (percussão)
rivalizavam com o grotesco de Gus e Lynch. Além disso,
os brancos ainda eram retratados como superiores e
iluminados… e ainda eram os protetores e salvadores
das mulheres, que continuavam a ser ameaçadas pelos
negros. Havia muito pouco para combater essas
imagens, já que 1930 foi mais uma década de filmes de
terror “com negros” do que de “filmes negros” de terror.
* Embora a autora naturalize uma hierarquia entre humanos (negros)
e animais em um zoológico, como se o absurdo da exibição fosse o
fato de ser experienciado por humanos, para um discurso
antirracista que vai na raiz do problema, é interessante pensar que a
lógica da mentalidade racista (diferenciação e hierarquização com
base no fenótipo) é correlata à lógica do especismo (diferenciação e
hierarquização com base na diferença de espécie, basicamente a
oposição animal “humano” e animal “não humano”). Dizer “como se
negros fossem animais” pontua uma necessidade de dissociar
negros de animais com veemência (devido ao histórico de
animalização dos negros, no discurso que associa negritude a
características não-humanas) tal que não pontua o fato de que os
“animais não-humanos” não deveriam ser violados, exibidos e
agredidos. Para as irmãs Aph e Syl Ko, grupos sociais marginalizados
tendem a focar que a diferença mórfica e “espiritual” deveria
pressupor uma diferença de tratamento do grupo privilegiado,
porque ignoram o fato de que por “humano” a mentalidade
eurocêntrica quer dizer “branco”, e os demais grupos marcados pela
diferença são “não-humanos” e, por extensão, lidos como “animais”.
Assim, elas defendem que a luta não deveria ser pra ser tratado
melhor que o animal, mas pelo fim da lógica hierarquizante. Ver: Ko,
Aph; Ko, Syl. Aphro-ism: essays on pop culture, feminism, black
veganism from two sisters. Nova Iorque: Lantern Books, 2017. [NE]
* Cakewalk no original, refere-se à dança dos escravos norte-
americanos de ritmo sincopado surgida a partir de uma tentativa de
imitação do minueto e das quadrilhas dos brancos europeus em
meados do século XIX. Mario Jorge Jacques conta, em seu livro
Glossário do Jazz (Biblioteca 24 horas, 2009), que o nome surgiu das
reuniões em certas fazendas que autorizavam a dança aos domingos
como diversão também para os brancos e que presenteavam com
um bolo os melhores dançarinos. A base musical era composta por
marchas sincopadas e que vieram a contribuir para a característica
rítmica do ragtime. [NE]
HORROR
NOIRE
1930
FEBRE DA SELVA, UM ROMANCE DE
HORROR
Vodu e zumbis. Coisa de criança, não é?
Filmes B. Bem, errado. A uma hora de
avião de Miami está o país caribenho do
Haiti, e esse país está sendo tomado
como refém por sacerdotes vodus que
podem, e transformam, pessoas em
zumbis. — BILL O’REILLY (20)1
Em 35 curtos anos (1895-1930), nos Estados Unidos, os
filmes se transformaram de passatempos caros e
experimentais de inventores em uma indústria comercial
completa — “Hollywood”. Na metade da década de 1930,
a produção de filmes era saudada como uma indústria
líder nos Estados Unidos, valendo 2 bilhões de dólares. A
média de frequentadores de cinemas cresceu
bruscamente, de 40 milhões em 1922 para 48 milhões
em 1925 e 110 milhões em 1930.1 A década de 1930
também foi quando o termo “filme de terror” finalmente
entrou para o vocabulário.2
Quase todas as companhias de cinema começaram a
produzir filmes de terror; contudo, a Universal pode ser
creditada pela inovação dessa “Era de Ouro” dos filmes
de terror com sua série de filmes de monstros hoje
considerados clássicos — Drácula (1931), Frankenstein
(1931), A múmia (1932) e O homem invisível (1933).3 Os
monstros da Universal receberam a companhia de outros
filmes populares de terror, como Os assassinatos da rua
Morgue (1932), e várias sequências, como A noiva de
Frankenstein (1935) e A filha de Drácula (1936). Graças,
em parte, aos esforços da Universal, a década de 1930
permanece como um dos períodos mais celebrados na
história do cinema. Infelizmente os negros ficaram
amplamente ausentes dos filmes de monstros da
Universal, com a rara exceção do ator negro Noble
Johnson, que fazia pontas como o servo “Janos, o Negro”
em Os assassinatos da rua Morgue, e como o empregado
“o Núbio” em A múmia. Um escritor do jornal negro
Pittsburgh Courier acreditava que a Universal tinha pouco
respeito pelo público negro durante esse período.4 Os
negros realmente estavam sendo desprezados pelo
cinema, mas esse desprezo não vinha apenas da
Universal.
Cineastas negros tinham poucas oportunidades de
informar a indústria cinematográfica nessa época. A
chegada do som, uma inovação tecnológica cara, e a
ocorrência da Grande Depressão, que causou um colapso
econômico nos mercados globais, foi uma mistura mortal
para os cineastas negros. Já com dificuldades financeiras,
muitos viram suas empresas falirem completamente.
Filmes negros passaram a ser roteirizados, produzidos e
distribuídos por brancos, que também detinham sua
propriedade, mas com atores negros (e, ainda que
raramente, brancos em blackface), sendo destinados
para um público branco. A representação de negros no
cinema, fosse no terror ou não, era notavelmente
estática. Realismo social frequentemente ficava em
segundo plano em favor de representações de negros
felizes servindo brancos, como em dramas como Noivado
na guerra (1935), Cantando saudades (1936) e … E o
vento levou (1939).
O terror não era diferente, encontrando até mesmo
um jeito de incluir alguma cantoria jovial (por exemplo,
Lua negra [1934]). Os negros não eram representados
nessa década como os “novos negros” progressistas
celebrados durante a era da Renascença do Harlem. Pelo
contrário, eram apresentados como figuras
subdesenvolvidas e infantis. Em vários casos, seu lar
ainda era uma plantação branca, embora o cenário da
plantação não fosse mais o sul pré-guerra, mas algum
tipo de selva caribenha amaldiçoada que ameaçava
engolir o espaço civilizado criado pelos brancos. Magia
vodu do mal figurava de forma proeminente, assim como
animais monstruosos, em especial o gorila, que também
tinha uma queda por loiras. Contra esse
,emaranhado de
temas genéricos, uma constante era o romance, que
fazia questionar: seriam a floresta, o vodu ou até mesmo
o gorila, capazes de atrapalhar a busca por um amor
branco?
CONQUISTANDO O MUNDO NEGRO
O terror de 1930 tinha uma obsessão por histórias
“saídas da África”, nas quais os brancos “conquistavam”
a África. Era uma preocupação que poderia ser atribuída
às aventuras do início do século XX do presidente
Theodore Roosevelt (1901-1909). Roosevelt era um
historiador publicado (foi nomeado presidente da
Associação Histórica Americana); era um naturalista,
conservacionista e explorador (ele é creditado pela
descoberta de mais de mil quilômetros não mapeados do
rio Roosevelt); trabalhou com o Smithsonian, com o
Museu Nacional de História Natural (Washington, D.C.) e
com o Museu Americano de História Natural (Nova York).
Roosevelt pode ter sido o primeiro presidente
“midiático”, já que sua voz, em um discurso político, foi a
primeira a ser gravada para circulação em massa.
Roosevelt também permitiu que sua imagem fosse
gravada em uma coleção de clipes de filme mudos.
Existem vários escritos acadêmicos e de não ficção de
autoria de Roosevelt. Juntos, esses artefatos de mídia
fizeram de Roosevelt um dos líderes mais publicamente
acessíveis do início do século XX.
Como resultado da presença voluntária de Roosevelt
na mídia de massa, os norte-americanos tiveram uma
ampla cobertura das labutas de sua vida, incluindo suas
escapadas em safáris. Em 1909 ele visitou o então Congo
Belga em uma expedição, com o objetivo de adquirir
animais para museus norte-americanos. Ele e seu time
voltaram com um tesouro de 11 mil espécimes
(elefantes, hipopótamos, rinocerontes, insetos) para
preservação e/ou montaria. Na mente do público,
Roosevelt havia “conquistado” a África.
Roosevelt contribuiu com os próprios mitos por meio
de seus escritos sobre safáris e regularmente se
apresentava como uma figura gentil e racional. Escreveu
que quase sentia pena dos carregadores negros em suas
expedições, já que eles tinham apenas suas roupas, um
lençol e uma tenda; isto é, até conhecer Kikuyu, que
tinha apenas um pequeno lençol e nenhuma roupa ou
tenda. Foi então que Roosevelt acalmou sua culpa ao
proclamar “o quão mais bem tratados” eram seus
carregadores “pelo simples fato de estarem no safári de
um homem branco”.5 Tais experiências foram bem
documentadas graças ao grande compêndio
robustamente divulgado dos escritos, citações e escritos
de Roosevelt. O projeto do compêndio começou em 1928
e foi concluído em 1941, o que coincide com a grande
proliferação de filmes sobre norte-americanos dominando
a selva.
AMOR NA SELVA… COM MACACOS… QUE
NOJO!
Ocasionalmente um boato de algum tipo vira uma
história de primeira página, mas seria melhor que
os jornais fossem “avisados” da estratégia.
— The Encyclopedia of Exploitation (138)6
“Animalística, sexualidade ‘selvagem’.” Patricia Hill
Collins, em seu livro Black Sexual Politics, observa que
mulheres negras não conseguem se livrar de tais
estereótipos sexuais. Hill Collins escreve sobre
“percepções ocidentais de corpos africanos”, notando
que a “mistura de peles de animais, […] culto aos seios e
foco no traseiro” continuam sempre presentes.7 Hill
Collins nota que desde Sarah Baartman (apelidada
pejorativamente de “Vênus Hotentote”) até Josephine
Baker e as Destiny’s Child, a atração — ou, mais
precisamente, a comerciabilidade —— dos corpos dessas
mulheres negras tem sido ligada a figuras primitivas
hipersexuais, referidas de forma coloquial como
“aberrações”. De forma significativa, é a sexualidade da
mulher negra — e não o romance negro ou o amor — que
captura a imaginação e a atenção dos criadores de
imagens durante o ciclo do terror da década de 1930.
O filme de terror “com negros” Ingagi, de 1930, é
inteiramente dedicado à sexualidade animalesca de
mulheres negras. Situado no Congo, é dito que o filme foi
influenciado pelas viagens de Roosevelt pelo país. Ingagi
é um dos filmes de terror mais nauseantes, não por
causa dos tropos esperados de horror, como sangue e
violência (não há nada disso), mas por causa de seu
ataque nojento contra a sexualidade negra.
Ingagi conta a história de cientistas pesquisadores
brancos que viajam para as profundezas da selva
congolesa a fim de investigar os estranhos rituais de uma
tribo que tanto reverencia quanto teme os gorilas, ou
“ingagis”. Os congoleses oferecem suas mulheres
virgens para as feras. A história do filme é uma daquelas
que dão conta do iluminismo branco. Chocados com os
sacrifícios rituais dos nativos e incapazes de tolerar essa
prática por mais um momento sequer, os cientistas
trabalham para resgatar uma jovem vítima negra das
garras de uma besta-símia. Enquanto salvam a vida da
mulher negra e matam o animal, os homens, e,
consequentemente, a plateia do filme, são levados a crer
que a mulher não foi livrada apenas de ser espancada
e/ou devorada pelo animal. Em vez disso, ela foi poupada
de um encontro altamente erótico com a bestialidade.
Para encerrar o assunto, outra mulher seminua emerge
da selva no fim do filme segurando um bebê humano que
tem a pele coberta de pelos. O infante é descrito como
“uma criança estranha, mais símia do que humana”.
Ingagi não foi vendido como um filme de terror pelo
seu diretor William Campbell ou pelos produtores da
Congo Pictures, Ltd. Pelo contrário, foi promovido como
um verdadeiro e factual documentário. Ou seja, Campbell
afirmou que Ingagi foi simplesmente editado, mas que
era filmagem não adulterada e feita pelos membros da
exposição. Ele garantiu ao público que os membros da
expedição e as atividades da tribo eram bem reais, e que
nada fora ensaiado. Em materiais promocionais, frases
de efeito incentivavam os frequentadores de cinema a
acreditarem que os eventos representados em Ingagi
eram verdadeiros: “Você já ouviu falar sobre coisas
assim, mas não acreditou […] Mas este filme mostra a
realidade pela primeira vez”, e “Um milhão de emoções
[…] Uma gravação verdadeira de aventura africana!”, e
“Mitos e lendas da parte mais escura da África trazidas
para a realidade por meio do incrível trabalho das
câmeras!”. Rapidamente, o filme passou a ser
popularmente referido como “o filme de sexo com
gorila”, quebrou recordes de bilheteria e até inspirou
uma música chamada “My Ingagi”.8
Uma humana fazendo sexo com um gorila nunca
apareceu em cena. Em vez disso, o público foi mantido
literalmente no escuro à medida que o trabalho de
câmera e a baixa iluminação apenas sugeria a cópula
interespécies, impedindo a visão de atrizes brancas com
o rosto pintado de preto que retratavam algumas das
nativas.9 Contudo, a arte do pôster de divulgação
prometia bestialidade explícita (de forma figurativa e
literal), pois mostrava um gorila, em posição ereta,
sequestrando uma mulher negra careca com os seios
expostos. O gorila segura a mulher com os seus dois
“braços” e aperta um dos seios da negra entre os dedos.
De tal forma, Ingagi alude a uma “sexualidade masculina
negra e agressiva na forma do gorila” que caça mulheres
negras lascivas.10 Aqui, mulheres negras são envolvidas
em um esquema complexo de aberração, onde são
hipersexuais e disponíveis ao mesmo tempo, mas nem
um pouco femininas, bonitas ou atraentes (de acordo
com os padrões tradicionais do Ocidente). Materiais
promocionais também incluíam a pergunta: será que
Darwin estava certo? Logo, Ingagi sugeria uma ligação
direta entre a genética dos negros e as “bestas negras
supermasculinas”.11 O resultado foi um filme que
convidava o público a associar as práticas sexuais negras
com bestialidade e provocava nojo diante da habilidade
única dos negros de acasalar com um animal.* De tal
forma, o filme inteiro se utilizava de dicotomias binárias,
trabalhando de forma eficiente para separar os brancos
civilizados (humanos) dos negros selvagens (bestas),
distinguindo, assim, os brancos como exemplos
,de
superioridade racial.
A controvérsia em relação à Ingagi não parou por aí.
De acordo com Andrew Erish, repórter do LA Times, que
escreveu uma longa matéria especial sobre o filme,
vários meses depois de seu lançamento as dúvidas sobre
sua autenticidade começaram a surgir. Ingagi incluía
cenas e sobras de filmagem de filmes mais antigos e
bem conhecidos como Heart of Africa (1915) (outro
“documentário” sobre safáris na África). Muitas das
cenas com gorilas em Ingagi foram filmadas em um
zoológico na Califórnia. Foi provado, por meio de um
depoimento juramentado assinado, que o ator Charles
Gemora interpretou o gorila usando uma fantasia.
Alguém reconheceu uma das mulheres “africanas” do
filme como uma atriz figurante recorrente em filmes
hollywoodianos. O jornal Los Angeles Examiner reportou
que “negros comuns das ruas” foram escalados como
homens tribais. Ainda assim, quando questionados, o
diretor do filme e outros envolvidos na produção
insistiram que Ingagi era autêntico, e as cidades
continuaram a exibir o filme dessa maneira. Três anos
depois, quando a estadia do filme nos cinemas acabou, e
depois que a companhia responsável pela produção do
filme alardeou lucros de mais de um milhão de dólares, a
Comissão Federal de Comércio (FTC) determinou que os
cineastas não poderiam mais divulgar o filme como uma
produção autêntica.12 Como parte das evidências, o FTC
notou que “ingagi” era uma palavra inventada.13
Em meio a toda essa controvérsia, ninguém pareceu
se importar com os ataques contra a sexualidade negra.
Apesar do estabelecimento de um código governante de
moral e decência na indústria do cinema, que incluía a
rejeição de nudez feminina, verdadeira ou implícita, se
estivessem a serviço de um interesse lascivo, os corpos
de mulheres negras não contavam. O corpo negro
“nativo”, nem moral e nem decente, “se tornou
instantaneamente um local de excitação sexual e
degradação racial sancionada”.14 Infelizmente, não
existiram campanhas para boicotar o filme, como
aconteceu no caso de O nascimento de uma nação. No
fim, Ingagi entrou para a história, de acordo com uma
resenha do jornal The New York Times, como “um dos
trotes mais ultrajantes já feitos”.15
Pouco depois de Ingagi, surgiu O passo do monstro
(1932). Esse filme de terror “com negros” é mundano
(principalmente quando comparado com Ingagi). A
ganância motiva uma dupla de empregadas domésticas
a se livrar de Ruth (Vera Reynolds), a filha de seu
empregador recentemente falecido. Ruth acabou de
herdar a fortuna do pai e a mansão, que, por acaso,
também tem um gorila no porão. As empregadas se
fantasiam de gorila, planejando matar Ruth e colocar a
culpa no animal. Contudo, no último minuto, Ruth é salva
por seu intrépido noivo, Ted (Rex Lease).
O passo do monstro exibe vários clichês de terror que
vinham sendo desenvolvidos ao longo dos anos —
animais assustadores, a mansão gótica e mal-
assombrada, a bela vítima branca, o salvador branco,
romance, e, de forma interessante, o negro engraçado. O
passo do monstro conta com a participação do famoso
(infame) ator Willie Best, que é apresentado com o nome
artístico obviamente ofensivo “Sleep ’n’ Eat” [dorme e
come], no papel de Exodus. No filme, Exodus é o
motorista e mordomo de Ted. Exodus é infantil,
indisciplinado e sempre se assusta, profunda e
comicamente, com tudo — relâmpagos, o escuro, casas
grandes, barulhos e até mesmo um tapete de urso. O
filme é uma sucessão de sustos levados a sério, exceto
quando Exodus aparece em cena. O filme até mesmo
termina de maneira cômica. Exodus e o gorila finalmente
ficam de frente um para o outro. Espera-se que seu
encontro com o animal credite a teoria darwiniana de
que o homem (negro) descende do macaco (como
também é teorizado em Ingagi): “Quer dizer que ele tem
parentesco comigo?! […] Bem, eu não sei dizer. Eu tinha
um avozinho que se parecia um pouco com ele. Mas que
não era tão ativo assim.”
De maneira significativa, Exodus também ilustra a
maneira tendenciosa como o público via o negro norte-
americano em relação àqueles de outras partes não
ocidentais do mundo. Quando se dava em ambientes
domésticos, a representação dominante dos negros
durante o período era cômica. Essa representação se
alinhava às representações seguras, alegres,
subservientes e dessexualizadas de filmes como … E o
vento levou, que remontavam a um período mais estável
e ordeiro da história americana. Contudo, quando os
negros (interpretados por atores afro-estadunidenses)
eram transplantados para locações estrangeiras, eles
eram representados como figuras perigosas, selvagens
hipersexuais que se mostravam uma ameaça
considerável para os brancos. Ingagi e vários outros
filmes de selva (como Tarzan, o filho da selva [1932] e
Lua negra [1934]) apoiam essa teoria.
O REI DO AMOR SÍMIO
A popularidade de Ingagi e o sucesso de bilheteria
provou que a fórmula de primitivos “escuros” somada a
uma superioridade “clara” continuaria a trabalhar bem e
de forma lucrativa. Foi o sucesso de Ingagi que
convenceu o estúdio RKO a autorizar o filme de terror
“com negros” King Kong (1933), no qual um macaco
gigante, Kong, se apaixona, persegue e sequestra uma
mulher branca.16
Se Ingagi fez com que o público considerasse os
costumes sexuais repulsivos das mulheres negras, então
King Kong estendeu o ataque metafórico aos homens
negros por meio das imagens de um grande gorila negro
perseguindo uma mulher branca. É um caso, como Snead
argumenta de maneira persuasiva, do “negro codificado”,
quando a negritude é representada implicitamente na
figura do macaco.17 Kong é “enegrecido”, ou racialmente
codificado, quando justaposto em relação à presença de
brancos no filme. Kong é a cor negra emergindo de uma
cultura primitiva mais “baixa”, onde ele é cercado por
nativos negros — ou mini-Kongs, quando se vestem como
macacos para adorar o grande Kong. A trilha sonora que
acompanha as cenas com Kong e os outros negros no
filme consiste de tambores, uma pista auditiva que é
típica dos filmes de selva e da aparição de negros
nativos.18 O filme também continua a confinar os
entendimentos acerca da negritude na primitividade, e
sua sexualidade na selvageria, acrescentando o medo de
grandes falos negros. Assim, King Kong adicionou mais
um motivo para o extermínio do Outro negro — seu corpo
é muito bem-dotado quando comparado ao homem
branco padrão. Kong é acorrentado e enviado para os
Estados Unidos (sua trajetória marítima diaspórica), onde
experimenta um pouco de escravidão antes de ser
executado por sair enlouquecido atrás de uma mulher
branca.
King Kong não se afastou muito do artifício narrativo
de um-filme-dentro-do-filme empregado em Ingagi — um
tipo de “colonização óptica”.19 Em Kong, um cineasta
norte-americano branco e sua equipe navegam até a Ilha
da Caveira, localizada em algum lugar do oceano Índico
(perto da Indonésia), para fazer um filme estrelado por
uma mulher loira e bonita, em contraste com o fundo de
primitivismo real da ilha intocada pela evolução.
Quando chegam à ilha, a equipe monta uma
expedição e encontra uma tribo composta de nativos
negros (não indonésios). Bogle (2005) afirma que o
elenco de Kong incluía “todo mundo que encontrassem”,
desde que não tivessem feições claras. O estúdio
procurava por atores figurantes com “feições escuras,
lábios grandes e cabelo crespo”.20 O uso de atores
negros para interpretar indonésios ilustra um impulso
racial típico de Hollywood, de relegar qualquer um com
pele escura ao papel de Outro.21 Os nativos, que são
vestidos com pedaços de pele de animais e carregam
lanças, têm o rosto pintado e usam perucas afro. O
“chefe nativo”, um papel pequeno, é interpretado pelo
ator Noble Johnson. A tribo (e isso vai soar muito, muito
familiar) oferece suas mulheres virgens, silenciosas,
submissas e seminuas como “noivas” para Kong, com o
objetivo de permanecer nas graças do gorila.22 A
representação das noivas
,combinava de forma única o
feroz e o selvagem com uma servitude complacente.
Com a chegada da equipe branca, o chefe e sua tribo
notam a jovem e bela loira Ann Darrow (Fay Wray). Os
nativos imediatamente concluem que sua pele branca a
torna bem especial. A exclamação de júbilo do chefe,
“Olhem para a mulher dourada!” (frase traduzida pelo
capitão do navio que, por acaso, fala a língua “nativa”),
une o olhar masculino negro com o do gorila, que
também olha com adoração para Darrow assim que a vê.
Quando o aspirante a cineasta Carl Denham (Robert
Armstrong) responde “Sim, loiras estão em falta por
aqui”, o comentário do personagem funciona não apenas
para elevar a branquitude, mas também para dispensar a
possibilidade de que a beleza possa ser encontrada nas
mulheres negras. E então o chefe propõe uma troca
perturbadora: ele entregaria seis mulheres negras para
os norte-americanos em troca de Darrow. O plano é
sacrificar Darrow, que, teoriza o chefe e sua tribo, vai
agradar Kong muito mais. A oferta do chefe, claro, é
recusada. Como Greenberg elabora, esse confronto é
uma criação de mitos raciais da pior espécie:
De acordo com essa visão depravada de outras
terras e povos, uma das “nossas” mulheres deve
valer seis das mulheres deles. E embora os
homens “delas” sejam capazes das agressões
mais ferozes, um dos “nossos” consegue
aguentar e chicotear meia dúzia dos homens
deles em um combate limpo […] Kong, então, é
a epítome do sonho branco de homens negros
brutos, sem coração, estrangeiros
descerebrados, que se alimentam de violência e
rapinagem.23
Mais tarde, os nativos se esgueiram para dentro do navio
e sequestram Darrow, um evento que é descrito num
inglês ruim pelo cozinheiro chinês, Charlie (Victor Wong),
que diz: “Negros loucos estiveram aqui”. Quando Charlie
pede para ir para a terra — “Eu querer ir também!” —,
seu pedido é prontamente ignorado, e Charlie nunca sai
do barco e nem é visto novamente. Na verdade, essa é
uma briga apenas entre negros e brancos.
Depois do sequestro de Darrow pela tribo, os nativos a
entregam para o gigantesco Kong numa grande
cerimônia. Certamente é válido nos perguntarmos “o que
o monstro faria com aquela moça se ele conseguisse tê-
la […] dada a natureza obscura do seu desejo e aparato
genital”.24 Contudo, Ingagi deixou implícito que tudo é
possível e que resgatar Darrow das garras do animal
significa salvá-la do encontro mais inimaginável com
uma besta de 15 m de altura.25
O filme também afirma que, diferente de seus
encontros passados com mulheres negras, a reação de
Kong diante de Darrow é única porque ele não a devora,
mas se apaixona por ela e deseja tê-la por perto. Na
verdade, o profundo desejo de Kong por uma parceira
“humana” não é mostrado quando uma mulher negra é
oferecida a ele. Em vez disso, seu desejo sexual se torna
humano e humanizado de maneira mais completa
quando ele se interessa por Darrow. Sua afeição é
mostrada por meio de seu heroísmo protetor e de seus
afa*gos gentis no cabelo loiro dela — e cabelo, o filme
lembra ao público, não é algo que o macaco tenha visto
antes entre os habitantes negros da Ilha da Caveira.
Darrow é resgatada das garras do gorila por Driscoll.
Contudo, é a tribo que sofre as consequências quando
Kong perde a sua “noiva” branca. Ele fica furioso, destrói
a aldeia e mata vários nativos. Ele morde suas cabeças,
bate neles, os devora e pisoteia até a morte. Em uma
cena, deletada de várias cópias, ele trucida as crianças
da aldeia.26 Kong é capturado, escravizado pelos norte-
americanos e posto acorrentado em exibição num palco
em Nova York; ele, dessa forma, tem uma surpreendente
semelhança com os escravizados colocados despidos em
leilão, expostos para uma dissecação visual e fetichista.
Kong escapa dos seus captores e sai em busca de
Darrow. De forma parecida com o Monstro em
Frankenstein, Kong, o grande macaco preto, comete o
erro fatal de entrar no quarto de Darrow e levá-la para
aquele que será seu último momento juntos. O objetivo
narrativo implícito é o de manter a fera longe dos
aposentos das damas (brancas).27 Há pouco desacordo
em relação à afirmação de que Kong representa a
masculinidade e a dominância sexual, já que existem
“poucas imagens de dominância masculinas na arte
ocidental mais estranhas e inesquecíveis do que um
macaco gigante segurando [Darrow] como um prêmio no
topo do deco-falicismo delirante do recém-inaugurado
Empire State Building”.28 Comparando as infames
imagens de dominação exibidas por Gus e Silas Lynch em
O nascimento de uma nação com Kong, Young escreve:
“King Kong oferece uma versão dessa fantasia cultural
racista sobredeterminada” enquanto reforça “o ‘realismo’
histórico mais suave de O nascimento [de uma
nação]”.29 De forma pouco surpreendente, Kong é
baleado e morto, executado pelas forças militares,
terminando de uma vez por todas seus ataques de fúria
por Nova York atrás de uma mulher branca.
A história de amor entre o macaco primitivo e a bela
mulher branca continuaria a encantar cineastas e
plateias por várias décadas. Em 1976, John Guillermin
refez King Kong, anunciando inicialmente um homem
negro “encorpado” no papel de Kong.30 O nome de Ann
foi mudado para Dwan, e o propósito da expedição, de
uma filmagem, passou a ser a exploração de uma ilha do
Pacífico Sul ainda “não descoberta”, embora
completamente habitada, pela equipe de uma empresa
petrolífera. Muito do restante do filme permanece igual
ao original. Embora se trate de um lançamento pós-
Direitos Civis/movimento Black Power, há pouca
evidência de sensibilidade racial. A representação dos
ilhéus como negros primitivos permaneceu, assim como
sua noção de que seis mulheres negras equivalem a uma
mulher branca.
Em 2005, quando Peter Jackson realizou o terceiro
remake de King Kong por um grande estúdio, o
lançamento reavivou debates antigos acerca do grande
macaco negro como metáfora para a depravação negra,
em contraste com a superioridade e a desejabilidade
branca ocidental. O King Kong de Jackson é fiel ao filme
original de 1933. Contudo, Jackson trabalha para
reimaginar algumas cenas-chave que tivessem a ver com
negritude. Os nativos negros da Ilha da Caveira (muitos
dos quais são escurecidos com maquiagens e têm dentes
afiados) representam o horror no filme — eles são sujos,
assustadores, hostis e violentos. Hordas deles se lançam
contra a equipe de filmagem branca, espetando e
batendo em seus integrantes assim que eles chegam à
ilha. Os nativos são representados como monstros que,
inexplicavelmente, tremem e se sacodem e rosnam
enquanto reviram os olhos. Essa performance de
possessão permite ao telespectador enxergar melhor o
povo maldito, que se adorna com ossos e se enfeita com
amuletos feitos de caveiras.
FIGURA 2.1 AS PRÓXIMAS VÍTIMAS DE KONG EM KING KONG.
RKO Radio Pictures/Photophest
O outro princípio da representação de Jackson da
negritude é demonstrado por meio do autossacrifício do
personagem Ben Hayes (Evan Parke), um veterano da
Primeira Guerra Mundial que é o confiável e engenhoso,
segundo capitão do navio. O personagem é poupado de
dividir uma cena com os nativos fantasmagóricos e
enegrecidos, pois fica a bordo do navio para consertá-lo
enquanto os outros desembarcam. Quando os nativos
atacam, Hayes aparece na ilha, mas só depois que os
nativos fogem por causa dos tiros disparados pelo
capitão do navio. Hayes faz o papel de um pai protetor
para um adolescente branco chamado Jimmy, que é
parte da tripulação do navio. O laço entre Hayes e Jimmy
é tão profundo que Hayes se sacrifica quando a
expedição, da qual Jimmy participa, é atacada por Kong.
Na cena final de Hayes, na metade do filme, ele atrai
Kong para si, gritando “Olhe pra mim!” e alertando os
demais: “Fujam. Por trás das árvores. Tirem o Jimmy
daqui. Você precisa correr, Jimmy. Faça o que eu estou
mandando. Corra!”. Kong mata Hayes, e Jimmy vive para
ver outro dia.
Quando Kong é forçado
,a se apresentar nos Estados
Unidos, sua revelação é precedida por nativos
enegrecidos e com perucas afro em um animado número
de canto e dança. A morte do personagem de Hayes
serve para remover o dilema constrangedor do negro
moderno em confronto com o negro primitivo no roteiro.
O Kong de Jackson recebeu Oscars de melhores efeitos
especiais e som, lucrando mais de 650 milhões de
dólares em ingressos e venda de DVDS, o que fez do filme
uma das produções de maior bilheteria distribuídas pela
Universal Pictures.
O LEGADO DO MACACO — ALÉM DOS ANOS
1930
Filmes de ficção científica como O planeta dos macacos
(1968) estenderam o tema da superioridade racial
branca em relação a espécies inferiores racialmente
codificadas como macacos. O planeta dos macacos, que
rendeu quatro continuações, um remake e duas séries de
TV (uma delas em animação), conta a história de um
grupo de astronautas norte-americanos que viaja pelo
espaço do ano 1972 para o ano 3978 e aterrissam em
um “mundo invertido” em que símios (gorilas,
orangotangos e chimpanzés) dominam humanos
primitivos e mudos. A raça aparece de maneira
proeminente em O planeta dos macacos, onde até os
macacos invocam um sistema de casta baseado em raça.
Os astronautas formam um grupo de três homens. O
coronel George Taylor (Charlton Heston), um loiro branco
de queixo quadrado que comanda a missão e lidera seus
dois companheiros enquanto tentam descobrir onde e
em que época eles estão. Landon (Robert Gunner)
também é um astronauta branco, mas seu jeito tímido e
sua abordagem humanística do mundo o transformam
em um subordinado de Taylor. Um terceiro homem,
Dodge (Jeff Burton), fecha o time. Negro, ele é saudado
como um grande cientista pelos seus colegas. Quando os
homens são atacados pelos macacos falantes e vestidos
que portam armas, Taylor é ferido, mas sobrevive.
Landon é lobotomizado, mas não é morto. Apenas Dodge
é morto. Um taxidermista o empalha e ele é colocado em
exibição num museu.
Uma quarta astronauta, uma jovem loira chamada
Stewart (Dianne Stewart), enfrenta um problema em seu
sistema de suporte vital durante a viagem e morre antes
do pouso da nave no planeta dos macacos. Com a
remoção da mulher branca logo no início, Stewart, uma
beleza branca ou “a carga mais preciosa”, como Taylor a
descreve, é poupada de um encontro com os macacos
que agora, nesse filme, possuem a habilidade de
examinar e invadir o corpo humano. Na continuação de
1970, De volta ao planeta dos macacos, a obsessão por
mulheres loiras mostra suas cores rapidamente. Quando
um soldado gorila (o mais negro e bruto dos símios no
planeta dos macacos) tropeça no corpo de uma mulher
branca platinada, ele fica tão enamorado dela que se
detém para alisar suas mechas sedosas e alvas.
A conquista do planeta dos macacos (1972), uma
alegoria das relações raciais e opressão nos Estados
Unidos, é o único filme da série que pode ser associado
mais de perto com o horror: “Veja a tela explodir ao ver o
homem enfrentar o espetáculo mais horrível na história
da ficção científica”.31 Tal tipo de promoção indicava que
Conquista não seria uma ficção científica para toda a
família como os filmes anteriores haviam sido
anunciados. A história do filme, uma prequela situada em
1991, mostra como os macacos, por meio de uma
revolução armada, conseguiram dominar a Terra.
Inspirados pelas revoltas de Watts em 1965, narrativas
negras permeiam o filme. MacDonald (Hari Rhodes), o
assistente negro do governador, é mostrado como uma
figura simpática e heroica ao suportar e erguer a voz
contra uma série de injúrias raciais. Em uma cena,
MacDonald é acusado por um policial branco de amar
macacos, ao que um outro policial responde: “Faz
sentido”. O público é convidado a ver os policiais como
racistas. MacDonald também é obrigado a aturar um
leilão de escravos símios onde um chimpanzé é descrito
como estando “no ápice da juventude e em perfeitas
condições físicas” e como “familiar, obediente e dócil”,
com ofertas que começavam em oitocentos dólares. Essa
inversão dos macacos se tornando mais humanos (com
os humanos se tornando mais selvagens) é acentuada no
filme quando os macacos são ligados à história de
políticas raciais nos Estados Unidos:
MACDONALD: Como você pretende ganhar essa
liberdade?
CAESAR (Chimpanzé): Da única forma que nos
resta — revolução. … Você, acima de todos,
deveria entender. Não podemos ser livres até
que tenhamos poder. […]
MACDONALD: A violência prolonga o ódio. O ódio
prolonga a violência. Com que direito você
derrama sangue?
CAESAR: Com o direito do escravo de punir seus
perseguidores.
MACDONALD: Caesar. Eu, um descendente de
escravos, peço que você mostre humanidade.
Nas cenas finais do filme em que os macacos se revoltam
contra a escravidão, eles aparecem armados com M16s,
e os cineastas adotam propositalmente um esquema de
cores vermelho, preto e verde para aumentar o
sentimento de desconforto (essas também são as cores
associadas ao movimento Pan-Africano). Em entrevistas,
os cineastas observaram que estavam cientes de que
não poderiam fazer um filme que estrelasse o líder das
revoltas de Watts, mas era viável retratar um macaco
como líder revolucionário.32 Houveram afirmações de
que o público negro se identificou com a mensagem
pouco sutil do filme, e uma revista informou que era
possível ouvir negros gritando “É isso aí!” enquanto os
macacos lutavam contra os “branquelos”.33
Na década de 1930, e ao longo do século XX, os filmes
continuaram com sua obsessão pela figura de homens
brancos em terras estrangeiras conquistando lugares
“sombrios” e seus habitantes “escuros”. A preservação
da feminilidade branca continuaria a ser um tema
central, assim como a mensagem de que negros eram
primitivos em seu desenvolvimento e de menor valor. A
união dessas duas mensagens, a pureza da mulher
branca e o animalismo dos negros, tem se provado tão
implacavelmente popular que, em 2008, a estrela do
basquete LeBron James posou como o perigoso Kong ao
lado da modelo branca Giselle no papel de Ann Darrow
na capa de abril da revista de moda Vogue. Ao reencenar
a cena do famoso filme de terror, James e Giselle
aproximaram um pouco mais do mundo real a ligação
entre homens negros como macacos lascivos e a mulher
branca como sua presa.
DO HAITI VEM A CONSTRUÇÃO DE MITOS
Mas no Haiti há os ligeiros, os mortos e, então, os
Zumbis.
— Hurston (179)34
O Haiti, com aproximadamente 27.750 km2, compreende
a parte ocidental da ilha de Hispaniola. Embora pequeno,
ao longo dos últimos quatro séculos, o país tem tido uma
grande presença na história, situando-se no centro de
um cabo de guerra disputado por um grande número de
ocupantes estrangeiros. Hoje, o Haiti conta com menos
de cem anos de independência. Tendo (por pouco)
sobrevivido a um ciclo explorador de invasões e
subjugação, e, recentemente, sendo vítima de um
terremoto catastrófico, o custo para o Haiti tem sido alto,
daí a impressão de se tratar da “nação mais pobre no
hemisfério ocidental”.35
Os problemas do Haiti começaram em 1492, quando
Cristóvão Colombo “descobriu” a ilha e a batizou de
Hispaniola, enquanto reivindicava a terra e seus
habitantes, os taino aruaques, para a Espanha. A
Espanha levou para a ilha armas sofisticadas e doenças,
contra as quais os aruaques não podiam lutar. Uma
geração mais tarde, por volta de 1517, com a dizimação
dos aruaques, escravizados da África Ocidental, de
países como o Benin (antigo Daomé), foram levados para
lá para trabalhar no cultivo de cana e na produção de
açúcar. Os escravizados levaram com eles uma
variedade de práticas religiosas que eram rejeitadas
pelos europeus. Impossibilitados de praticar abertamente
a sua fé, os escravizados de Hispaniola hibridaram suas
crenças e celebraram suas próprias tradições no interior
da religião dos escravizadores — especialmente o
catolicismo, que oferecia uma estrutura muito similar.
Essa ocultação de
,religiões originárias não era uma
prática incomum. O dr. Bellegarde-Smith, um estudioso
de história haitiana e de vodu nascido no Haiti, explica a
história:
O vodu é relacionado a outras tradições
africanas transplantadas, como a santeria, que
teve lugar em Cuba, e o candomblé no Brasil.
Em todos esses lugares o catolicismo era a
religião oficial dos colonizadores. Escravos e
pessoas comuns escondiam os espíritos que
conheciam dentro da veneração a santos
católicos. Até hoje muitos haitianos combinam
práticas vodu com devoção católica.36
Durante o fim dos anos 1600, a ilha foi novamente vítima
de violência quando os franceses tomaram conta de uma
porção mais ao norte e saquearam as plantações de
tabaco, dando início a um conflito entre França e
Espanha. Em 1697, os dois países europeus decidiram
dividir o Haiti, e a França ficou com o terço ocidental do
país, nomeando-a de Saint-Domingue (que mais tarde
seria o Haiti).
Em 1793 aconteceu uma das revoltas de escravizados
mais significativas — a Revolução Haitiana —, que
finalmente levou à abolição da escravidão. O líder da
revolução, o escravizado nascido haitiano Toussaint
L’Ouverture, “um voduísta, ou seja, um praticante de
vodu” rezou ou “convocou os espíritos” com o fim de
libertar o Haiti.37 Os espíritos aparentemente
responderam com algum tipo de graça, já que
L’Ouverture e seu exército escorraçaram inclusive os
ingleses, que também tentavam ganhar espaço na ilha.
L’Ouverture, ao se tornar o novo líder do Haiti, criou uma
constituição e trabalhou para consertar a economia
explorada da ilha em favor de seus habitantes. Por
aproximadamente cinco anos (1798-1802), o Haiti
experimentou uma liberdade e governo próprio que
nunca tivera por três séculos.
A independência do Haiti foi mais uma vez ameaçada
quando L’Ouverture tentou livrar completamente o país
do controle europeu, uma condição que encontrou
resistência por parte da plantocracia europeia que
restava na ilha, com a ajuda de 30 mil soldados
franceses. Para impedir qualquer resistência, L’Ouverture
foi preso contra a sua vontade e morreu de pneumonia,
quando teve atendimento médico negado. Em seu lugar,
o escravizado nascido africano Jean-Jacques Dessalines
assumiu o posto, liderando os haitianos a uma vitória
sobre os franceses e rasgando a faixa branca da tricolore
francesa num famoso ato para declarar o país como uma
república negra, e (mais uma vez) pronunciar o Haiti
independente em 1804. A França tentaria tomar a ilha
novamente em 1825, o que resultou num tratado em que
a França reconheceria o Haiti como um país
independente, mas ao custo de 90 milhões de francos
por ano para o empobrecido país.
Enquanto isso, alguns dos 10 mil haitianos e
escravizados, assim como colonizadores brancos
franceses, fugiram do caos, indo para Nova Orleans,
Louisiana (atraídos pelas plantações similares),
causando, dessa forma, um impacto dramático no
cenário cultural da cidade. Essa migração se provou
importante para a construção de mitos sobre o Caribe,
que veio a ser visto como um “lugar fatal e promíscuo”,
cujos produtos culturais “viajavam por bem ou por mal
pelo mundo, mudando em cada lugar onde chegavam”.38
Na verdade, nos Estados Unidos o vodou se tornou
voodoo (embora alguns tenham rejeitado essa grafia por
considerá-la vulgar). Até mesmo um filme de terror, The
Love Wanga (1936), explicou que a religião do Haiti veio
a “ser conhecida para o homem branco como VOODOO”
[ênfase minha].39
Os Estados Unidos se recusaram a reconhecer a
independência do Haiti até 1862.40 A ascensão do Haiti
no mundo foi complicada também por vários golpes de
Estado, alimentados por interesses externos.
Em 1915, o presidente norte-americano Woodrow
Wilson ordenou uma outra ocupação no Haiti. Por
dezenove anos, entre 1915 e 1934, os Estados Unidos
possuíram o Haiti, uma apreensão preventiva motivada
durante a Primeira Guerra Mundial por receio de que a
Alemanha pudesse desejar a ilha para sua própria
vantagem militar. A ocupação militar do Haiti, liderada
pela Marinha, tomou a forma de uma ditadura, marcada
por extrema violência, onde toda forma de dissidência
política era respondida com derramamento de sangue. A
violência também foi pontuada por um racismo
profundamente entranhado por parte dos militares norte-
americanos: “O soldado da Marinha de alta patente
Smedley Butler se referiu aos líderes da resistência
popular como ‘macacos depilados, sem nenhum tipo de
inteligência, apenas uns crioulinho [sic]’”.41 Em 1932,
durante o governo Roosevelt, foi anunciado que o tempo
da Marinha no Haiti havia chegado ao fim, quando
ocorreram partidas em massa escalonadas. O último
marinheiro foi embora em 1934, acenando adeus para
um país deixado em frangalhos sociais, políticos e
econômicos.
É provável que não seja coincidência que a partida da
Marinha tenha começado em 1932, coincidindo com o
lançamento do primeiro filme norte-americano de terror
inspirado no vodu, Zumbi branco (1932), que teve o Haiti
como cenário. Na verdade, os marinheiros trouxeram
histórias fantásticas sobre os modos supostamente
estranhos do povo do Haiti, incluindo o uso de magia
“negra” (feitiços mortais e envenenamentos).
NO INÍCIO, ZUMBI BRANCO
Representações do vodu no cinema existem há tanto
tempo quanto a própria mídia.42 Frequentemente, se
houvesse uma selva, algum tipo de representação de
feitiço ritual era jogado no meio para aumentar o
sentimento de perigo numa terra selvagem, completado
com a presença de cobras, nativas parcialmente nuas
dançando ao redor de círculos de fogo e, claro, uma trilha
sonora arrepiante associada aos negros — tambores.
Rhodes identifica alguns tratamentos iniciais do vodu na
história do cinema, começando com o filme Voodoo Fires
(1913), que prometia a união clichê de rituais malignos e
chamas. A companhia de cinema de Sigmund Lubin
também entrou na moda de elencar o vodu como algo
vulgar em Ghost of Twisted Oak (1915). O filme
Unconquered (1917) mostrou o vodu ligado a rituais de
sacrifício humano.43 O filme The Witching Eyes (1929),
um “filme negro” de terror produzido, escrito e dirigido
por brancos, foi uma adição inicial na moda popular de
mostrar como o vodu podia ser usado para perturbar
assuntos do coração.
Há muito o que ser dito sobre o que estava presente
nesses filmes, incluindo o tratamento exploratório dos
negros e das religiões negras. Ainda assim, o mais
notável entre essas produções iniciais sobre vodu é
aquilo que está ausente delas — zumbis. Na verdade, o
vodu era mostrado como algum tipo de religião pagã
cujas únicas propriedades envolviam rituais em
celebração a deuses negros e magia negra. Contudo, o
cinema de vodu teve uma mudança dramática em 1932
com o filme Zumbi branco, que focava em zumbismo e
na habilidade de ressuscitar os mortos para que eles
seguissem as ordens de alguém.
Zumbi branco pode ser creditado como o precursor do
prolífico subgênero dos filmes de zumbi (exemplos: A
noite dos mortos-vivos [1968] e A maldição dos mortos-
vivos [1988]). Contudo, a principal influência do filme e
do gênero subsequente é o relato de viagem A ilha da
magia (1929), de William Seabrook, que trata sobre a
criação de zumbis no Haiti. Enquanto monstros como
Frankenstein ou Drácula tinham uma origem literária, os
zumbis, supostamente, eram oriundos da não ficção;
descrições de vodu e zumbis eram encontradas em
relatos em primeira mão escritos por europeus e norte-
americanos. O livro de Seabrook é, de longe, o mais
citado e conhecido. Escrito durante a ocupação da
Marinha americana no Haiti, A ilha da magia servia para
descrever o país como um lugar extremamente difícil,
com haitianos e norte-americanos em conflito uns contra
os outros em grande parte por causa da falta de
civilidade e refinamento dos haitianos (até mesmo a elite
educada era tida como inepta). Os marinheiros eram
considerados racistas, mas a animosidade deles em
relação aos
,negros era ignorada e considerada
compreensível, dada a perversidade da terra.
O livro de Seabrook é baseado em sua estadia de dois
anos com uma sacerdotisa vodu. Escrito em um tom
dramático e sensacionalista, e acompanhado por
ilustrações caricaturais claramente racistas de Alexander
King, Seabrook descreveu na obra seus testemunhos de
rituais vodu:
sob a luz vermelha das tochas que faziam a lua
empalidecer, saltando, gritando, corpos negros
retorcidos, enlouquecidos por sangue, por sexo,
por deus, bêbados, rodopiavam e dançavam a
saturnália sombria deles, suas cabeças jogadas
para trás de forma estranha, como se os
pescoços estivessem quebrados, dentes brancos
e glóbulos oculares brilhantes.44
Seabrook se esforçou para dar credibilidade ao seu
trabalho citando fontes como o The Museum Journal
(1917), da Universidade da Pensilvânia, que davam conta
da selvageria do vodu haitiano, relatando como os
haitianos mordiam a cabeça de cobras, como eram
ensinados a “odiar os brancos” durante os rituais vodus e
como comiam “uma cabra sem chifres”, isto é, uma
criança humana, “crua ou parcialmente cozida”.45
Seabrook até mesmo afirma apresentar fórmulas
secretas para trazer os mortos de volta, receitas que
foram encontradas no corpo de um “bocor”, um
feiticeiro:
Invocar os mortos. Vá até um cemitério numa
sexta-feira à meianoite, em algum lugar onde
tenha ocorrido tiroteios. Vá até a sepultura de
um homem, leve uma vela branca com você,
uma folha de acácia selvagem e uma arma
carregada. Assim que chegar, faça este apelo:
“Exsurgent mortui et ad me veniunt. Eu exijo
que você, morto, venha a mim”. Depois de dizer
essas palavras, você vai ouvir um barulho de
tempestade; não se assuste e dispare o primeiro
tiro. O morto vai aparecer na sua frente; você
não deve correr, mas dar três passos para trás
lentamente, dizendo três vezes estas palavras:
“Eu te asperjo com incenso e mirra como a
tumba perfumada de Astaroth”. Mandar um
espírito embora depois de o ter invocado. Pegue
um punhado de terra e jogue na direção dos
quatro cantos da Terra, dizendo: “Volte para o
lugar de onde veio, da terra você foi criado e
para a terra retornará. Amém”.46
Seabrook continuaria a escrever mais livros de não ficção
sobre suas observações de primeira mão sobre a
adoração ao diabo na África, sua incursão no canibalismo
(e o gosto de vitela) e seu estudo das práticas de
bruxaria pelo mundo.
Zumbi branco fez pouco para desmentir as histórias
sobre o Haiti que Seabrook havia apresentado; em vez
disso, o filme usou o livro como base. O filme de terror
“com negros”, que também fala sobre trapaças e amor,
conta a história de Charles Beaumont (Robert Frazer), um
empresário branco e rico que mora no Haiti e conhece
um casal branco — Neil (John Harron) e Madeline (Madge
Bellamy) — de Nova York. O casal planeja se casar, e
Beaumont os convence a fazer a cerimônia em sua
propriedade, localizada numa área florestal remota no
Haiti. Os motivos de Beaumont, claro, não são puros, já
que ele se apaixona pela loira Madeline e espera atrair o
casal para sua casa, onde ele sequestrará Madeline,
mantendo-a na ilha para o seu bel-prazer. Beaumont
consegue a assistência de Murder Legendre (Bela
Lugosi), o plantador de cana branco que dominou os
poderes do vodu e controla uma horda de zumbis que
cumprem seus desejos sombrios. Quando Murder vê
Madeline, ele também a deseja, iniciando aí um cabo de
guerra pela única mulher (branca) da ilha (mulheres
negras são amplamente ausentes do filme). Murder e
Beaumont zumbificam Madeline e tentam forçá-la a
matar Neil; então Murder transforma Beaumont em um
zumbi também.
Zumbi branco é notável pela sua introdução do
monstro zumbi, que não havia sido visto em filmes
anteriormente. Daí, como o título do filme promete, o
foco é em zumbis brancos escravizados por Murder. Na
plantação de cana de açúcar de Murder, negros e
brancos trabalham um ao lado do outro em condições
perigosas, e Murder explica: “Eles trabalham com
lealdade, não ligam para as longas horas”. Essa premissa
relembra o capítulo de Seabrook intitulado “Homens
mortos trabalhando nas plantações de açúcar”, que
apresentam zumbis de forma semelhante como
um cadáver humano desalmado, ainda morto,
mas tirado da cova e dotado com um semblante
de vida pela feitiçaria […] e então faça dele um
servo ou escravo, ocasionalmente para cometer
um crime, mas frequentemente usado como um
burro de carga na habitação ou na fazenda,
onde realiza tarefas pesadas, e em quem você
pode bater como numa besta idiota caso
demonstre preguiça.47
É uma fantasia de docilidade pós-escravidão —
escravizados eternos trabalhando sob o sol e em
condições mortais para sempre e sem reclamações.
Murder tem vários desses brutos, mas se orgulha de
possuir cinco zumbis franceses brancos, todos inimigos
formidáveis antes que ele tirasse suas almas. Há um
capitão, um ladrão, o ministro do Interior da ilha e um
gigantesco carrasco, que, Murder explica, “quase me
executou”. O quinto zumbi é o maior troféu de Murder,
alguém que ele descreve como o seu “antigo mestre” —
um poderoso feiticeiro branco que Murder precisou
torturar durante muito tempo antes que ele revelasse
seus segredos vodu.
O verdadeiro terror desse filme, contudo, assim como
muitos filmes de terror antes e depois — de King Kong
até o mais recente O mistério de Candyman (1992) —, é
a ameaça feita contra uma mulher branca. Madeline se
junta a Ann Darrow de Kong como a arquetípica vítima
feminina. As duas mulheres enfrentam medos similares,
incluindo aí interações com o Outro. Para Madeline, seu
encontro com o Outro vem daqueles que habitam o Haiti,
e a ameaça que ela enfrenta é parecida com a de Darrow
— um tipo de escravidão branca por meio da
prostituição. No fim, assim como todos os monstros,
Murder e Beaumont pagam pela traição lasciva com suas
vidas, deixando que Madeline finalmente se una a Neil.
Rhodes escreve: “todos os homens — zumbis, noivos,
traidor — querem possuir sexualmente as mulheres”.48
Em relação ao desejo, o filme foi citado em 29 de julho
de 1932, numa resenha do jornal New York Times, por
usar zumbis como monstros porque “eles são bons
empregados. Podem acompanhar loiras sem ficar tendo
ideias na cabeça, o que é uma boa ajuda nos dias loucos
de hoje.”49
No mundo invertido do Haiti, os homens brancos
podem se tornar praticantes malignos de vodu, mulheres
brancas seduzidas podem ser levadas até a beira da
morte, e brancos poderosos podem ser transformados
em escravizados. Foi o impacto do Haiti na branquitude
que gerou o horror. Em uma frase de divulgação
relacionada ao filme, é afirmado que o Haiti sempre foi
perverso, mas que o fato não merecia atenção até se
voltar contra os brancos: “Eles sabiam que esse tipo de
coisa estava acontecendo entre os negros, mas quando
essa bruxaria foi praticada contra uma garota branca […]
tudo foi para o inferno”.50 Embora seja um filme de terror
que atribui principalmente aos brancos os tropos do
terror, Zumbi branco é uma acusação contra a negritude.
O público ouve que a ilha é “cheia de bobagens e
superstições”, e que é habitada por nativos adeptos de
um estranho “culto da morte”, que “usam ossos
humanos em suas cerimônias”. Essas práticas foram
“trazidas até aqui da África”, a suposta fonte do mal. A
pouca representação de negros no filme não os poupa da
estereotipação, pois mesmo assim são descritos como
figuras monstruosas, como quando Neil pensa que
Madeline está “nas mãos dos nativos” e proclama que
ela estaria “melhor morta do que assim!”.
FIGURA 2.2 UM ZUMBI COM MURDER EM ZUMBI BRANCO.
United Artists/Photofest
Na verdade, com o Haiti de cenário, é surpreendente
quão poucos personagens negros aparecem em Zumbi.
As mulheres negras são praticamente excluídas do filme,
enquanto homens negros se encontram mais presentes,
mas não em papéis centrais. Ainda assim, algumas
representações negras são dignas de
,nota, oferecendo
uma das primeiras representações eficazes de negros no
gênero. O filme apresenta uma cena de funeral em que a
câmera se detém por um momento em um grupo de
negros (não zumbis) carregadores de caixão. Os homens
não falam (como é esperado deles), mas são
memoráveis. Eles chamam a atenção — bem-vestidos e
reluzentes desde os penteados benfeitos até os ternos.
Eles são pomposos por causa daquilo que não está
representado ali; eles não são “malandros” ou
deficitários de nenhuma forma, apenas apropriadamente
elegantes.51
Contudo, a representação mais notável de negros em
Zumbi branco acontece nos primeiros minutos do filme,
em uma pequena participação do ator negro Clarence
Muse (não creditado) como um “Motorista de Carroça”. O
personagem de Muse (o Motorista) é encarregado de
levar Neil e Madeline até a mansão de Beaumont.
Quando o motorista encontra um grande grupo de
homens e mulheres negros escavando a estrada, e,
assim, bloqueando o caminho da carruagem, ele explica
de forma sucinta o motivo de os haitianos enterrarem
seus mortos na estrada: “É um funeral, mademoiselle.
Eles temem os homens que roubam corpos. Então,
enterram os corpos no meio da estrada, onde pessoas
passam o tempo todo”. Aqui, a influência de A ilha da
magia sobre o filme fica aparente mais uma vez, já que
Seabrook escreve o seguinte acerca de rituais na beira
da estrada: “por qual motivo, tão frequentemente, se vê
uma tumba ou cova tão perto de uma estrada
movimentada ou trilha, onde pessoas estão sempre
passando? Isso acontece para dar toda a segurança
possível ao pobre morto infeliz”.52 Em outra cena,
conforme o Motorista conduz Neil e Madeline para mais
perto do destino deles, ele vê alguns zumbis brancos. Em
resposta, o Motorista grita “Zumbis!” e trota os cavalos
em máxima velocidade para se distanciar dos monstros.
Assustado, Neil pergunta: “Por que você está dirigindo
desse jeito, seu idiota? Poderíamos ter morrido!”. O
motorista fornece um solilóquio em timbre tão medido
que mais se assemelha a uma palestra de professor:
“Pior do que isso, monsieur. Poderíamos ter sido pegos.
[…] Eles não são homens, monsieur. São corpos mortos
[…] Zumbis. Os mortos-vivos. Cadáveres removidos de
suas sepulturas, que são obrigados a trabalhar nos
moinhos de açúcar e nos campos durante a noite.” O
Motorista deixa o casal na mansão de Beaumont. Ele,
novamente, vê os monstros e alerta “Olhe, aí vem eles!”,
e então sai de cena (e deixa o filme). Ele não é o típico e
estereotipado pretinho—assustado—ai—meus—pezinhos
—pretos—valham-me—agora, mas ele vai embora
rapidamente por conta do perigo que se aproxima.53
A representação de Muse do Motorista, ainda que
pequena, contradiz muito do que Hollywood apresentava
em relação à negritude. Três anos depois de Zumbi
branco, parecia que a indústria havia aprendido um
pouco, como observou Robert Stebbins no jornal New
Theatre em julho de 1935:
A atividade do negro nos filmes de Hollywood é
limitada ao papel do empregado preguiçoso […]
ou um carroceiro que parece ridículo […]. Ele
também é […] um vilão enlouquecido pelo vodu
e determinado a exterminar a raça branca em
Lua negra, ou, na melhor das hipóteses, um bom
prisioneiro entoando o espiritual onipresente na
casa da morte enquanto o herói é preparado
para dar os derradeiros passos em sua “última
milha”.54
O próprio Muse pode ser implicado nessa acusação
contra a representação dos negros no cinema, já que sua
participação no filme de terror “com negros” Lua negra
(1934) apresentava uma queda no progresso
representacional.
Lua negra é centrado em Juanita (Dorothy Burgess),
uma mulher branca que é enviada de sua casa em San
Christopher para os Estados Unidos por seu tio, o dr.
Raymond Perez (Arnold Korff), um dono de plantação, e
por seu capataz, Macklin (Lumsden Hare). Os dois
homens brancos estão “sozinhos” em San Christopher,
cercados por mais de 2 mil “nativos” que são descritos,
em sua maioria, como “bandidos” do Haiti. Os nativos
levaram o vodu com eles para San Christopher, o que
inclui adoração ao sangue e sacrifícios humanos em
honra aos seus “deuses negros”. Juanita não consegue
abandonar sua conexão com a ilha e até começa a tocar
“tambores nativos” em seu tempo livre. É revelado que,
quando criança, depois que os nativos mataram seus
pais, Juanita teve uma cuidadora negra que,
secretamente, a envolveu com o vodu, enchendo-a “com
o som dos tambores e a visão do sangue”. Daí, o terror
nesse filme está na ideia de que o vodu pode se
esgueirar das florestas e entrar numa casa branca e em
uma mulher branca a qualquer momento.
Com saudades de casa, Juanita volta para San
Christopher com sua filha Nancy (Cora Sue Collins) (e seu
marido é esperado um pouco mais tarde). Ela é recebida
por uma horda de nativos, que a enchem de flores e
precisam apanhar do tio para se afastarem, o mesmo tio
que tem uma reputação por açoitar e matar os nativos.
Ainda assim, ao longo do filme, os nativos é que são
mostrados como figuras que possuem prazer em matar
— Macklin, Anna (a babá branca de Nancy, interpretada
por Eleanor Wesselhoeft) e um homem negro, que, sob
ordens, chama o marido de Juanita para salvá-la do
perigo, são todos mortos, assim como uma mulher negra
que é oferecida como sacrifício humano. Fica evidente
desde cedo que Juanita está maculada demais pelos
nativos para ser salva. Ela batuca, entra em transe e
dança de forma sensual em rituais vodu (cercada por
aproximadamente quinhentos afro-estadunidenses
fantasiados de nativos).55 Juanita abandona sua filha
para fugir no meio da noite e ficar com os nativos, uma
transgressão que é encarada com a mais pura repulsa
por parte do tio, que, por sua vez, a abandona. Juanita
fica tão imersa — tão “enegrecida” pelo seu contato com
os nativos negros e com o vodu negro — que ela tenta
matar o marido e a filha. Por esses pecados, Juanita é
morta pelo seu marido salvador.
Aqui, novamente, a representação dos efeitos do Haiti
sobre uma mulher branca está calcada em registros
iniciais “reais” sobre o Caribe. Joan Dayan (175, 178), em
Haiti, History and the Gods, escreve que o tema de
mulheres brancas abraçando a negritude era algo
recorrente em muitos escritos de historiadores coloniais
sobre o Caribe. Dayan escreve que esses tomos
históricos afirmavam que: “As assimilações graduais que
os brancos faziam dos traços negros não eram vistas
como imitação, mas infecção”. Enquanto os negros
tentavam assimilar a cultura branca, quando os brancos
se apropriavam da cultura negra, eles eram descritos
como se tivessem “contraído uma doença, demonstrando
pouca força de vontade ou pouca fibra moral para resistir
à atração contagiosa da vida largada, pouca roupa e fala
lânguida. […] Calor insuportável e negros demais
contribuíam para a poluição inevitável da civilidade e da
graça”.56
FIGURA 2.3 A MARCA DA SOMBRA DE UM HOMEM NEGRO EM LUA NEGRA.
Columbia Pictures/Photofest
Lua negra, então, se torna mais um conto de horror
sobre o abominável enegrecimento de uma mulher
branca; também é um alerta violento e austero contra a
integração.
O “problema” negro no filme não termina com a morte
de Juanita. Logo após, entra Clarence Muse como
“Lunch”, o dono de uma escuna oriundo de Augusta,
Geórgia. Lunch leva pessoas de San Christopher para o
Haiti, entretendo-as com música enquanto velejam. É por
meio de Lunch que tanto os negros caribenhos quanto os
negros norte-americanos são marcados como figuras
deficitárias num sistema hierarquizante. Lunch se refere
aos negros da ilha como “perseguidores de macacos”,
explicando que os macacos gostam de cocos, assim
como os nativos, que perseguem os macacos para roubar
as frutas. Também por intermédio de Lunch é revelado
que os nativos precisam ser vigiados por olhos atentos e
repreendidos, pois eles preferem dormir em vez de
trabalhar. Na verdade, no fim do filme, os brancos fogem
dos nativos sedentos por sangue porque
,alguns dormem
durante o ataque, permitindo que Lunch leve os brancos
até um lugar seguro. Mas Lunch também é um preto
engraçado e um estereótipo do negro subserviente. Ele
se alterna entre arregalar os olhos de medo e ser
extremamente fiel e se sacrificar pelos brancos. As cenas
retratam oposições óbvias de negros contra negros,
sendo os afro-estadunidenses ligeiramente superiores
aos negros de San Christopher, “o lugar de violência sem
fim, batizado em homenagem ao santo padroeiro das
causas perdidas”.57
Muse era emocionalmente dividido por causa de suas
representações de personagens do tipo e ocupou-se em
falar e escrever sobre isso com frequência (por exemplo,
sua autopublicação The Dilemma of the Negro Actor,
1934). Em um ensaio intitulado de maneira fúnebre como
“When a Negro Sings a Song”, Muse escreve sobre o
dilema que os negros enfrentavam nos poucos papéis
cômicos e de cantoria que lhes eram oferecidos nos
filmes de Hollywood: “Existem dois públicos que
precisam ser confrontados nos Estados Unidos — o negro
e o branco. O público branco definitivamente deseja
besteiras, canções e danças do homem negro, enquanto
o público negro deseja ver e ouvir os verdadeiros
elementos da vida negra sendo exemplificados”.58 A
dignidade que Muse trouxe para a sua atuação ficava
mais aparente em filmes negros e nos roteiros que
escrevia, revelando ainda mais a tensão existente entre
filmes negros e filmes brancos.
Ignorando as indicações de Muse de “respeito próprio
e autoconsciência negra”, ele ainda foi questionado por
suas performances mais problemáticas.59 Bogle
descrevia os papéis de Muse como retratos de “servos
humanizados”, longe da performance cômica de Stepin
Fetchit ou de um negro completamente subserviente,
mas problemáticos do mesmo jeito.60 Contudo, Muse
também é conhecido por ter emprestado profundidade e
complexidade às suas performances, que também eram
distintas pela relativa ausência de estereótipos (dado o
período).
Por exemplo, em 1941, Muse teve um papel
coadjuvante substancial como Evans, o mordomo, no
filme de terror “com negros” O fantasma invisível.
Trabalhando mais uma vez com Bela Lugosi, que
interpretava o dr. Kessler, o Evans de Muse também
gerencia a propriedade de Kessler, o que inclui
supervisionar seus empregados brancos (cozinheiros,
jardineiros etc.). À medida que assassinatos começam a
acontecer no solar de Kessler, Evans vai sendo
apresentado como uma figura inteligente e informada, e
participa de uma entrevista civilizada com as
autoridades, que esperam que ele possa contribuir com a
investigação. Evans se torna uma peça central na
resolução do mistério, chegando, por fim, a ajudar na
prisão do verdadeiro culpado, Kessler.
Ainda assim, esses papéis mais complexos destinados
aos negros não eram o bastante para afastar o cinema
de lugares negros como o Haiti. Os negros se tornariam
eternamente associados ao vodu, magia negra e zumbis
no gênero do terror.
SE TE AMAR É ERRADO, EU NÃO QUERO
ESTAR CERTO
Filmes como King Kong e Zumbi branco eram, na
verdade, histórias de amor. Graças às ameaças de
nativos e um gorila, Ann apreciou ainda mais o seu
verdadeiro amor e salvador em King Kong, Jack Driscoll
(Bruce Cabot). Da mesma forma, se Madeline tinha
dúvidas em relação a se casar com Neil, tudo foi
resolvido quando ela viu suas outras opções, homens
brancos maculados pelo vodu. A múmia (1932) também
se apropriou do amor, da identidade racial mestiça e da
regra de uma gota de sangue, mas não havia nenhum
mulato trágico aqui. Nesse filme, Helen (Zita Johann) é
meio egípcia/meio inglesa, mas se mostra alheia aos
países africanos, incluindo o local de nascimento de sua
mãe no Egito. Para Helen, que observa as pirâmides de
dentro de um clube inglês, o país parece “belo”, ainda
que seja um local “desagradável”. Seu pai, o governador
do Sudão, a deixou no Egito para retornar àquele país
“bestial e quente”. De repente, Helen é mesmerizada,
caindo no feitiço de Ardeth Bey/Imhotep (Boris Karloff),
um sacerdote egípcio ressuscitado de 3.700 anos que
havia sido mumificado e enterrado vivo pelo pecado de
abusar da magia numa tentativa de lançar um feitiço
para trazer sua amada de volta à vida. Imhotep
reconhece que Helen “tem o nosso sangue” e lhe revela,
por meio da magia, que ela fora a sua amada em outra
vida. Na verdade, o sangue tem grande importância no
mundo de Imhotep. Quando o Núbio (Noble Johnson), o
servo de um “mestre” branco, também se vê sob o
feitiço de Imhotep, sua suscetibilidade à magia é
baseada em seu sangue negro: “O Núbio! O sangue
antigo. Você o transformou em seu escravo.” O Núbio se
transforma no escravo de Imhotep, assim como os núbios
haviam sido no antigo Egito, como é mostrado em um
flashback. Os brancos precisam resgatar Helen do
desesperado Imhotep. Mas eles estão fazendo bem mais
do que simplesmente a salvarem de um monstro; eles a
estão resgatando de um “outro étnico atrasado e
oprimido” por enxergar Helen como uma mulher branca
o suficiente.61 Helen também é capaz de fugir dos mitos
egípcios, cheios de superstições e politeísmo, quando
seu amor, Frank (David Manners), que disserta
enfaticamente sobre o valor do pensamento científico, a
salva.
Mulheres brancas não estavam procurando o amor
nos lugares errados, mas parecia que as mulheres negras
faziam isso o tempo todo. Ingagi era um lembrete
grotesco de como isso podia acontecer. O pior erro que
uma mulher negra podia cometer, contudo, era escolher
um homem branco como pretendente. Se ter alguma
coisa com um macaco era implausível, então, tentar
conquistar um homem branco era errado… mortalmente
errado.
No filme de terror “com negros” The Love Wanga
(1936), o cenário é a Paradise Island, próxima à costa do
Haiti.62 Lá vive Klili Gordon (Fredi Washington), uma dona
de plantação birracial (negra/branca) que está
apaixonada por Adam Maynard (Philip Brandon), um
homem branco dono de uma plantação vizinha. Nessa
“história real” em que “os nomes foram trocados”, o
problema é que, embora Adam conserve uma relação de
amizade muito próxima a Klili, ele não consegue amá-la,
pois, conforme explica: “não é possível transpor a
barreira de sangue que nos separa”. Embora tenha a tez
branca como a de Adam, o fenótipo de Klili indica que
nunca será branca o suficiente porque em algum lugar
de sua linhagem sanguínea existe uma ancestralidade
africana. Logo, ela está manchada pela regra da única
gota, segundo a qual apenas um pouco de sangue negro
marca alguém como negro de forma instantânea e
eterna. Quando Adam escolhe (de forma previsível) Eve
(Marie Paxton), uma branca pura, para ser sua noiva, Klili
fica enraivecida de ciúmes. Ela aproxima o seu braço do
braço de Eve proclama: “Eu também sou branca. Tão
branca quanto ela!”. A tragédia do sangue e da cor da
pele é o típico estereótipo do mulato trágico, em que sua
proximidade com a branquitude torna Klili bela ao
mesmo tempo que sua situação irreconciliável a torna
um perigo para si mesma e para os outros, e por fim a
enlouquece.63 Klili recorre ao vodu, usando um feitiço
para deixar Eve à beira da morte (da qual ela é
milagrosamente salva). Klili então é motivada a erguer
treze zumbis, homens negros mortos-vivos, que
sequestram Eve e a colocam em um transe para que Klili
possa matá-la.64 Aqui, os zumbis são levemente
reimaginados em relação ao que foi visto anteriormente.
Eles ainda são recipientes vazios e reanimados sob o
controle de alguém. Contudo, The Love Wanga remove os
discursos coloniais e de ocupação da memória do público
em favor daquilo que Dayan descreve como um novo
idioma que desmantela a culpabilidade dos Estados
Unidos em relação ao trabalho forçado.65 A nova
construção coloca os negros no centro da servitude
forçada e no cerne da morte, uma vez que os massacres
realizados pelos brancos não são expostos.
Contudo, o filme é mais notável pela sua atenção à
identidade racial. Fredi Washington,
,uma atriz negra cuja
tez é menos pigmentada e olhos verdes, sempre era
escalada para os papéis de mulata trágica, e seu papel
mais notável foi como Peola, uma mulher “que se
passava por branca”, em Imitação da vida (1934). The
Love Wanga continuava a brincar com as cores ao
escalar o ator branco Sheldon Leonard como LeStrange,
o cuidador negro da plantação de bananas de Adam.
Leonard foi uma escolha estranha para interpretar um
negro; contudo, essa escolha pode ter sido uma
precaução por parte dos realizadores, já que Washington
teve problemas com a censura em um filme que não era
de terror intitulado O imperador Jones (1933), também
situado no Haiti. Em Jones Washington beija o ator negro
Paul Robeson, o que os censores temiam ser algo muito
parecido com uma mulher branca beijando um homem
negro.66 Para remediar o problema, Washington foi
instruída a usar maquiagem mais escura a fim de
“parecer mais negra”. Em Wanga, a maquiagem não era
uma boa solução para o dilema racial, pois Klili deveria
se parecer “tão branca quanto” Eve. Talvez fosse melhor
que uma mulher que parecia ser branca fosse vista em
um abraço com um ator branco em vez de um ator
negro. Em Wanga, então, é o diálogo, e não a aparência,
que deve marcar LeStrange (um nome bem apropriado)
como negro. Ele se refere a Adam como “meu mestre” e
há esta proclamação:
LESTRANGE PARA KLILI: Você é negra. Você pertence a
nós. A mim.
KLILI: Eu te odeio, escória preta!
Assim como Klili, é impossível não associar a negritude
de LeStrange como causa de sua proximidade com o mal.
Ele é tão adepto do vodu, e tão perverso, quanto Klili.
LeStrange rouba o cadáver de uma mulher negra, veste
as roupas de Klili no corpo e o pendura em uma árvore
como parte de uma maldição vodu contra Klili por ela ter
rejeitado o seu amor. O grande amor de Klili por Adam é
mostrado como impossível, o que não causa surpresa, já
que ela e seus gostos se tornam parte do mito batido que
dá conta de que mulheres “mulatas”* gostam das
melhores coisas: “Existem vários relatos europeus sobre
a mulher mulata, em especial sobre seus gostos
requintados, amor pelas coisas finas e apreço especial
por rendas, linho, seda e ouro”.67 Obviamente, gostar e
ter são coisas diferentes, e Klili nunca terá Adam. Por
causa de tudo que ela fez, Klili se torna uma mulher
caçada. No fim, quando a maldição vodu de LeStrange
não mata Klili rápido o suficiente, LeStrange a estrangula
com suas próprias mãos.
Com exceção de seu tratamento da identidade racial,
The Love Wanga tomou o mesmo caminho de outros
filmes de terror que incluíam alguma atenção para com a
negritude. Praticantes negros de vodu estão por todos os
cantos de Paradise Island, trabalhando sem parar em
seus ofícios em um lugar onde o povo é, de acordo com o
filme, preguiçoso e primitivo. Existem muitos bocores
(feiticeiros), loas (espíritos) e zumbis, e o filme explica a
existência deles da seguinte forma: “os corpos sem vida
de negros assassinados, reanimados pelos bocores com
propósitos malignos”. Todos, bons ou maus, parecem
saber como fabricar um ouanga (wanga) ou
encantamento, que pode ser usado tanto para despertar
o amor quanto para causar a morte. Quando não estão
envolvidos com algum tipo de magia, os negros da ilha
passam a maior parte do tempo jogando dados,
apostando e dançando. The Love Wanga, é claro, não
nega aos negros uma batida para que dancem, e o
sempre presente batuque do tambor vodu, ou “rada”,
pode ser ouvido. O tambor é descrito em termos sensuais
— apresentando uma batida “latejante” e “pulsante” —
enquanto a câmera se demora no peito desnudo e
musculoso de um homem negro batendo no instrumento
com força.
The Love Wanga foi refeito em 1939 com um elenco
todo negro no “filme negro” de terror The Devil’s
Daughter. Escrito por George Terwilliger e dirigido por
Arthur Leonard, o filme foi roteirizado, dirigido e
produzido por brancos, mas mirava em um público negro.
As cenas iniciais do filme servem para estabelecer
como os negros caribenhos são diferentes. É possível ver,
em uma longa sequência, um grupo enorme de
trabalhadores malvestidos de uma plantação de bananas
cantando e dançando em uma clareira. O lugar também
serve para jogos de azar e brigas de galo. É mostrado
que os trabalhadores acreditam no vodu como uma
magia maligna que pode ser manipulada para todos os
tipos de fins imorais.
O filme conta a história de duas meias-irmãs
jamaicanas. A primeira é Isabelle (Nina Mae McKinney),
cuja mãe era uma haitiana praticante de vodu. Isabelle
tem cuidado da plantação da família com o amor e o
apoio de seus empregados negros e “crioulos”. A
segunda irmã é Sylvia (Ida James), que deixou a Jamaica
anos atrás em busca de uma educação superior nos
Estados Unidos e se tornou uma mulher refinada no
Harlem (o período de tempo coincide com a renascença
do Harlem). Quando o pai das irmãs morre, ele deixa a
plantação e a riqueza que vem com a propriedade para a
educada Sylvia, enquanto a mais grosseira Isabelle não
fica com nada. Sylvia volta para a Jamaica para cuidar da
herança e consegue a ajuda de um feitor chamado
Ramsey, que afirma estar apaixonado por ela, mas faz
isso apenas para roubar seu dinheiro. Ramsey é
interpretado pelo ator branco Jack Carter. Embora o ator
branco tenha “enegrecido” seu dialeto em The Love
Wanga, Carter não faz o mesmo aqui. Em vez disso, sua
raça nem é mencionada no filme. A codificação de cores
também pode ter contado até certo ponto com uma
escolha de elenco politicamente esperta, pois Ramsey se
mostra um homem mentiroso e traidor. Dois outros
personagens masculinos negros se revelam como tais:
John (Emmett Wallace), que ama Sylvia e no fim ganha o
seu amor, e Percy (Hamtree Harrington), o mordomo de
Sylvia no Harlem, que acredita que os negros jamaicanos
são inferiores e, com efeitos cômicos, aprende que eles
podem ser duas-caras quando o fazem acreditar que
guardaram a alma dele em um porco (que é comido
posteriormente).
O foco do filme, contudo, está nas diferenças entre as
duas irmãs, que na verdade servem para problematizar
as comparações entre os Estados Unidos e a Jamaica,
trazendo alguma profundidade para as representações.
Isabelle é mostrada como a irmã rude e desordeira que
faz o árduo trabalho de cuidar da plantação enquanto
suspira por John, que não tem interesse nela. Sylvia é
representada como uma mulher que se transformou
numa burguesa, passeando pela plantação em um
vestido chique e conduzida por um motorista. A diferença
entre as irmãs é alinhada com o urbano e os modos da
cidade grande em contraste com o rural sem
sofisticação. Contudo, até esse contraste é reformulado
por meio de um alerta sobre os perigos de abandonar a
casa, se tornar burguês e perder contato com o seu
próprio povo. Sylvia e Percy, duas figuras do Harlem, são
expostos como pessoas ingênuas por causa de sua
separação geográfica e cultural com o “lar”. Enquanto o
trabalho na plantação é visto como rudimentar e
desprovido de elegância, ser culto e conhecedor de livros
é tido como inútil.
Isabelle cria um plano para ter a plantação de volta —
ela explora as superstições vigentes ao lembrar Sylvia e
John de que sua mãe era haitiana, deixando implícito que
ela poderia praticar vodu. Isabelle instrui seus
trabalhadores, muitos dos quais são praticantes de vodu,
a baterem seus tambores na floresta com mais vigor do
que nunca, fazendo com que Sylvia note que o som dos
tambores soa ainda mais “ameaçador” do que em sua
juventude. Sylvia acredita que se tornou a vítima de um
ritual vodu quando Isabelle a droga e finge que vai
prepará-la para um sacrifício. O filme apresenta uma
longa cerimônia obeah (magia negra) presidida por
Isabelle, que faz encantamentos. É revelado que Isabelle
estava fingindo ter poderes — se ela realmente fosse
mágica, ela não precisaria ter recorrido às drogas. John
corre para resgatar Sylvia, enquanto o assunto de
mistura sanguínea
,ame o filme tanto quanto eu amei ajudar a lhe
dar vida. A recepção do público e da crítica excederam
minhas expectativas, e fico empolgada em saber que o
trabalho foi tão assertivo para as pessoas negras em
especial, no sentido de dar a entender que somos mais
do que vítimas com apenas cinco minutos na tela,
petulantes e grosseiros, servindo apenas para elevar a
taxa de sobrevivência dos protagonistas brancos. Nossa
presença em um gênero cuja intenção é causar medo
nos mostra como somos percebidos e o que vivenciamos
em nosso dia a dia no mundo. No entanto, mais do que
isso, Horror Noire corajosamente prediz para onde nos
encaminhamos quando se coloca o terror nas mãos de
artistas negros. Como isso impactará o gênero no futuro?
Essa história ainda está sendo contada. Para aqueles
entre nós investidos nesse progresso, estes são tempos
verdadeiramente animadores, em que tenho a honra de
poder participar ativamente. Horror Noire, tanto o
documentário quanto o livro, estão recebendo o
reconhecimento que merecem por serem tão essenciais
em nossa exploração e favorecimento do gênero de
terror. E já estava na hora.
ASHLEE BLACKWELL
Junho de 2019
ASHLEE BLACKWELL é mestre em artes pela Temple University, coprodutora
do documentário Horror Noire e pesquisadora do cinema de gênero.
Apaixonada por narrativas de terror desde os sete anos de idade, quando
assistiu a um dos filmes da franquia A Hora do Pesadelo, Blackwell se
dedicou a estudar os papéis femininos nas narrativas de terror. Ela mantém
o site Graveyard Shift Sisters, que também serve como um recurso
educacional e um jornal crítico que narra a história e o presente trabalho das
mulheres negras no horror para desfazer a marginalização de sua voz
criativa dentro desse espaço. Atualmente reside na Filadélfia com uma
coleção cada vez maior de livros e filmes.
HORROR
NOIRE
PRÓLOGO
EM BUSCA DO SENTIMENTO DE
EQUILÍBRIO
PERGUNTA: Por que não há pretos nos filmes de
terror?
RESPOSTA: Porque, quando a voz cavernosa diz
“CORRA!”, a gente faz isso.
E o filme vai acabar… diferente do que acontece com a frágil garotinha
branca que acende uma vela apressadamente e desce bem devagar os
degraus escuros para ver de onde vem aquela voz… Verdade ou não, essa
piada era uma justificativa improvisada para ajudar a explicar a ausência de
negros em filmes de terror feitos antes da década de 1970, um gênero
cinematográfico que tem sido popular entre a população afro-estadunidense
desde sempre.
Ainda que os negros componham apenas 13% da
população,* as pesquisas mostram que os negros são
responsáveis por mais de 25% da bilheteria total. E isso
apesar do fato de os negros, em determinadas épocas,
terem sido raramente vistos em filmes de qualquer
gênero, e, se aparecemos na tela, as imagens
representadas não serem motivo de orgulho.
Muito se tem pesquisado e escrito sobre a história dos
negros no cinema, mas até agora a nossa presença — ou
ausência — nos filmes de terror tem sido relegada a um
único capítulo ou a várias notas de rodapé. Este livro é
uma análise completa e profunda das imagens,
influências e impactos sociais dos negros nos filmes de
terror desde 1890 até o presente.
Fazendo um giro de 180 graus em relação ao seu livro
anterior, African American Viewers and the Black
Situation Comedy: Situating Racial Humor, a professora e
acadêmica premiada Robin Means Coleman compilou
uma gama impressionante de filmes e sua coleção de
vítimas de pele mais pigmentada que deram seu sangue,
se não um pouco mais que isso, aos enredos e histórias
dessas produções com temas sombrios. Este livro é um
estudo indispensável da participação negra no gênero de
terror que não só tem a acrescentar à riqueza da
pesquisa cinematográfica, mas também acentua e
celebra o papel que os negros desempenharam
historicamente nessa arena lucrativa do audiovisual.
Talvez, em nome de uma consciência, nós
devêssemos considerar as diferenças intrínsecas do
impacto social dos horrores “na tela” em oposição aos
horrores “da vida real”. Os filmes são ferramentas
poderosas para manipular fatos, informações e imagens
que frequentemente afetam as percepções, crenças e
atitudes mentais direcionadas ao tema apresentado.
Representações iniciais dos negros em filmes como A
nigg*r in the Woodpile (1904),* uma comédia, na
verdade continham elementos do que poderia ser
considerado horror leve, nesse caso tanto em seu título
racista quanto na sua representação cinematográfica dos
negros, que, na verdade, foram encenadas por atores
brancos usando pintura blackface. Como comédia, o
filme não tinha a intenção de assustar ou aterrorizar no
sentido clássico, mas tentava alertar os brancos contra
uma raça em particular que eles precisavam temer.
Ainda mais desprezível foram os vários horrores “da
vida real” inspirados pelo notório filme O nascimento de
uma nação (1915) de D.W. Griffith. Enquanto os brancos
tentavam escapar dos perigos fictícios representados na
tela por uma turba voraz de negros que se levantava
para pegá-los em uma Amerikkka pós-escravidão, fora do
cinema os negros estavam sendo mortos de verdade,
vítimas de horrores verídicos ao serem linchados,
baleados, arrastados, estuprados, espancados, castrados
e queimados por grupos da supremacia branca e outros
racistas entusiasmados que “entraram de cabeça” e
compraram a mensagem incitadora de ódio do filme. São
coisas diferentes ficar animado ou horrorizado por algum
ato horrível que aconteceu com outra pessoa na tela do
cinema, ciente de que o ator depois lava o sangue falso e
vai para casa, e realmente sentir a dor e experimentar o
evento horrível e perturbador na vida real, com sangue
de verdade e sem nenhum diretor para gritar “corta!”.
Talvez o aspecto mais danoso relacionado ao espectro
limitado de papéis representados por atores negros nos
filmes de horror iniciais seja a falta de imagens positivas
para proporcionar um sentimento de equilíbrio. Ver um
personagem negro arregalar os olhos e empalidecer ao
se deparar com um fantasma não teria sido tão ruim se o
seu papel seguinte ou anterior tivesse sido como um
médico, advogado ou empresário de sucesso. Contudo,
os filmes hollywoodianos da época relegavam aos negros
os personagens subservientes, como mordomos,
empregadas e motoristas, ou que apareciam na tela só
para representarem malandros e bufões estereotípicos.
O famoso ator Willie Best pôde tremer o queixo
diversas vezes em uma série de filmes de terror,
incluindo O castelo sinistro (1940) e Veleiro fantasma
(1942). Outras figuras engraçadas constantes como
Eddie Anderson e Mantan Moreland também ficaram
conhecidas pela habilidade de arregalar os olhos e
tremer os joelhos nas horas de pânico e medo em filmes
como A volta do fantasma (1941) e A vingança dos
zumbis (1943), respectivamente.
Para uma gama mais ampla de imagens na tela, o
público podia sempre contar com filmes de elenco
totalmente negro sendo produzidos especificamente para
um mercado negro ansioso para se ver representado
dessa forma emocionante, poderosa e relativamente
nova de mídia de entretenimento. Os “filmes raciais”,
como foram chamados, eram majoritariamente
produzidos por companhias pertencentes a brancos que
chegavam à conclusão de que havia dinheiro a ser feito,
mas várias companhias cinematográficas negras
surgiram para preencher o buraco também. O popular
ator Spencer Williams Jr. escreveu e dirigiu vários filmes
estrelados por negros na década de 1940, incluindo o
conto de horror Son of Ingagi (1940), no qual uma
cientista pesquisadora mantém uma criatura da selva
africana em seu porão até que ela escapa para perseguir
os habitantes da casa. Com o filme Vodoo Devil Drums
(1944), do produtor Jed Buell, os frequentadores de
cinema viram pela primeira vez “A Dança Virgem da
Morte!” e “O Altar das Caveiras!”. Diferentemente dos
filmes protagonizados por brancos, onde os negros eram
usados majoritariamente como alívio
,é trazido à tona: Isabelle não é
haitiana “o suficiente” para praticar o vodu de forma
efetiva. Isabelle e Sylvia fazem as pazes. Sylvia entrega a
plantação para Isabelle, pois compreende seu não
pertencimento: “Eu não pertenço a este lugar”.
Chloe, Love is Calling You (1934) é um filme de terror
“com negros” racialmente intrigante, ainda que
controverso, já que aborda não só o mulato trágico mas
também a violência racial da era Jim Crow. É uma história
em que uma negra pobre, velha e praticante de vodu,
Mandy (Georgette Harvey), procura vingança pelo
linchamento de seu marido, Sam. Mandy é a “mamãe”
de uma filha jovem adulta, Chloe (Olive Borden, uma
atriz branca), que parece branca e sofre incômodos por
parte de negros e brancos em virtude de seu sangue
impuro. Chloe tem dois pretendentes. O primeiro é Jim,
um homem “de cor” (interpretado pelo ator branco Philip
Ober) apaixonado e sofredor que tem uma gota de
sangue negro nas veias e não é amado pela jovem. O
segundo é Wade (Reed Howes), um homem branco que
acabou de chegar na cidade para cuidar de uma
plantação de coníferas na região e, de início, toma Chloe
por branca. As preocupações com a censura foram
evitadas ao escalar atores brancos para os três papéis, já
que uma mulher branca não seria mostrada nos braços
de um homem negro.
Chloe ama Wade desesperadamente, mas foge dele
por causa de seu segredo racial. Por sonhar em estar
com brancos, Jim a acusa de dar ouvidos ao seu “sangue
branco falando”. Chloe então apresenta a história
clássica da mulata trágica na qual ela é atormentada por
se ver aprisionada na negritude, ainda que seu corpo
denuncie pouco essa questão. A população negra afirma
ver a negritude em Chloe, como fica evidenciado na cena
em que um homem negro tenta atacar Chloe, dizendo:
“Bem amarelinha, é assim que eu gosto da minha carne”.
E o mesmo acontece quando duas mulheres brancas
olham para ela, comentando: “Ela é tão escura”.
A surpresa aqui é que Mandy trocou seu bebê negro
morto por Chloe num ato de vingança contra o pai
branco de Chloe, o Coronel, que ordenou o linchamento
de Sam. Na parte de Mandy, todos enxergam Chloe como
negra e a tratam assim. A lição em relação ao
preconceito racial é apresentada, ainda que de maneira
falha. Quando se confirma que Chloe é realmente branca,
ela (como Tarzan) exibe a superioridade inata da
branquitude.* Nessa história nos moldes de Cinderela,
Chloe não tem dificuldade nenhuma em se estabelecer
no (rico) mundo dos brancos. Recentemente empossada
da branquitude, a jovem pede que ninguém a chame de
“Chloe” novamente, proclamando com confiança: “Eu me
chamo Betty Ann”. Ela se movimenta com naturalidade
por sua mansão, usa vestidos brancos luxuosos e
entretém a elite branca com facilidade. Sua nova casa é
a epítome da ostentação, colossal e cheia de
ornamentos. Parece apropriado, então, que essa Casa
Grande, de frente para a plantação, seja o local de uma
resistência negra. Casas assim, como suas “escadarias
monumentais”, um “labirinto de portas, salões e quartos
gigantescos”, e servos domésticos uniformizados
pairando “silenciosamente em suas tarefas”, eram
símbolos cruéis de histórias e mitos da servidão.68
Mandy quer punir tanto o Coronel quanto Chloe pelas
traições sacrificando Chloe em um ritual vodu. Há
tambores retumbantes de vodu, fogo e dança nativa.
Mandy se veste como o espírito vodu Barão Samedi. Mas
tudo dá errado… para os negros. Jim tenta resgatar Chloe
das garras de Mandy, mas é mortalmente ferido,
deixando-a para ser salva por Wade. Chloe, como Betty
Ann, e Wade finalmente encontram o amor como um
puro casal branco.
Chloe, assim como The Love Wanga e The Devil’s
Daughter, não provoca sustos de verdade. Contudo, os
três filmes encaram de frente o assunto das políticas
raciais. Chloe, em particular, se destaca por sua atenção
à violência racial. Filmes dessa época eram criticados por
falharem ao lidar com racismos do tipo, como revelado
na coluna “Camera Eye” (1933) do jornal The Harlem
Liberator: “Dificilmente ouvimos uma palavra sobre
linchamentos, trabalho forçado, arrendamento rural ou
presidiários acorrentados trabalhando. E quando são
debatidos, esses assuntos são vistos de relance”.69
Contudo, Chloe dá uma rara atenção ao linchamento. O
vodu de Mandy “realmente fala” quando ela volta para
Louisiana, o estado onde Sam encontrou o seu fim. “Óia
lá. Óia lá. A véia árvore do enforcado. Onde us branquelo
mataro o meu Sam e os cachorro rasgaram ele em
pedaço. Tô aqui, Sammy. A sua Mandy vortô pra
amaldiçoá o Coronel e os branco.” A morte de Sam no
filme, ordenada pelo dono da plantação, o Coronel, não é
contestada, mas descartada: “Eu demiti Sam. Não
lembro o motivo”. É possível ler o relato do Coronel sobre
o fim de Sam de diferentes maneiras. Sua frieza serve
para implicá-lo em um racismo que considera a vida
negra como algo sem importância. Ou a leitura pode ser
literal, dada a época, na qual a vida negra não tinha
valor. O Coronel explica que Sam, ao ser demitido, bateu
nele. Por esse motivo, o Coronel explica de forma direta:
“Sam foi linchado”. É nessa injustiça que Mandy se foca
durante todo o filme: “Não vai demorar muito, Sam… Eu
vou fazer o meu vodu. O trovão vai rugir e vai chover
raio. E o diabo vai andar na sepultura de um branco.”
Contudo, o filme não se aprofunda mais na questão
acerca do tratamento dos negros na era Jim Crow. Mandy
é mostrada como louca, e assim sua obsessão pelo
linchamento de Sam fica mais fácil de ser ignorada. No
fim do filme, o Coronel exige a prisão imediata de Mandy,
que está fugindo da cena do crime, dizendo: “Não
queremos linchar ninguém”. A frase “não queremos
linchar ninguém” insinua que, se Mandy continuar a
correr, então os brancos da comunidade vão ter que se
incomodar com o linchamento dela também.
O outro personagem negro central, aquele que mina
até mesmo a ilusão de um momento revolucionário no
filme, é o servo doméstico do Coronel, Ben (Richard
Huey). Uma típica representação do negro subserviente,
Ben é um servo feliz e grato, leal ao seu empregador
branco, que chega até mesmo a espionar Mandy e outros
negros da plantação para contar ao Coronel tudo o que
eles fazem. É Ben que revela ao Coronel que Mandy
voltou para Louisiana com o fim de “colocar um vodu no
senhor”. Ben chega a invadir a cabana de Mandy, junto
com o Coronel e Wade, para revirar os pertences dela.
Com os olhos arregalados e cheio de medo, Ben revira a
“bolsa de vodu” de Mandy, encontrando roupas de bebê
que foram usadas pela filha do Coronel, a qual todos
pensavam que havia se afogado. Por fim, quando um
médico procura confirmar que o bebê negro de Mandy
tinha morrido, e não a filha branca do Coronel, ele leva
Ben em sua companhia para exumar o bebê em busca de
uma evidência conclusiva. O doutor, triunfante, reporta:
“O cabelo é crespo”.
CONCLUSÃO
O amor estava no ar na década de 1930, mas estamos
falando do gênero do terror, e a estrada para a paixão,
de forma esperada, era cheia de curvas mortais.
Macacos, vodu, nativos e zumbis tinham o costume de
atrapalhar assuntos do coração. Parte do terror residia no
fato de que essas monstruosidades se intrometiam em
assuntos de corações brancos. Personagens monstruosos
como Kong, Murder, e até mesmo a Múmia, sabiam como
estragar uma noite de amor para Ann, Madeline e Helen,
respectivamente, ainda que tentassem ganhar a afeição
dessas garotas de pele menos pigmentada. Isso era algo
assustador e sério, já que o público médio (branco)
“consideraria extremamente abjeto o aprisionamento de
cristãos brancos por nativos de pele escura. E ainda pior,
pois, como as vítimas de feitiçaria vodu costumavam ser
mulheres nessas narrativas iniciais e amplamente
racistas […] isso atacava a paranoia racial
profundamente arraigada”.70 Que sorte a nossa haver os
cavaleiros brancos que cavalgavam para salvar o dia e
resgatar suas amadas da vilania, não? A lição aqui é que,
,ao ser vítima de algum tipo de intruso maligno de pele
mais pigmentada, a pureza racial e sexual era desafiada,
mas, por fim, restaurada.
De fato, não há amor maior para um homem (ou
gorila) do que o amor de uma mulher branca pura. Mas ai
daquela que negociar com o mal e distribuir a maldade
— não existe pecado maior. Envolvidas nessas relações
sórdidas, estavam as Klilis, Mandys e Juanitas. Essas três
mulheres amaldiçoadas foram longe demais para
continuar vivas. De maneira interessante, embora as três
tenham utilizado a espada metafórica do vodu em vida,
nenhuma delas foi morta por ela. Em vez disso, homens
decidiram o destino dessas mulheres. Klili foi
estrangulada por um homem (miscigenado), Mandy foi
perseguida pelos homens brancos e a bala nas costas de
Juanita foi disparada por um homem branco. Essas
mulheres, com seus corações negros, estavam ainda
mais obscurecidas por conta de sua relação com o vodu.
Contudo, os mais acentuados desdém e desprezo foram
reservados para Juanita, uma mulher branca que, por
vontade própria, se submeteu e se aliou ao mundo dos
negros.
Certamente alguns poderiam dizer que o terror
precisa estar situado em algum ponto, e nesses filmes é
uma eventualidade que ele se encontre entre pessoas
negras e em locais majoritariamente negros. Contudo,
nos filmes desse período, o foco não recai tanto no terror
(ou no amor), mas na representação dos negros como
figuras pavorosamente horríveis, o que configura uma
diferença fundamental. Esses não são filmes de terror
modernos em que os monstros simplesmente surgem
para retalhar e torturar pessoas; mas são filmes em que
não basta localizar o terror no monstro (por exemplo, um
gorila): o monstro também precisa ser enegrecido. Além
disso, se esse monstro… enegrecido… tem relações
sexuais com uma nativa negra, o efeito é maior do que
aquele causado por um simples “Bu!”; quando isso
acontece, o assunto passa a ser a natureza nojenta dos
negros. A maldade negra sendo jogada de um lado para
o outro, os negros obedientes, as mamães pretas, os
malandros, todos são utilizados como estofo para a
ridicularização racial e para assegurar a supremacia
branca. Esse é o verdadeiro terror desses filmes.
De modo representativo, ao longo dos anos seguintes,
as coisas não ficariam mais fáceis para os negros. A
longo prazo, por exemplo, o Haiti e a zumbificação
seriam ainda mais explorados na cultura popular. Na
imprensa, os haitianos continuariam a ser retratados
como figuras perversas e contaminadas por meio de
bordões que davam conta de que o “povo dos barcos”
(em busca de liberdade política e econômica) estava
chegando, levando não só vodu para os Estados Unidos,
mas também doenças (tuberculose e AIDS).71 O terror
continuava a implicar os negros em zumbificação,
acrescentando também um pouco de satanismo (Coração
satânico [1987]) e canibalismo (Zumbiz [2005]).
Na década seguinte, os anos 1940, o progresso
continua a ser lento para os negros em filmes de terror.
Na verdade, o gênero estava regredindo ao escalar
negros como bufões e alívios cômicos, além de dar ainda
mais destaque para a performance do malandro em
filmes de susto como The Body Disappears (1941),
estrelando Sleep ’n’ Eat, e O rei dos zumbis (1941), com
Mantan Moreland. Vislumbres de esperança surgiram
para os negros com o retorno de um diretor negro,
Spencer Williams. Os “filmes negros” de terror de
Williams tinham monstros, o diabo, e uma boa dose de
lição de moral para acompanhá-los. Mas, primeiro,
teríamos que enfrentar outro filme de macaco: Son of
Ingagi (1940), um filme meio-macaco, meio-humano de
Williams.
* Para uma mentalidade supremacista branca, tudo o que destoa da
norma (homem branco heterossexual cisgênero, cristão e classe
média) são animalizados, mas o racismo anti-negro vitimiza este
grupo com mais violência simbólica explícita como a “habilidade de
acasalar com o animal”. Para Aph e Syl Ko, a categoria de animal foi
uma invenção colonial que tem sido imposta a humanos e a animais:
aos primeiros porque justifica serem tratados como os segundos; os
segundos porque é naturalizado que sejam violados. Ao investigarem
as noções de “humano” e “humanidade” elas compreenderam que a
categoria “animal” opera como ferramenta de opressão em relação
a grupos racializados, pois animalizar humanos (racializados) é uma
forma de justificar a exploração, violação e exposição — bem como o
“nojo” proveniente da “bestialidade” essencializada. Ver: Ko, Aph;
Ko, Syl. Aphro-ism: essays on pop culture, feminism, black veganism
from two sisters. Nova Iorque: Lantern Books, 2017. [NE]
* O termo é pejorativo. A palavra mulus, no latim, faz referência a
“mulo”, o animal híbrido, estéril e produto do cruzamento do cavalo
com a jumenta, ou da égua com o jumento. Por influência espanhola,
o termo passou a designar um mulo jovem, e foi pela analogia com a
origem mestiça do animal que a palavra ganhou tom pejorativo para
pessoas negras com a pigmentação mais clara. [NE]
* Conforme diz Grada Kilomba em Memórias da Plantação (Cobogó,
2019): “No mundo conceitual branco, o sujeito Negro é identificado
como o objeto ‘ruim’, incorporando os aspectos que a sociedade
branca tem reprimido e transformando em tabu, isto é,
agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por
coincidir com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o
sujo, mas desejável – permitindo à branquitude olhar para si como
moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa,
em controle total e livre da inquietude que sua história causa”. [NE]
HORROR
NOIRE
1940
BANDIDOS ATERRORIZANTES E
MISERÁVEIS MENESTRÉIS
Ao montar esta horrível orgia Que paralisa
no escuro de medo, Os filmes cometem
um erro; Eles erram a mira..
— JAFFRAY (174)1
O terror ganhou forma rapidamente, e vários realizadores
pegaram alegremente o bonde do terror, fosse se
especializando no gênero ou diversificando seu portfólio
ao acrescentarem filmes de terror no conjunto de suas
obras. Esse grande interesse logo resultou em uma
abundância de filmes desse tipo, e o público, que antes
formava filas para sentir o gostinho do medo, começou a
ser bombardeado por uma grande oferta (geralmente
rudimentar e banal); por isso, o público de terror
começou a escassear.
À medida que os filmes de terror da década de 1940
encontravam bilheterias cada vez mais anêmicas, a
indústria do cinema respondeu ao decréscimo na venda
dos ingressos com um sistema pareado de produção e
distribuição de filmes. Havia os filmes A, com grande
apoio financeiro, e os “filmes B”, como os filmes de
terror, com orçamentos e promoções menores.1 Os dois
tipos de filme, A e B, às vezes eram vendidos de uma vez
só, assim, quando o público fizesse fila para um “filme de
qualidade A”, como o vencedor do Oscar A grande ilusão
(1949), as pessoas também teriam a opção de ver um
filme de terror como alguns dos inúmeros filmes B de
múmia que entravam em circulação: A mão da múmia
(1940), A tumba da múmia (1942), A sombra da múmia
(1944) ou A praga da múmia (1945). Frequentemente
dois filmes B eram exibidos para que os clientes
pudessem, talvez, aproveitar uma tarde de monstros.
Mesmo com uma tática de marketing esperta de exibir
dois filmes de uma vez só, os filmes de terror
continuaram a ter dificuldades. Talvez as atrocidades da
Segunda Guerra Mundial, cuja parte mais repulsiva
mirava em civis, como o Holocausto e as bombas
atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki, fossem
bem mais assustadoras e inescapáveis.2
O terror mal começara a ganhar fôlego e já estava
sendo ameaçado. Os monstros do famoso estúdio
Universal se tornaram embaraçosamente derivativos,
com a dupla de comediantes Bud Abbott e Lou Costello
“esbarrando” nos monstros em muitos dos seus filmes de
comédia pastelão. O RKO, o estúdio que produziu King
Kong (1933), sob a direção de Val Lewton, ofereceu uma
safra mais original de filmes, como Sangue de pantera
,(1942). Sangue de pantera foi uma inovação rara o
gênero na época, pois muito do terror dos anos 1940 se
baseava no estilo homem-vestido-de-macaco, como O
gorila matador (1940) da Monogram Pictures.
Enquanto o gênero de horror estava começando a se
desfazer, o tratamento representacional dos negros nos
filmes, especialmente em filmes de terror “com negros”,
não melhorou. Após cinquenta anos de participação no
gênero, os negros ainda eram relegados a papéis de
figuras primitivas, nativos das selvas ou empregados de
brancos. A mudança mais dramática em relação à
representação de negros nos filmes de terror durante a
década de 1940 apenas agravou os problemas, pois os
menestréis do fim do século XIX e início do século XX
foram ressuscitados para criar comédias de terror nas
quais os negros eram apresentados como tolos
profundamente assustados — figuras absurdas e cômicas
cujos defeitos intelectuais (como a fala errada),
inferioridade cultural (como correr atrás de galinhas) e
tiques físicos (como arregalar os olhos) provocavam riso
e escárnio. Diferente do nativo e do servo, que
geralmente eram escalados como meros figurantes em
filmes de terror e se moviam silenciosamente nas cenas,
os papéis de negros assustados e cômicos (como vieram
a ser conhecidos) eram papéis coadjuvantes substanciais
e centrais aos enredos. O gênero só olhou para os negros
quando o terror se juntou ao humor, com atores cômicos
como Mantan Moreland e Willie “Sleep ’n’ Eat” Best
sendo convocados para fazer suas “melhores”
performances de malandros tolos.
De maneira mais significativa, o “terror negro” voltou
nessa década, e, graças ao cineasta Spencer Williams Jr.,
o gênero do terror viu algumas das suas histórias mais
intrigantes, caracterizações únicas e tratamento
aprofundado da vida e cultura negras. Os filmes de
Williams focavam na batalha entre o bem e o mal,
embebidos em religiosidade negra, e suas histórias eram
centradas em mulheres. Os filmes de Williams
questionavam como os cineastas negros, excluídos de
Hollywood e com orçamento apertado, poderiam trazer
algo tão inspirador para o gênero. Em resumo, este era o
dilema em relação à participação dos negros em filmes
de terror da década: representações proeminentes e
horrendas, ou representações promissoras e de alcance
limitado.
BRIGA DE MONSTROS
Os filmes de terror “com negros” lançados ao longo da
década evidenciam o quão ruim as coisas estavam para
os negros. A morta-viva (1943) é um filme situado no
Caribe, na ilha de St. Sebastian pós-colonização, em uma
plantação de açúcar e numa selva ao redor.3 Para os
negros no filme, St. Sebastian é uma ilha construída pela
morte por causa de sua antiga história de amor com a
escravidão. O filme começa de forma pejorativa com
uma mulher branca, Betsy (Frances Dee), ignorando de
maneira casual e acrítica as atrocidades da escravidão
enquanto conversa com um homem negro descendente
de escravizados:
COCHEIRO (CLINTON ROSEMON, NÃO CREDITADO): O barco
enorme trouxe há muito tempo os pais e mães
de todos nós, acorrentados no porão de um
navio.
BETSY: Eles trouxeram vocês para um belo lugar,
não é?
COCHEIRO: Se você diz, senhorita, se você diz…
Embora o filme se esforce para mostrar que a história da
escravidão e seus efeitos continuam a afetar os negros e
sua existência na ilha, essa cena em particular funciona
para ilustrar como os cineastas não conseguiam deixar
de diluir as mensagens do tipo com alguma fantasia pós-
colonial de exotismo e beleza primitiva. St. Sebastian
pode chorar por causa do sangue negro derramado
(como Ti-Misery, o calcês selvagem de um navio
negreiro, faz simbolicamente durante a trama), mas o
filme trabalha duro para convencer o público de que o
Caribe, ainda assim, é um ótimo lugar onde tirar férias.
Humphries explica a cena da incompreensão de Betsy da
seguinte maneira: Betsy “só enxerga a beleza ao redor
dela, a beleza que é construída pelo discurso colonial
para o benefício daqueles que vivem dos frutos do
trabalho escravo. […] Seria difícil representar e sumarizar
a cegueira social e econômica de maneira mais
persuasiva”.4 O modo como Betsy enxerga St. Sebastian
pela primeira vez é reminiscente de Zumbi branco
(1932), quando o casal apaixonado, Neil e Madeline, se
surpreende pelo fato de o Haiti não ser o local
paradisíaco que eles esperavam para o seu casamento. A
habilidade de Betsy (de Neil e Madeline) de estar entre
tantos negros sem conhecê-los fornece entendimentos
surpreendentes sobre a repressão de culturas e histórias.
A morta-viva apresenta vários negros praticantes de
vodu que passam um tempo considerável “assustando”
os brancos com batuques de tambores e fazendo rituais.
Essa restrição dos negros ao estereótipo significa que o
filme mais se interessa em focar nos “problemas
psicológicos do povo branco” em vez de demonstrar
qualquer consideração, ou engajamento, em relação aos
personagens negros.5
Em A morta-viva existe, de forma esperada, um zumbi
entre os negros — Carre-Four6 (Darby Jones). Ele
caminha silenciosamente e de forma agourenta, nunca
representando uma ameaça até receber a ordem de
invadir uma casa em uma plantação branca para
sequestrar uma mulher branca. Obviamente, ele não
realiza a última parte da missão, já que homens negros
podem apenas olhar (o que talvez já seja ameaçador o
suficiente), mas jamais tocar. Carre-Four não é o único
zumbi da ilha; também há Jessica, uma mulher branca
que pode ou não ser uma zumbi. Há muito para se saber
acerca de Jessica enquanto os protagonistas brancos
lutam para reclamar a alma dela e os homens brancos
lutam pelo seu amor. Contudo, a história de Carre-Four
não merece ser explorada, e ninguém está interessado
em salvar sua alma.7 Também há Alma (Theresa Harris),
que mantém a tradição de seus ancestrais escravizados
de guardar luto quando uma criança negra nasce, mas
que fica “feliz em um funeral”. No filme, as lágrimas de
Alma (que não são vistas) são alinhadas e suplantadas
pelas lágrimas de Ti-Misery, o calcês transformado em
um irrigador da plantação, que parece chorar quando a
água do equipamento flui. No filme, a história da
escravidão na ilha é representada por Ti-Misery. O filme
nega aos vivos uma chance de recontar completamente
essa história de escravidão. Em vez disso, Ti-Misery, pelo
uso do simbolismo, filtra e carrega as histórias de
escravidão dos negros vivos de St. Sebastian. Fechando o
estranho grupo, que é visto pelos “olhares confusos dos
protagonistas brancos”,8 há um cantor onisciente de
Calypso representado por Lancelot Pinard, também
conhecido como Sir Lancelot. Lancelot contribui com o
filme armando fofocas, inventando histórias e também
com um aviso sombrio sobre o destino das pessoas em
uma de suas músicas de Calypso.
O que fica evidente nesse filme é que a negritude é
tão infecciosa que coloca os brancos em risco,
especialmente as mulheres brancas, que são
enfraquecidas pelo seu encontro com a negritude. No
filme, duas mulheres brancas se tornam vítimas da
cultura negra. A primeira fica obcecada por mitos e pelo
poder do vodu e, por isso, transforma uma outra branca
indefesa em zumbi. O crítico de cinema do New York
Times, Bosley Crowther fez pouco caso de A morta-viva,
afirmando delicadamente que o filme “acaba com todo o
respeito que alguém pode ter por fantasmas
ambulantes”.9
Dois anos depois, em 1945, a RKO (sem Val Lewton) fez
uma continuação de A morta-viva, com o título de
Zumbis na Broadway. Esse filme de terror tomou um
rumo cômico, assim como vários filmes feitos durante a
década de 1940, ao focar nas palhaçadas de Jerry Miles
(Wally Brown) e Mike Strager (Alan Carney), que são
parceiros como Abbott e Costello. O filme fala sobre os
esforços de Jerry e Mike a fim de encontrar um zumbi de
verdade para a abertura de um clube em Nova York
chamado A Tenda do Zumbi. A dupla viaja para San
Sebastian e são recebidos na ilha por uma canção de Sir
,Lancelot que interpreta um Calypso que resume o
destino vindouro deles por meio de uma rima alegre. O
ator Darby Jones também está de volta no papel do
zumbi silencioso e discreto, embora seu nome tenha sido
mudado para Kolaaga e ele tenha ganhado um novo
mestre na forma do dr. Paul Renault, interpretado por
Bela Lugosi. A presença de Lugosi oferece um pouco de
humor intertextual para os fãs de terror quando ele diz
“Você já me viu criar um zumbi [antes]”, fazendo uma
homenagem ao seu papel no primeiro filme de zumbis,
Zumbi branco (1932). Kolaaga é representado de
maneira séria, sem efeitos cômicos. É explicado que
Kolaaga, “tomado” por Renault, está sendo forçado a
sequestrar vítimas para zumbificação, além de realizar
serviços domésticos na assustadora mansão de seu
mestre. No filme, Kolaag realmente captura uma mulher
branca e a entrega a Renault, que opta por não
transformá-la em zumbi após ver sua beleza. E mais:
nesse filme Kolaag é ainda mais empoderado, pois ele se
volta contra o seu mestre, recusando-se a matar pessoas
sob as ordens dele, e, em vez disso, acaba matando
Renault (com uma pá). O filme mostra os nativos como
primitivos seminus e faz referência aos tambores vodu
com suas “batidas mortais” que enlouquecem os
brancos; os “nativos das montanhas” também dançam
ao redor do fogo com lanças. O humor do filme é
performado em sua maior parte por Jerry e Mike, que
chega até mesmo a aparecer em cena usando pintura
blackface (enganando os nativos, que pensam que ele é
negro).
FIGURA 3.1 APENAS A SOMBRA DE UM HOMEM NEGRO PODE ENTRAR NO
QUARTO BRANCO EM A MORTA-VIVA.
RKO/Photofest
O filme de terror “com negros” Pongo, o gorila branco
(1945) ganhou destaque pelo emprego de mais de uma
dúzia de atores negros numa época em que os papéis
diminuíam por causa das restrições orçamentárias dos
filmes B. Aqui, a maior parte dos negros escalados é de
figurantes — parcialmente vestidos e sem falas. Eles
guiam um time de cientistas brancos pelo “continente
escuro” e por uma terra “não explorada pelo homem
branco” em busca de um grande achado antropológico,
um valioso gorila branco, ou “pongo”, que se acredita ser
o elo perdido. Um violento gorila negro — que ataca
pongo, mas perde a luta e paga com a sua vida — não é
desejado, sendo devolvido para a floresta pelos homens
brancos quando é capturado por acidente. Quando os
nativos fazem algum barulho, isso ocorre apenas por
breves momentos, como quando eles bajulam as roupas
europeias ou quando gritam no momento em que pongo
os esmaga até a morte. Apenas um sortudo adulto
nativo, Mumbo Jumbo (Joel Fluellen), consegue falar
“bwana” e se oferece para ser o Porteiro #1”.10 No filme,
Mumbo Jumbo, assim como Carre-Four, também tem a
oportunidade de encostar numa mulher branca, mas não
o faz. E assim como Carre-Four e Kolaag, pouco se sabe
sobre Mumbo Jumbo enquanto ele se junta ao batalhão
dos muitos negros que são tratados como objetos (de
trabalho), e não como sujeitos, nesses filmes.
Considerar Pongo, o gorila branco como um filme B é
um ato de generosidade. O filme é barato e se apoia em
uma boa quantidade de filmagens antigas de animais
bebendo água para esconder um roteiro mal escrito e
problemático. Contudo, Pongo parecia um filme A e digno
de prêmios perto de seu doppelgänger O gorila branco
(1945). A maior parte de O gorila branco é uma mistura
bagunçada de filmagens arquivadas e cenas de um
curta-metragem mudo de 1915 chamado Perils of the
Jungle. Esse filme caótico é basicamente um filme de
guerra racial entre um gorila negro, Nbonga, que faz de
um raro gorila branco, Konga, um “pária” na floresta por
ser diferente.11 Os dois brigam ao longo do filme, onde o
gorila negro representa o “monstro com o peito cheio de
ódio”, o instigador. De maneira previsível, o filme
acontecia em algum “país ruim” da África, no qual os
nativos “odiavam o homem branco” e onde os brancos
temiam os batuques dos tambores nativos. Quando o
gorila branco é morto por um contrabandista branco, ele
é altamente elogiado, como gorila negro, Nbonga,
lamentando pelo nobre e caído guerreiro branco que só
estava lutando por sua raça em “uma batalha pela
supremacia da selva”:12
Você sabe que eu fiquei meio triste de ter que
matar aquele gorila branco. Ele parecia quase
humano. […] Sua morte pareceu lançar um
feitiço de solidão na floresta […] um tributo
silencioso ao seu fim […]; Eu quase posso vê-lo
[o gorila negro] ao descobrir o pária branco
deitado como se estivesse dormindo. Seus
esforços para fazê-lo lutar. E então a mudança
[…]. Sua surpresa ao olhar para a figura imóvel.
Um tipo de emoção humana o avassala. Então, a
lenta conclusão de que o pária está morto. E o
instinto animal retorna, o instinto de enterrar e
esconder os restos daquele que caiu pelas mãos
dos exploradores da selva. Um gesto de perdão
assim como um canto de morto para o pária da
sua raça — o gorila branco.
No fim o público fica sabendo mais sobre o gorila branco
do que sobre Carre-Four, Kolaag e Mumbo Jumbo juntos.
REFORMANDO HOLLYWOOD, REINVENTANDO
A IMAGEM NEGRA
Preparando-se para uma nova década cinematográfica,
em dezembro de 1939, Spencer Williams e uma lista
enorme de estrelas do terror negro, incluindo Clarence
Muse (Lua negra, Zumbi branco, O fantasma invisível),
Laura Bowman (Drums o’ Vodoo, Son of Ingagi) e Earl
Morris (Son of Ingagi), se encontraram para discutir como
fazer frente aos “tipos derrogatórios e estigmas”
infligidos aos personagens negros em filmes de todos os
gêneros.13 Cineastas independentes, negros ou não,
haviam desaparecido completamente na época; logo, a
grande parte das representações vinha de Hollywood.
Pedir mudanças, contudo, era uma proposta arriscada,
pois Hollywood era a principal empregadora e a indústria
já havia mostrado que podia e iria trabalhar ao redor de
uma presença negra, como Williams “sabia que falariam
de um lugar de fraqueza, das fileiras dos filmes B, de
papéis prevalentemente servis”.14 Muitos artistas negros
já estavam se mantendo calados “sobre a insatisfação e
raiva que sentiam pela falta de papéis decentes. Assim
como as estrelas brancas, eles sabiam que falar mal da
indústria não lhes daria nada além de uma passagem de
volta para o local de onde haviam saído”.15 A outra
alternativa era seguir adiante com o trabalho em
Hollywood, atuando como agentes de mudança onde e
quando pudessem.
Muitos negros optaram por falar sobre o tratamento
que recebiam em Hollywood. Em 28 de dezembro de
1940, o ator Clarence Muse tornou pública a sua
esperança de um novo ano que traria uma melhora no
tratamento da imagem dos negros:
DE ALGUMA FORMA, EM ALGUM LUGAR, PRECISAMOS TER UM
GRANDE FILME NEGRO. ESSA é uma resolução séria
[…]. Uma grande história negra, grande o
suficiente, boa o suficiente para ser lançada por
uma grande empresa como qualquer outro filme
[…]. Inspirador, ousado, cativante e verdadeiro
para com a vida negra em todos os seus
elementos […]. Eu decidi fazer o meu melhor
para encorajar isso […]. E se isso acontecer […].
Que Ano-Novo mais feliz!16
Ainda assim, o tratamento dos negros dentro e fora do
gênero terror era problemático, e depois de muita
deliberação a NAACP tentou encurralar Hollywood —
escritores, produtores, diretores, publicitários, diretores
de elenco e similares —, fazendo com que fosse assinado
um plano que melhoraria a posição dos negros na
indústria. Depois de uma resistência significativa em
Hollywood, que até então havia se recusado a ouvir, em
1942 a organização dos direitos civis finalmente
conseguiu uma reunião com produtores de cinema e
executivos de estúdios, e os incitou a liberalizar os
papéis oferecidos às pessoas negras.17 Contudo, os
negros eram culpados pelos seus próprios problemas; um
representante do estúdio Columbia Pictures disse:
“enquanto pessoas de cor […] aceitarem representar
papéis subservientes ou de bufões […] a venderem a
dignidade de sua
,raça”, as representações
continuariam.18
Com a ausência daquilo que Cripps chamou de
“estética negra”, era difícil identificar o que constituía
uma melhoria de imagem.19 A indústria cinematográfica
tinha o seu “Código”, que os exortava a avaliar se as
imagens que produziam eram moralmente apropriadas
ou exploradoras. O Código era claro em relação ao que
se julgava estar fora dos limites; coisas como beijos
apaixonados, palavrões, perversões sexuais e
miscigenação. Imaginar um “Código” desse tipo para a
imagética racial era difícil, embora as melhores mentes
continuassem tentando desenvolver uma técnica para
lidar com Hollywood. Lawrence Dunbar Reddick foi um
dos mais conhecidos e respeitados entre as pessoas que
trabalharam para criar um plano de ação. Reddick
recebeu um doutorado da Universidade de Chicago em
1939, e naquele mesmo ano assumiu uma posição de
curador no (atual) Centro Schomberg de Pesquisa da
Cultura Negra, que é parte da Biblioteca Pública de Nova
York. Durante seu tempo lá (1939-1948), ele escreveu e
apresentou suas ideias acerca do tratamento dos negros
em todas as mídias, como livros didáticos, rádio, mídia
impressa e cinema. Em 1944 ele publicou suas ideias
sobre como lidar com Hollywood em um longo ensaio
acadêmico no Journal of Negro Education. Reddick
sugeriu que as instituições de censura, como o escritório
Hays, que administrava o Código, deveriam se esforçar
para “incluir o tratamento do negro no cinema” como
parte das regras.20 Além disso, para proteger o interesse
dos atores, Reddick propunha que “atores negros,
especialmente, deveriam ser apoiados quando
recusassem papéis de empregadas e servos”. Ele ainda
pediu ao Escritório de Informações de Guerra para banir
termos racistas como “crioulo”, “escurinho”, “pretinho”,
“fumaça”, “zambo” e “malandro” dos filmes com base no
fato de que tal linguagem poderia ser explorada pelos
inimigos dos Estados Unidos.21 Reddick continuou a
circular suas ideias acerca da reforma. A NAACP continuou
a pedir reuniões, nem sempre com sucesso. Aqueles em
Hollywood que tinham a mente mais aberta fizeram as
mudanças que julgaram apropriadas. Contudo, o
progresso no cinema era lento. O ator negro Spencer
Williams Jr. tomou para si a obrigação de efetuar
mudanças ao seguir adiante com o seu próprio plano de
oferecer representações dos negros feitas por negros.
MAQUIANDO O FILME DE MACACO
A primeira contribuição de Williams para a causa veio em
1940 com um “filme negro” de terror dirigido e estrelado
por ele. Contudo, o título do filme — Son of Ingagi (1940)
— era vergonhoso. O público de terror já tinha ouvido
falar sobre os míticos “ingagis” antes. Em 1930, o diretor
William Campbell apresentou um filme de terror “com
negros” infame e controverso chamado Ingagi, sobre
primatas, ou “ingagis”, e as mulheres congolesas que
carregavam seus filhos. Ingagi originalmente foi
apresentado como um documentário real e verdadeiro
que reportava as práticas estranhas e bestiais praticadas
pelas mulheres negras da selva. Ingagi terminava com
uma mulher negra acariciando um bebê meio-humano e
meio-macaco.
Estaria Williams imaginando Son of Ingagi como uma
continuação? Por que Williams indicaria uma conexão
com o filme antigo usando um título tão similar? Os dois
filmes não têm ligações; contudo, Son of Ingagi, dirigido
pelo diretor branco Richard Kahn, tem algumas
correlações com o filme original. Son of Ingagi conta a
história de um cientista que viaja para a África e volta
com um símio “meio-humano, meio-fera”, como a
criatura é descrita no pôster de divulgação do filme.
Além disso, o filme também força sutilmente a noção de
acasalamento entre espécies; afinal, de onde
exatamente vieram as crias de símio-humano? Por sorte,
as similaridades acabam por aí, com Son of Ingagi
tomando um caminho novo ao focar em negros da classe
média.
A primeira contribuição imagética significativa do
filme reside na escolha da figura que resgata ingagi: uma
cientista negra — dra. Helen Jackson (Laura Bowman),
uma pesquisadora rica, brilhante e de mais idade, que
exibe grande conhecimento em química, antropologia e
comportamento animal. Por meio da dra. Jackson, a
imagem do homem branco em um safári é recodificada,
embora a natureza exploratória de tais missões não seja
fácil de ignorar mesmo com a presença de um corpo
negro feminino. A dra. Jackson é vizinha e amiga de um
casal recém-casado em ascensão, Robert e Eleanor
Lindsay (Alfred Grant, Daisy Bufford), que estão
celebrando suas núpcias com amigos igualmente
ambiciosos. Aqui, mais uma vez, William quebra uma
barreira, mostrando os noivos negros e seu casamento.22
O filme inclui um número musical dos amigos de Lindsay,
representados pelo quinteto real Four Toppers. O filme
também inclui a representação do “proeminente” e
competente advogado sr. Bradshaw (Earl Morris), e o sr.
Nelson, um detetive interpretado por Williams.
FIGURA 3.2 A DRA. JACKSON SE PREPARA PARA ENCONTRAR O SEU FIM NAS
MÃOS DO INGAGI.
Sack Amusem*nt Enterprises/Photofest
FIGURA 3.3 SPENCER WILLIAMS JR. (DE CHAPÉU).
CBS/Photofest
Na noite do casamento de Robert e Eleanor, a fábrica
onde Robert trabalha é completamente incendiada,
deixando-o sem emprego e imaginando como poderia
sobreviver. A dra. Jackson coloca o jovem casal debaixo
das suas asas, legando a eles sua casa e suas posses.
Quando a cientista é morta após um encontro com o
símio enfurecido, o animal escapa do confinamento e
passa a vagar às escondidas pela casa, e assim assusta
os Lindsays, que haviam se mudado para a casa da dra.
Jackson. Eles então ligam para a polícia e pedem que o
caso seja investigado. O casal não sabia, mas a dra.
Jackson tinha 20 mil dólares escondidos em casa, além
do macaco assassino. Embora o gorila em Son ande ereto
e use calças e uma túnica, o filme não explora a conexão
símio-humano, lidando com o monstro apenas como uma
besta destruidora. Graças a “um grande elenco de cor” e
à locação do filme em uma comunidade negra, os
salvadores dos Lindsays não são homens brancos que
chegam cavalgando para derrotar a besta selvagem,
como era visto em tantos filmes de gorilas com temas
coloniais. Em vez disso, a comunidade negra se junta
para ajudar os Lindsays.
O detetive Nelson (Williams) chega para resolver o
mistério dos assassinatos ocorridos na casa, que agora
incluem a morte do advogado, Bradshaw, que, durante
uma visita, é estrangulado secretamente pelo gorila.
Contudo, o símio se mostra tão elusivo quanto
enganador — quando Nelson termina de fazer um
sanduíche para si mesmo, o símio o rouba enquanto
Nelson está virado de costas, o que surpreende o
detetive. Assim sendo, Williams traz um pouco de humor
para sua performance, revelando algumas de suas
habilidades cômicas que usaria no (controverso e
pastelão) papel televisivo de Andrew “Andy” Hogg Brown
na sitcom The Amos ’n’ Andy Show (1951-1953).
Contudo, Williams não é nenhum idiota no filme. Ele é
mostrado como uma figura ao mesmo tempo séria e
engraçada. Notavelmente, com Nelson em sono
profundo, Eleanor fica alerta tentando escutar
movimentos e é ela quem descobre o gorila — embora
desmaie e tenha que ser resgatada por Robert, pois
Nelson é nocauteado pelo animal. Nelson se redime no
fim ao recuperar a riqueza escondida e entregar aos
Lindsays para que possam seguir suas vidas alegremente
e viver juntos o sonho norte-americano.
Son poderia ser encarado como um filme “B” que seria
lançado junto com outro — baixo orçamento e destinado
ao público negro, duas características mortais para as
bilheterias. Contudo, o filme teve sucesso ao dar o
primeiro passo para a recuperação dos filmes raciais e da
representação dos negros neles. O esforço tinha a ver
com a missão pessoal de Williams de mudar o
tratamento dos negros nos filmes de entretenimento.
LUTANDO CONTRA HOLLYWOOD, O
DIABO NÃO PODE ME DERROTAR
Bem, deixe-me ver, havia um cinema negro
antes, Spencer
,Williams se apresentou lá e fez
filmes relevantes. E havia público para isso. […]
Era uma cultura — cultura de cinema, cultura
negra — onde filmes sérios e relevantes eram
feitos.
— Charles Burnett, cineasta23
Natural da Louisiana, Spencer Williams Jr. entrou de
cabeça no mundo do entretenimento já adulto, depois
dos trinta anos de idade, após um tempo no Exército e
trabalhando no circuito de teatros, primeiramente como
ajudante e então fazendo pontas cômicas, também
contribuindo com alguns materiais cômicos para as
apresentações. Ele teve o seu início naqueles filmes
raciais cujo conteúdo era mirado em negros, mas feitos
por não negros. Williams apareceu em vários gêneros,
incluindo curtas musicais como Brown Gravy (1929),
faroestes como Harlem on the Prairie (1937) e dramas
criminais como Bad Boy (1939). Ele também foi um
escritor/roteirista creditado em filmes como a comédia
curta The Lady Fare (1929), Harlem Rides the Range e
Son of Ingagi, filmes nos quais ele também atuou.
Em 1983, quatorze anos depois da morte de Williams
em 1969, alguns de seus filmes foram encontrados e
recuperados em um galpão em Tyler, Texas (a duas horas
de distância de Dallas), pelo arquivista de filmes e vídeos
G. William Jones da Universidade Metodista Meridional,
em Dallas. Williams tinha um relacionamento especial
com a cidade de Dallas, tendo filmado e trabalhado por
lá em parceria com a Sack Amusem*nt Enterprise, que
lhe fornecia apoio em financiamento, distribuição e
produção. A Sack permitiu que Williams fizesse filmes
fora do sistema de Hollywood, que afinal o teria excluído,
enquanto detinha o controle criativo de seu produto.
A década de 1940 pertenceu a Williams. Ele dirigiu
doze filmes, todos eles entre 1941 e 1949.
Notavelmente, ele escreveu, produziu (com sua
companhia Amegro) e dirigiu O sangue de Jesus, um
“filme negro” de terror, em 1941. O filme, que marca a
estreia de Williams na direção, tem sido saudado com “o
filme racial mais popular já produzido”.24 O sangue
nunca foi vendido como um filme de terror, mas fugia de
classificações genéricas, sendo às vezes classificado
como fantasia e em outras como um drama religioso.
Contudo, se Sobchack estiver correto quando afirma que
o filme de terror lida com “o caos moral, a perturbação
da ordem natural”, especialmente a ordem divina, e
“ameaça a harmonia do lar”, então O sangue de Jesus é
um filme de terror quintessencial.25 O filme é
profundamente inspirado pela religiosidade cristã e é
centrado no tema do livre-arbítrio — escolher um
caminho de retidão ou de pecado. A ameaça ao lar é
introduzida quando a “Irmã” Martha (Catherine
Caviness), uma frequentadora da igreja e temente a
Deus, que vive numa pequena cidade rural, não
consegue persuadir seu marido Razz (Spencer Williams)
a ir à igreja nem para testemunhar o batismo dela. Razz
é considerado um pecador porque ele prefere caçar a ir à
igreja, e, em uma cena cômica, ele caça na fazenda do
vizinho, levando dois porcos como prêmio. O caos se
instaura quando Martha, ao voltar de seu batizado e
enquanto reza em seu quarto, é acidentalmente baleada
quando o rifle de Razz cai no chão. O rifle dispara, a bala
atravessa a parede do quarto e atinge Martha e sua
imagem de Jesus (branco). Ela é mortalmente ferida,
deixando Razz devastado. Mas esse é um filme de terror,
e a perturbação da ordem natural é esperada. Razz se vê
orando sinceramente por Martha, que está morta, mas
que ainda não foi endereçada ao Céu ou ao Inferno. De
maneira interessante, é Martha, e não Razz, quem tem a
sua fé desafiada. Aqui, mais uma vez, Williams se
distingue ao colocar uma mulher negra, assim como
fizera em Son com a dra. Jackson e Eleanor, no centro da
narrativa. Martha traz ainda mais profundidade na
representação da mulher. Ela é a antítese de Razz, um
marido relapso que cairia facilmente nas garras do diabo.
Logo, Martha é quem deve ficar vulnerável para se ter
certeza de que ela é uma mulher justa, e não hipócrita.
Já morta, Martha é recebida por um anjo que a leva
até a Encruzilhada, a junção entre o Inferno e/ou o Sião.
Martha, com muita certeza, escolhe o Sião, mas o Diabo
(James B. Jones, de chifre, capa e tudo) intervém,
enviando um “falso profeta”, o sedutor Judas Green
(Frank H. McClennan) como uma “tentação” para seduzir
a certinha Martha a testemunhar um lado da vida que ela
nunca viu. Ele dirige a atenção dela de Sião para a visão
de uma cidade iluminada e cheia de pessoas e música
alegre. Judas se torna o “bête noire da burguesia negra”,
pois sua fala ligeira e suave, assim como sua conexão
com o urbano, o tornam excessivamente mau.26 O
terreno de Judas é marcadamente diferente da vida rural,
sem glamour e cheia da poeira que é familiar para
Martha; logo, ele é capaz de atraí-la com roupas
elegantes ao mesmo tempo que a conduz pelo caminho
do Inferno, repleto de bandas musicais e casais
dançando em salões. Ao definir piedade e pecado dessa
forma, o filme não tenta esconder nada; é uma visão
direta da religião, “todas as superfícies” de seu
tratamento do bem e do mal.27
Judas primeiramente leva Martha ao Clube 400, um
lugar de classe para negros com mais dinheiro. Contudo,
Martha permanece brevemente por lá antes que o plano
verdadeiro seja revelado. Judas secretamente vende
Martha por 30 dólares a um colega chamado Brown
(Eddie DeBase), que está no clube esperando para pegar
a sua mais nova presa. Daí a narrativa de Williams, que
já é um conto moralizante, acrescenta um aviso para as
moças que metaforicamente “acabaram de saltar do
ônibus”, vindas da segurança do lar rural e recém-
chegadas na urbe traiçoeira. Brown leva Martha para um
bar decadente onde as mulheres recebem dinheiro para
dançar com homens (e talvez algo mais).
Enquanto o horror já havia prestado atenção nas
mulheres negras antes, frequentemente retratadas como
sacerdotisas vodu, raramente elas conseguiam ser
centrais e femininas. Mulheres negras não são elegíveis
para o pedestal simbólico onde as mulheres brancas são
colocadas pelos homens, para serem romantizadas,
olhadas com admiração, e terem seus corpos, suas
emoções e sua beleza protegidos. Esses momentos de
pura adoração tendem a ser reservados apenas para as
brancas, como Ann Darrow em King Kong (1933).
Contudo, Martha é uma personagem negra que chega
bem perto de ser colocada no pedestal. Razz sente sua
falta e reza incessantemente por ela. A última vez que
uma mulher negra se viu recebendo cuidados tão
atenciosos por parte de um homem, ela acabou sendo
estrangulada até a morte por ele (Klili, em The Love
Wanga [1936]). Ainda, Martha também é retratada como
uma “dama” sulista; por isso ela é um grande prêmio
para o Diabo. Quando Judas é enviado para tentá-la, ele
faz isso colocando-a em um pedestal, explorando a falha
de Razz em não reconhecer completamente não apenas
o valor daquela mulher, mas o que ela representa
enquanto uma dama. Nessa parte, Judas age como um
trapaceiro, confundindo Martha ao unir sexo
(sexualidade, atração sexual) com o feminino. Aqui há
uma diferenciação sutil e importante, distinguível em
grande parte quando comparamos a performance da
masculinidade de Judas, que é moldada pelo desejo e
pelos impulsos sexuais, com a performance de Razz mais
adiante no filme, que se concentra no amor e na
intimidade. Na verdade, o dilema de Martha é um conflito
em relação ao tipo de feminilidade que ela irá abraçar: a
“dama” ou a figura sexual em vestidos chiques e sapatos
(antes que ela seja “apagada”). Manatu argumenta que o
acesso e participação na feminilidade foi e continua
sendo negado às mulheres negras. Como resultado,
mulheres negras não têm a chance de lutar contra ou
escapar da performance feminina, incluindo o tal
pedestal.28 Notavelmente, a feminilidade que Martha
escolhe — ser uma dama respeitável e temente a Deus
— é o que lhe permite ter amor e romance (Razz) e
finalmente a assegura no pedestal.
Enquanto
,está aprisionada com Brown no bar, Martha
cai de joelhos em oração, implorando perdão a Deus, e,
em resposta, uma guardiã celestial negra ajuda Martha a
escapar de seu destino. Sentindo-se restaurada e
empoderada, Martha (agora em um vestido esvoaçante e
angelical) volta para a encruzilhada. Durante a sua fuga,
os servos do diabo no bar aparecem, saem em seu
encalço e tentam apedrejá-la até a morte. A próxima
cena é uma das mais dramáticas e estilizadas do filme.
Cripps considera a imagética do filme como “diferente de
qualquer outra em filmes afro-estadunidenses”.29 Nas
cenas seguintes, assim que Martha chega na placa que
marca a encruzilhada, a placa se transforma em uma
grande cruz com uma imagem de Cristo. Martha,
prostando-se diante da cruz, é literalmente lavada pelo
sangue de Jesus, que escorre do corpo de Cristo pregado
na cruz acima dela. Por mais chocante que a cena seja
em aparência e simbolismo, também é significativa, pois
tem a ver com Martha negociando um estado complexo
de abjeção. Isto é, ela se encontra em um estado entre
objeto e sujeito. Martha representa vários níveis de
abjeção, já que ocupa uma posição limítrofe entre a vida
e a morte, e também entre um santidade falha mas nem
tão pecadora assim. Martha revela o quão traumático,
física e psicologicamente, pode ser o confronto com a
sua condição de ter sido separada do corpo (objeto) e
estar distante de sua característica humana/humanidade
(sujeito).
A escolha final de Martha, ficar com Deus, expelindo
assim aquilo que ela não deseja como parte do seu eu
subjetivo, é uma lição sobre rejeitar o “impróprio” e
“sujo”, substituindo-o por um “eu próprio e limpo”.30
Restaurada pelo sangue de Jesus, Martha de repente
acorda em casa. Ela e o agora crente Razz são reunidos
sob o olhar cuidadoso da guardiã.
Williams tomou muito cuidado com o seu primeiro
filme, buscando detalhes minuciosos para acomodar os
mais exigentes membros do público que poderiam
escrutinar sua mensagem religiosa. Ele apresenta o
(verdadeiro) reverendo R.L. Robertson e seu Coral
Celeste ao mesmo tempo que oferece um vislumbre
autêntico da igreja negra, de sermões até canções e
orações. Na verdade, os três primeiros minutos do filme
deixam evidente que se trata de uma produção que leva
a religião e sua iconografia a sério. A congregação fala
sobre os “dez mandamentos originais aceitos como a lei
civilizada” e que a religião deveria ser “praticada com
honesta sinceridade”. Bíblias, cruzes e retratos de Jesus
aparecem por todos os cantos. Hinos como “Good News”
e “Go Down Moses” são cantados pelo coral. O reverendo
Robertson realiza um autêntico batismo na beira de um
rio enquanto o coral canta e os paroquianos rezam e se
engajam em louvores e adoração.
O sangue de Jesus também populariza vários temas
que se tornariam centrais em “filmes negros” de terror
mais modernos a partir de 1990. Os temas de Williams,
de escolha entre o bem e o mal, tentação pela agitação
da vida (nortista) urbana versus a vida (sulista) humilde,
honesta e rural, com a figura de mulher salvadora e
árbitra moral, figuram de significativamente em filmes
como Def by Temptation (1990) e Spirit Lost (1997).
ALELUIA! ELOYCE GIST
Enquanto as mensagens de Williams e o estilo
cinematográfico eram duplicados várias vezes nos filmes
de terror, os próprios filmes de Williams não emergiam
de um vácuo cultural. Marca da vergonha (1927), de
Oscar Micheaux, usou o urbano, a música mundana e
tudo o que acompanhava o estilo de vida que esse tipo
de música incentivava como um aviso para as pessoas
permanecerem próximas às suas raízes (sulistas).
Seguindo os passos de Micheaux, a dupla de cineastas
formada pelo casal Eloyce e James Gist produziu dois
filmes por volta de 1930, Trem para o inferno e Veredicto:
inocente, que traziam temas relacionados ao bom/sul e
ao mau/norte. Trem para o inferno, aqui considerado um
“filme negro” de terror, é particularmente seminal. O
sangue de Williams lembra bastante a história de Trem
para o inferno, que é centrada em uma jornada, com
mensagens que ecoam o caminho para a retidão. A
iconografia do filme curto e mudo dos Gists pode ter
influenciado o filme de Williams, já que os dois
compartilham a figura do Diabo, encruzilhadas e imagens
de perdição. Embora não haja evidência de que Williams
tenha assistido ao filme dos Gists, fica claro que Williams
aplica em suas produções um estilo visto nos trabalhos
de Micheaux e dos Gists.
Gloria J. Gibson providencia uma das pesquisas mais
informativas sobre a vida dos Gists, Eloyce em
particular.31 De acordo com Gibson, Eloyce Gist nasceu
no Texas em 1892, e Washington, D.C. se tornou o seu lar
pouco depois da virada do século. Ela frequentou a
Universidade Howard. É dito que o pensamento de Eloyce
em relação à religião refletia suas próprias crenças na fé
baha’i e nas crenças de James, seu marido cristão
evangelista auto-ordenado. Eloyce trabalhou em parceria
com o marido, e suas contribuições para os trabalhos da
dupla são inegáveis, ainda que não sejam precisamente
conhecidas. Contudo, o filme mudo Trem para o inferno é
significativamente considerado fruto do trabalho de
Eloyce, já que o roteiro é amplamente de sua autoria,
além das várias cenas cujas filmagens foram preparadas
por ela. Os Gists não fizeram filmes para entretenimento,
mas como uma ferramenta para ajudar seu ministério. A
dupla viajou de igreja negra em igreja negra, de carro,
com seus filmes e equipamentos.32 Quando Gibson
entrevistou a filha de 82 anos de Eloyce, hom*oiselle
Patrick Harrison, no início dos anos 1990, Harrisson se
lembrou de como o casal exibia seus filmes: Eloyce
tocava piano e liderava a condução dos hinos na
congregação. Então, o filme era mostrado, seguido por
um pequeno sermão de James Gist. Os ingressos eram
vendidos com antecedência, ou uma coleta era realizada
no fim da celebração, e o dinheiro era dividido entre os
Gists e a igreja.33 Os filmes dos Gists foram bem-
recebidos, chamando até mesmo a atenção da NAACP em
1933, quando a organização entrou em contato com o
casal para oferecer apoio aos esforços realizados por
eles.
Graças ao trabalho de acadêmicos do cinema como
Gibson e S. Torriano Berry, que têm remontado e
digitalizado fragmentos de filmes, a história do cinema é
bem discernível. Trem para o inferno começa com uma
citação em que se lê “O trem para o inferno está sempre
trabalhando, e o Diabo é o seu engenheiro”, e em
seguida vem uma mensagem do Diabo: “Entrada grátis
para todos — apenas entregue sua vida e sua alma. Sem
devoluções — viagem só de ida”. O filme então mostra
um grupo de pecadores fazendo fila para pegar seus
ingressos: “sem devoluções — viagem só de ida
[assinado] Satã”. O trem dedica vagões para todos os
tipos de pecadores, uma narrativa apresentada por meio
das sinalizações feitas por Eloyce.34 Por exemplo,
aqueles que dançam em festas e clubes têm o próprio
vagão porque “a dança de hoje é indecente”, com Eloyce
associando a dança e a música ao lado mais pecaminoso
da vida. Aqueles que vendem álcool também possuem
um vagão: “há espaço no inferno para os TRAFICANTES DE
BEBIDA e seus seguidores”. O álcool é mostrado como a
porta de entrada para todos os problemas das mulheres.
Vemos uma personagem sendo encorajada a beber por
um homem, que então a guia até um quarto privado.
“Enganada pelo sussurro de um homem”, ela é mostrada
em seguida sozinha, cuidando de um recém-nascido. De
maneira interessante, também há uma cena relacionada
à reprodução, em que uma mulher morre apesar dos
grandes esforços de um médico. O cartão indica: “Ela
usou da medicina para evitar se tornar mãe. É MELHOR ela
se acertar com Deus, porque isso é assassinato A SANGUE-
FRIO”.
35 Também há outros pecados não identificados,
como apostas e assassinatos, assim como a
desonestidade e a mentira. O demônio tem um vagão
para os “desviados, hipócritas e ex-membros da
Igreja”.36 Tudo indica
,que se trata de um trem muito
longo e com muitos vagões para acomodar todos os
pecadores; e nenhum deles evitará o julgamento e o
inferno.
Diferente de O sangue de Williams, não é mostrado ao
público que um retorno à religiosidade é possível depois
que alguém peca. Em vez disso, o pecador assim
permanece e embarca em sua jornada, com o trem se
movendo rapidamente na direção da “Entrada Para o
Inferno”. De acordo com Gibson:
o trem entra no Inferno com um estouro (por um
túnel), batendo e explodindo em chamas. O
Diabo circunda o trem para atormentar ainda
mais as vítimas. […] Na cena final, um homem,
talvez James Gist, afirma: “E assim eu mostrei a
vocês este quadro que pintei como uma visão
que tive depois de ouvir um sermão em um
culto”. Atrás dele há um grande pôster ou
fluxograma da jornada do trem para o inferno.
Essa cena pode ter servido como uma guia para
o sermão de Gist depois do filme.37
Após a morte do marido, Eloyce continuou sua jornada,
“viajando com os filmes, um projetor e um assistente por
algum tempo, mas logo chegou à conclusão de que não
conseguia aguentar sozinha as inúmeras
responsabilidades. As atividades de planejadora, diretora
e exibidora exigiam muito.”38 Ainda pior, o som deixou os
filmes mudos obsoletos, abrindo caminho para esforços
como os de Williams. Eloyce morreu em 1974. A
magnitude de seus feitos pode ser medida hoje pela
condição de seus filmes. De acordo com a Biblioteca do
Congresso, exibir tantas vezes as películas teve o seu
custo: “Os filmes foram exibidos tantas vezes que eles
literalmente desfarelaram nas emendas e foram
recebidos pela Biblioteca em centenas de pequenos
fragmentos”.39
As mensagens religiosas/“filmes negros” de terror dos
Gists e de Williams atuaram como poderosas
intervenções nos discursos cinematográficos que
envolviam os negros nas décadas de 1930 e 1940. Os
filmes de terror deram uma atenção dicotômica às
práticas religiosas dos negros, onde eram representados
como praticantes malignos de vodu ou (idealmente)
como cristãos fervorosos. Notavelmente, nem os Gists
nem Williams exploraram religiões negras de forma mais
ampla além do cristianismo. Williams, em particular,
tinha uma maneira de lidar a com religiosidade negra,
como mostrado no filme de 1934 da Sack Amusem*nt,
Drums o’ Voodoo, que examinava o vodu e o cristianismo
igualitariamente.
No filme, seguidores do vodu e do cristianismo
conviviam na mesma comunidade rural na Louisiana. O
letreiro inicial do filme mostrava os praticantes de vodu
como figuras malévolas por causa do batuque incessante
“às vésperas de um sacrifício”. Contudo, nenhum evento
do tipo acontece. Em vez disso, o mal surge na forma de
um vigarista cheio de estilo chamado obviamente de
“Tom Catt” (Morris McKenny). Aqui, Catt é muito parecido
com o Judas de Williams que persegue Martha, pois ele
deseja que uma jovem chamada Myrtle (Edna Barr)
trabalhe como um “agrado aos olhos” em seu bar. O
problema é que Myrtle não quer ter nada a ver com Catt
ou com seu bar. Outros lutam para que Catt não coloque
suas garras em Myrtle, incluindo um tio dela, que é
ministro da igreja, o Ancião Amos Berry ou Ancião Berry
(Augustus Smith), Ebenezer, o neto de tia Hagar, a bruxa
vodu local, e a própria tia Hagar (Laura Bowman). Hagar
usa sua magia para proteger a sobrinha do ministro. De
maneira significativa, ela tem o apoio do ministro, pois
ele anuncia: “Eu acredito que [ela] é a única pessoa por
aqui que pode expulsar Tom Catt desta comunidade”. Na
verdade, Hagar tem o apoio de toda a comunidade —
tanto a parte cristã quanto a vodu —, que deseja colocar
um fim nos modos perturbadores de Catt. É Catt quem
afasta as pessoas da igreja, mas é o trabalho de Hagar
que as une para declarar guerra contra Catt. Catt é
cegado, dentro da igreja, pela magia de Hagar. No fim,
atingido por Hagar, Catt cai em uma areia movediça e
morre. Tudo fica bem graças à união dos cristãos com os
praticantes de vodu, com os voduístas apresentando
uma religião negra diferente, mas nem um pouco
inferiorizada.40
Talvez Williams conhecesse o seu público e tivesse
optado por uma fórmula estritamente cristã que ele sabia
que funcionaria. O sangue de Jesus se provou popular e
lucrativo o suficiente para que a Sack Amusem*nt
oferecesse apoio ao segundo filme de Williams com uma
pegada sulista rural e religiosa.41 O próximo filme de
terror religioso de Williams, Go Down, Death (1944), é
centrado em Big Jim Bottoms (Williams), que está longe
de ser um personagem cômico. Em vez disso, Jim é o
dono de um clube noturno que também serve como um
parque de diversões para homens e mulheres de pouca
moral. A história faz um paralelo muito próximo com
Drums o’ Voodoo, pois Jim considera Jasper seu inimigo,
um jovem pregador (Samuel H. James) que cuida da
Igreja Batista Monte Sião, a qual está “acabando com os
negócios de domingo” no clube. Jim consegue a ajuda de
três “garotas de estilo”, ou prostitutas, para incriminarem
Jasper. Enquanto o ministro presenteia as mulheres com
bíblias e lê as escrituras para elas, as garotas o cercam,
colocam uma bebida em sua mão e o beijam
rapidamente, bem a tempo de Jim tirar uma foto.
Antes que Jim “exponha” Jasper e arruíne sua
reputação, a mãe (adotiva) de Jim, Caroline, descobre o
esquema e confronta o filho. Caroline, uma cristã devota
e frequentadora da igreja, exige as fotos. Caroline
também implora a Jim que reconheça Cristo para que
toda a família possa “estar junta no Além”. Em vez de
fazer isso, Jim zomba da mãe e ignora suas súplicas. Ao
som da canção “Nobody Knows the Trouble I’ve Seen”,
Caroline conversa em voz alta com o falecido marido,
Joe, e pede a ele que converse com Deus sobre Jim.
Caroline fica chocada ao ver a imagem fantasmagórica
de Joe aparecer, conduzindo-a até um cofre onde Jim
guarda a foto escandalosa e todas as cópias. O fantasma
de Joe abre o cofre para Caroline, e ela pega as fotos.
O uso que Williams faz do fantasma de Joe é muito
parecido com o uso de Martha em O sangue de Jesus, já
que ambos voltam dos mortos para falar com negros
sobre a experiência de pessoas negras. A história de
pessoas negras vivas é contada tão raramente na cultura
popular que chega a ser frequentemente representada
como se fosse contada pelos mortos. A eficácia de uma
comunicação desse tipo tem sucesso ou falha
miseravelmente, dependendo do lugar de onde o morto
fala. “Na modernidade”, escreve Holland, “a ‘Morte’ não
ocorre mais entre os vivos, e, para alcançar a separação
entre os alegres (vivos) e os miseráveis (mortos/quase
mortos), o hospital foi criado”.42 Nesses filmes negros, a
conversa dos mortos e moribundos acontece
notavelmente no lar. As lições de religiosidade de Martha
são dadas a partir da cama, em casa, enquanto é
cuidada e atendida por Razz, que reza por ela em sua
cabeceira.43 Da mesma forma, no filme de Williams, Joe
se aproxima de Caroline e só consegue se fazer ouvir
dentro do “lar” e durante as orações.
Jim surpreende Caroline antes que ela possa fugir com
as fotos e briga com ela, causando sua morte por
acidente. O título do filme, Go Down, Death, vem de um
poema/sermão fúnebre homônimo de 1926, de autoria
de James Weldon Johnson, que é pregado no funeral de
Caroline enquanto Jim escuta, com remorso, tendo
colocado a culpa da morte de Caroline em um ladrão.
Durante o sermão, palavras de conforto são oferecidas, o
que inclui a promessa de que Caroline não está
exatamente morta, mas que foi para o além.
Jim começa a receber sua punição durante o funeral
da mãe. Quando Jasper prega, “filho enlutado, não
chores mais”, Jim abaixa a cabeça envergonhado e
começa a ouvir uma voz — sua consciência falando. A
condição mental de Jim piora depois do funeral. A voz
demoníaca e incorpórea grita com ele: “Você matou,
você matou, matou a sua melhor amiga!” e “O Senhor
não perdoa assassinos”. Jim corre assustado, mas o
tormento piora. Jim corre, porém cai no chão
,enquanto a
voz promete: “Eu vou mostrar para onde você vai […]
Inferno!”. Contudo, Jim não consegue encarar o inferno
de pé e em posição ereta, sendo derrubado, ainda que
não esteja morto, para que possa ter uma visão de seu
destino.
Como uma marca registrada de Williams, ilustrado de
forma assustadora em uma sequência estilizada, o
Inferno é revelado a Jim através de visões chocantes de
almas torturadas de mortos-vivos se contorcendo em um
lago de gelo, e um Lúcifer com chifres devorando
violentamente suas almas. A sequência é emprestada de
um assustador filme mudo chamado L’Inferno (1911),
uma adaptação do Inferno de Dante, a primeira parte do
poema épico do século XIV, A divina comédia, dirigido por
Francesco Bertolini e Adolfo Padovan. As limitações
orçamentárias de Williams o forçaram a ser criativo,
apelando para uma das mais assustadoras
representações alegóricas do bem e do mal como fonte
de imagens de arquivo. O filme exibe uma jornada em
espiral para o Inferno, onde os pecadores sofrem torturas
infinitas. O Diabo está presente, abusando dos perversos
e até mesmo devorando-os. Pouco depois de ser exposto
a tais visões, Jim é encontrado realmente morto, tendo
viajado para o “Lugar Terrível” por essência (não apenas
uma casa mal-assombrada ou um túnel assustador), um
elemento do terror obrigatório e até mesmo célebre.44
Contudo, esses tipos de filme não eram sustentáveis.
Em 1968 e 1970, o acadêmico de cinema Thomas Cripps
entrevistou Alfred e Lester Sack, da empresa Sack
Amusem*nt Enterprises, distribuidores de O sangue de
Jesus e Go Down, Death. De acordo com Cripps, antes da
guerra, O sangue de Jesus (para usar de exemplo) “já
tinha se tornado quase uma arte folclórica para a
clientela rural sulista [de Williams], sua falta de artifício
parecia mais uma falha charmosa do que uma ferida
debilitante”.45 Contudo, os Sacks revelaram que a
locação do filme “naqueles dias […] quase esquecidos”
foi motivo de riso no norte durante os anos da guerra e
depois.46 Além disso, os assim chamados “filmes com
elenco inteiramente de cor” estavam competindo com
filmes em que os negros apareciam como coestrelas, e
não apenas figurantes, ao lado dos brancos. No gênero
do terror, infelizmente, papéis coadjuvantes para negros
significavam o papel do parceiro negro engraçado.
Williams teria que dividir sua década de conquistas com
tipos como Mantan Moreland e Willie Best, cuja
popularidade era construída em cima de papéis
humilhantes.
“NÃO TEM NINGUÉM AQUI ALÉM DE NÓS, AS
GALINHAS”
Será que os produtores de Hollywood estão
cientes de seus atos nocivos, Ou apenas
ignoram na cara dura e desconhecem os fatos?
Eles nos mostram como engraçados,
vagabundos, criminosos e preguiçosos,
Eles não sabem que pessoas de cor são como
todas as outras?
— Razaf (16)47
O cinema já tinha meio século de criação de imagens nas
costas; contudo, levando em conta a representação dos
negros durante esse período, as obras ofertadas parecem
saídas de algum palco de show de menestréis do século
XIX. Durante a escravidão e o período pós-reforma nos
anos 1800, as performances teatrais tinham muito a
dizer sobre as relações raciais ao oferecerem uma
representação oportunista da relação entre mestre e
escravizado. Os brancos eram representados como
figuras pacientes, cuidadores paternais de suas posses
humanas ineptas, fracas, mas contentes de qualquer
forma. Essa relação racial entre os brancos superiores e
os “escurinhos” alegres era uma fantasia poderosa que
suplantava a realidade das brutalidades da escravidão.48
Inicialmente, essas fantasias eram encenadas nos palcos
por brancos com o rosto pintado de preto e que
reproduziam um sotaque negro — um jeito de falar
simplório e cheio de palavras erradas. Enquanto parece
difícil imaginar que os negros participariam de sua
própria subjugação nos palcos, no fim dos anos de 1800
eles eram escalados em papéis de “escurinhos”, e alguns
até pintavam os rostos. Para atrair o público branco dos
shows brancos de menestréis, os atores negros
afirmavam ser de verdade, “verdadeiros escravos da
plantação, não uma ‘imitação’ como os brancos com o
rosto pintado”.49 O cinema apenas pegou essas
performances dos palcos (e às vezes também seus
atores) e as colocou em celuloide.
Por exemplo, o ator de teatro Harold Lloyd encontrou
sucesso no cinema, aparecendo em mais ou menos
duzentos filmes de humor. Um dos mais conhecidos foi a
comédia muda de terror de 25 minutos chamada
Haunted Spooks (1920). Haunted e filmes do tipo eram
chamados de “comédias de arrepio”, que misturavam
cenas tensas e arrepiantes ou sustos com muito humor.50
Nesse filme de terror “com negros”, um jovem, “o
Garoto” (Lloyd), ajuda sua nova esposa, “a Garota”
(Mildred Davis), a receber a herança dela, uma grande
mansão. A Garota não pode ser dona da mansão até
viver nela por um ano. O Garoto afasta o tio ganancioso
da Garota (Wallace Howe), que “assombra” a casa numa
tentativa de assustá-la até que ela vá embora. O filme
apresenta um grande grupo de atores negros
(aproximadamente dez) que interpretam servos e
escutam o tio dizer: “fantasmas sorridentes dos mortos
gritam de dentro de suas covas e vagam por estes
quartos”. O filme retrata os servos como pessoas
crédulas, espalhando a história (com o uso de letreiros)
com suas vozes negras cheias de palavras erradas: “I u
simitério todo fica virado dus avesso! Fantasmas de dar
medu, assustador, vêm pra zanzar nus quarto”. À medida
que o tio “assombra” a casa, um criado infantil (Ernest
“Sunshine Sammy” Morrison) mergulha em uma lata de
farinha, emergindo todo branco e petrificado. O mordomo
(Blue Washington) é mostrado como uma figura tão
assustada que ele só consegue sapatear no lugar
enquanto a tinta preta que cobre o seu rosto começa a
escorrer. A representação de negros era tão abismal no
filme que era possível achar que a palavra “spooks”
[sustos] no título era um xingamento ofensivo usado
para descrever os personagens negros.
Hollywood foi notavelmente prolífica em apresentar
tais comédias de terror, com os filmes desse tipo
dominando o gênero durante a década. O humor que os
negros exibiam, “um show de menestréis híbrido”, ainda
era orientado para os brancos, com os negros sendo
empregados para validar e velar o racismo.51 Essa foi
uma era marcada pela representação obsessiva de
negros como figuras “culturalmente inferiores”, que se
transformaram no fardo dos homens brancos, uma vez
que os eram mostrados como defeituosos, mas estavam
nos Estados Unidos para ficar.52 Os negros eram cada
vez mais apresentados como norte-americanos (fossem
do sul ou de Nova York, mais frequentemente do
Harlem), e não apenas como nativos da África ou do
Caribe. A mudança representacional teve um pouco de
propaganda, pois o Departamento de Cinema do
Escritório de Informações de Guerra afirmou que seria do
melhor interesse da nação a representação de uma
América unida (embora não totalmente integrada).53
Ainda assim, os filmes de Hollywood continuaram com
seus insultos. Por exemplo, no filme de terror “com
negros” O castelo sinistro (1940), Bob Hope,
interpretando Larry, fala em viajar para “Black Island”
[ilha negra] a fim de (numa piada de duplo sentido)
“conhecer de perto os fantasmas”. A proeminência de
filmes do tipo era, em parte, o resultado de planos
incompletos de censura que identificavam facilmente e
exigiam a remoção dos estereótipos mais escandalosos e
viciosos, mas ignoravam aqueles calcados no humor.
Como resultado, comédias de terror racistas se tornaram
comuns, e tudo isso serviu para reforçar a ascendência
branca.54
UM PECADO E UMA VERGONHA
“Eu estou com uma vontade danada de sair,
mas as minhas pernas não ajudam!”
— Birmingham Brown, Charlie Chan em O mistério do
rádio (1945)
Willie Best se vendia como Sleep ’n’ Eat [dorme e come].
Nellie (Wan) Conley se tornou Madame Sul-Te-Wan [uma
brincadeira fonética cuja tradução seria
,algo como
“southy one”, a sulista]. Ernest Morrison era conhecido
como Sunshine Sammy. Mantan Moreland não precisava
de truques do tipo, já que o seu próprio nome vendia.
Quando o nome de Moreland aparecia em um anúncio, o
público podia ter certeza de que iria ouvir os seus
melhores bordões e vê-lo arregalar os olhos e tremer de
medo. Os personagens que esses atores representavam,
e o que fizeram pela reputação deles e dos negros, têm
sido descritos nos termos mais implacáveis. Contudo,
parte do desdém mais feroz tem sido reservado para
Moreland. O acadêmico de cinema James Nesteby
descreveu os papéis que Moreland aceitou como “o
amigo alegre, o preto que vira um covarde ao primeiro
sinal de perigo, ou o preto que nem conseguia mexer os
pés enquanto o resto de seu corpo tremia”.55 O jornalista
britânico e historiador de cinema Peter Noble (181-182)
escreveu de forma brutal acerca de Moreland: “nenhum
ator negro revirou os olhos com tanta desolação quanto
Moreland, nenhum ator de cor se esforçou tanto para
retroceder às caracterizações sub-humanas de Stepin
Fetchit. Ele é a ideia aceita nos Estados Unidos do
supremo palhaço negro e atua na frente das câmeras
como um macaco bem treinado”.56
Nascido na Louisiana em 1902, Moreland começou sua
carreira como um artista itinerante, encontrando seu
caminho nos palcos de vaudeville por volta dos vinte
anos. Aparecendo em mais de cem filmes, foi a comédia
que deu fama a Moreland. Ele foi creditado como sendo
um artífice da comédia, exibindo um “arsenal de gestos e
caretas que os atores geralmente usavam para roubar a
cena e desenvolver personagens”.57 Suas performances
espirituosas eram perfeitas para as comédias de terror.
FIGURA 3.4 MANTAN MORELAND.
Toddy Pictures Co./Photofest
No filme de terror “com negros” O rei dos zumbis
(1941), que se passa durante a Segunda Guerra Mundial,
Moreland interpreta Jefferson “Jeff ” Jackson, um morador
do Harlem e motorista de seu mestre branco, Bill “sr. Bill”
Summers (John Archer). A dupla, juntamente com o seu
piloto, James “Mac” McCarthy (Dick Purcell), faz um
pouso forçado em uma ilha nas Bahamas. Lá, o trio
encontra a mansão do dr. Miklos Sangre (Henry Victor),
um cientista austríaco. Sangre também é um “agente
secreto” de um “governo europeu” que não é nomeado.
Ele usa os poderes do vodu como ferramenta de
interrogatório para conseguir segredos de guerra de um
almirante norte-americano a fim de que os inimigos da
América (que se comunicam por rádio em alemão)
tenham a vantagem militar. Os planos do cientista
dependem dos poderes de Tahama (Madame Sul-Te-
Wan), uma velha sacerdotisa vodu que também trabalha
como cozinheira. Apesar de seu pequeno tamanho,
Moreland rouba a cena quando arregala os olhos
enquanto fala uma coisa engraçada depois da outra a
despeito da própria negritude. Por exemplo, pouco antes
da queda, ele diz todo arrepiado: “Oh, oh!!! Eu sabia que
não tinha nascido pra ser um passarinho preto”. E
quando o seu personagem, Jeff, chega à conclusão de
que sobreviveu à queda, ele proclama: “Eu pensei que
tivesse a cor errada pra ser um fantasma”. O propósito
de Jeff no filme é ser acometido pelo medo, enquanto os
brancos ao redor dele são calmos e racionais, reforçando
dicotomias de emoção negra e razão branca.58
Quase todas as falas ditas por Jeff (ainda que corretas)
são sobre os perigos da ilha e a necessidade do trio de ir
embora rapidamente. De tal maneira, Jeff é covarde,
enquanto os homens brancos são sérios e heroicos. Mas,
claro, Jeff não corre, preferindo ficar perto do seu sr. Bill.
Em outra cena, Jeff recebe uma cama na ala dos
empregados, longe do sr. Bill. Ele é escoltado até lá pelo
estranho mordomo Momba (Leigh Whipper). Tanto por
medo quanto por lealdade, Jeff pergunta: “Ah, sr. Bill,
priciso memo ir, não posso ficá aqui com o senhô?”. Jeff
não apenas volta o seu humor contra si, mas implica
outros negros em sua ignorância ao descrever os zumbis
negros da ilha como “preguiçosos demais para deitar”.
Em 1943, a Monogram Pictures, a mesma empresa
que trouxe O rei dos zumbis ao público, lançou uma
sequência, A vingança dos zumbis. Enquanto os dois
filmes possuem basicamente a mesma premissa, as
narrativas não se conectam, e o segundo filme não faz
nenhuma menção ao primeiro. A vingança é situado na
Louisiana, com Moreland reprisando o papel de Jeff.
Madame Sul-Te-Wan também está de volta, mas desta
vez no papel de Mammy Beulah, uma velha empregada
tagarela. Eles se juntam a uma horda de zumbis
silenciosos que inclui James Baskett (vencedor do Oscar
por A canção do sul [1946]), como o sobrecarregado
escravo zumbi Lazarus.
A premissa de A vingança é parecida com a de O rei,
mas é ainda mais explícita em sua propaganda anti-
Alemanha/Nazi. O dr. Max Heinrich von Altermann (John
Carradine), que saúda os seus compatriotas alemães
com uma batidinha dos saltos de suas botas, está
fazendo experimentos com uma droga feita de “lírios do
pântano” que irá ajudá-lo a criar um exército de zumbis:
“Estou preparado para fornecer um novo exército ao meu
país, tantos milhares quanto necessário […] um exército
que não precisará ser alimentado, que não pode ser
parado por balas. Que é, realmente, invencível.”
Quando sua esposa zumbi (branca) desaparece, von
Altermann junta os negros em sua cozinha para
interrogá-los. A coisa mais interessante nessa cena é o
desprezo que os personagens negros têm pelo alemão.
Quando Altermann acusa sua empregada Rosella (Sybil
Lewis) de saber o paradeiro da zumbi, porque ela está
“sempre andando de fininho, observando e escutando
tudo”, Rosella responde em tom desafiador: “Num vi
nada, num ouvi nada”. Em seguida, uma desdenhosa
Mammy Beulah se intromete, desafiando o mestre: “Tem
certeza que num sabi pr’onde ela foi, tem certeza que
num consegue adivinhá?”. Quando Altermann responde
“Eu estaria perguntando se soubesse?”, Mammy Beulah
rebate: “Bem, mestre, ‘taria sim, se quisesse fingi que
num sabe”. No fim das contas, é uma ótima troca, dadas
as representações e relações raciais da vida real na
época. Os personagens negros não são “engraçadinhos”,
mas são oposição. É uma cena poderosa de propaganda
norte-americana mostrando os negros unidos pelo
desprezo ao alemão. Nos filmes dessa época, os negros
não eram mostrados em levantes em oposição aos
brancos dessa forma, e certamente não mereciam
impunidade. Os zumbis negros ou nativos praticantes de
vodu, na época, não eram os únicos monstros do período
da guerra. Os cineastas distribuíam monstruosidades
mais ao longe, e os zumbis se tornaram a representação
de um tipo de controle mental e social antidemocrático
que regimes mais fascistas empregariam.59
Mantan Moreland e Flournoy Miller, como Washington
e Jefferson, respectivamente, se uniram na comédia
negra de terror Lucky Ghost (1942). Lucky tinha um
elenco negro e mirava no público negro. Foi dirigido por
William Beaudine, um homem branco que, com mais de
350 filmes na carreira, era conhecido por fazer filmes B
em duas semanas ou menos. O filme foi distribuído pela
Dixie National Pictures, Inc. de Ted Toddy (mais tarde
transformada na Toddy Pictures Co.). Toddy, um homem
branco que apoiou vários filmes que estrelavam
Moreland, construiu sua fortuna produzindo e
distribuindo filmes com negros, como Harlem on the
Prairie (1937), Mantan Runs for Mayor (1947) e House-
Rent Party (1946).
Lucky Ghost conta a história de dois azarados,
Washington (Moreland) e Jefferson (Miller). Descobrimos
que eles estão encrencados com a justiça por causa de
um juiz que disse “Saiam da cidade e continuem
andando”, o que a dupla não muito inteligente fez de
forma literal, andando por dias a fio. Washington não
sabe escrever e não conhece os dias da semana, mas é
um exímio jogador de dados. Jefferson faz o homem sério
da dupla, que dá respostas sagazes e se engaja em
humor pastelão. A comédia deles não distancia os negros
dos velhos estereótipos.
,cômico, em filmes
negros como esse, cada personagem em tela, o bom e o
mau, o alto e o baixo, representavam um vasto mundo
de peles mais pigmentadas que realmente existia na vida
real, mas que raramente era visto na tela grande.
Nas décadas de 1950 e 1960, os afro-estadunidenses
estavam mais uma vez sendo ignorados por Hollywood,
não apenas nas telas de cinema, mas nas telinhas da TV
também. Mais ou menos nessa época, fiquei surpreso em
ver Ben, o protagonista negro do clássico filme de terror
A noite dos mortos-vivos (1968) de George A. Romero,
sobreviver durante o filme inteiro, mas ainda assim a
produção se recusou a se afastar muito da tendência de
morte dos negros.
Contudo, na década de 1970 os filmes mudaram.
“Diga sem medo: eu tenho orgulho de ser negro!”* se
tornou o novo mantra à medida que um novo estilo de
filme começou a aparecer nas telas para abrir as portas
de nosso novo orgulho racial e despertar social. Os filmes
da era blaxploitation não forneceram apenas dramas
urbanos violentos como Shaft (1971) e The Mack (1973)
aos negros, mas também produziram várias
interpretações de histórias clássicas de terror, como
Blácula: o vampiro negro (1972), Blackenstein (1973) e
Monstro sem alma (1976). Conforme essa curta era de
afro-iluminismo nas telas ia sendo esquecida, ao que
parece, as portas do horror popular começavam a abrir
com rangidos, mas apenas o suficiente para que alguns
poucos negros fossem para o abate.
PERGUNTA: Por que o personagem preto é sempre o
primeiro a ser comido pelo monstro?
RESPOSTA: Carne preta tem gosto bom e enche
menos!
Foi na década de 1980 que Hollywood entrou em sua
fase “Mate um Negão”. (Nota: Eu sei que a Associação
Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor [NAACP]
enterrou a palavra que começa com N, mas eu a uso aqui
pelo bem da precisão histórica.) Durante esse período,
parecia que se um personagem negro fosse permitido em
cena, ele ou ela estariam mortos quando os créditos
rolassem. Em Lobos (1981), Gregory Hines foi atacado
por um lobo; em Gremlins (1984), Glynn Turman virou
almoço; em Quadrilha de sádicos 2 (1985), Willard E.
Pugh foi esmagado; em Coração satânico (1987), Lisa
Bonet foi abusada sexualmente por uma arma
carregada… e assim por diante. A grande maioria dos
personagens negros não era apenas morta durante esse
período, mas eles eram os primeiros a morrer, e existe
pelo menos um site que documenta esse fenômeno:
Meu interesse pessoal no terror começou há muito
tempo e se estende ao meu trabalho pessoal. Em virtude
da minha tese apresentada na Universidade da
Califórnia, em Los Angeles, em 1985, The Black Beyond,
uma série antológica estilo Além da imaginação/Quinta
dimensão, mas sob uma perspectiva negra, eu fui
convidado por Warrington Hudlin, da Black Filmmakers
Foundation em Nova York, para participar de um fórum
sobre negros no terror, ficção científica e fantasia.** Eu
dirigi da Filadélfia, onde eu morava na época, até Nova
York ansioso para participar e ver os outros trabalhos
independentes do gênero que estavam sendo feitos, só
para descobrir que, naquele momento, na metade para o
final dos anos 1980, eu estava sozinho.
Já tinha lido em algum lugar que não há um filme de
terror feito que tenha perdido dinheiro. Sendo assim,
quando eu decidi fazer o meu primeiro filme, The
Embalmer (1996), escolhi fazer um filme de terror e
acabei declarando falência… Eu sei, informação
desnecessária. Independentemente disso, aquela
afirmação acabou se provando verdadeira porque o filme
deu lucro… Só que eu não fiquei com nada. Produzi The
Embalmer com um elenco e equipe formados por alunos
da Universidade Howard com um orçamento abaixo de
30 mil dólares, financiado em sua maior parte por um
empréstimo cuja garantia era a minha casa. O filme
rendeu mais de 100 mil dólares no mercado audiovisual
amador, mas os distribuidores, Yvette Hoffman e Toni
Zobel da Spectrum Films em Mesa, Arizona, preferiram
sair do mercado a me pagar os direitos autorais.
Posteriormente, cheguei à conclusão de que eu estava
bem antenado em relação ao conceito, pois vários outros
filmes de terror estavam sendo produzidos por afro-
estadunidenses, incluindo Contos macabros (1995) de
Rusty Cundieff e Os demônios da noite (1995) de Ernest
Dickerson.
Nos anos que se seguiram, mais e mais negros
apareceram em filmes de terror, fossem eles os primeiros
a morrer ou não. A popular e lucrativa série Todo mundo
em pânico, introduzida por Keenen Ivory Wayans, que se
destina a parodiar filmes modernos de terror, foi um
acréscimo ao grande escopo do gênero e ajudou a
aumentar ainda mais a bilheteria desses filmes. O
mercado de filmes que vão direto para o suporte do DVD
tem agora várias produções de horror com negros para
serem escolhidos, com variados níveis de medo,
qualidade e orçamentos. E, com as novas e avançadas
tecnologias que tornam a produção de filmes mais
acessível para as massas, além de lugares para exibição
on-line como o Facebook e o YouTube, muitos outros
negros irão morrer de forma horrível em futuros filmes de
terror. Os produtores de filmes de horror de hoje,
independentemente da cor de suas peles, sabem que só
existe uma cor de sangue na tela e para eles tanto faz a
cor do dinheiro usado para comprar os ingressos na
bilheteria…
STEVEN TORRIANO BERRY
Agosto de 2010
STEVEN TORRIANO BERRY é cineasta e professor adjunto da Universidade
Howard, em Washington, D.C. Dirigiu o filme The Embalmer, considerado um
dos primeiros exemplos de horror urbano no cinema e escreveu alguns
livros, entre eles The 50 Most Influential Black Films e Historical Dictionary of
African American Cinema.
* De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2018, 55% das pessoas no Brasil se declaram
negras ou pardas, tornando o público uma maioria minorizada,
enquanto nos Estados Unidos, a população negra é também minoria
numérica. [Nota da Editora, daqui em diante NE]
* O título do filme faz referência a uma expressão (originada na
época da escravidão nos Estados Unidos) que denota algo suspeito
ou oculto. O filme então usa a expressão de modo literal para
ampliar seu significado. No livro Migrating to the Movies: Cinema and
Black Urban Modernity, de Jacqueline Najuma Stewart, a autora
comenta que, no filme, há dois homens negros se esgueirando em
uma pilha de lenha e, com isso, não há necessidade de motivar de
forma narrativa suas ações criminosas. Segundo a autora, eles
confirmam a expressão popular, incorporando seus significados
literais e figurativos. [NE]
* Referência à canção escrita por James Brown e Alfred “Pee Wee”
Ellis em 1968, “Say It Loud - I’m Black and I’m Proud”. [Nota do
Tradutor, daqui em diante NT]
* Desde a primeira publicação do livro Horror Noire, em 2011, alguns
dos sites indicados podem ter saído do ar, mas foram preservados
em suas menções. [NE]
** Uma forma usual de classificar a junção de gêneros como a fantasia,
ficção cientifica e horror sobrenatural é o “termo guarda-chuva”
ficção especulativa, sobretudo porque as barreiras entre eles são
tênues. A categorização de Coleman de que o terror estético
significa para pessoas negras, e um fórum que se dispõe a discutir
sobre negros no terror e fantasia evidencia a proximidade, mas pode
nos fazer questionar se obras como Kindred (Octavia Butler)
poderiam ser classificadas assim. O texto se refere a uma
experiência vivida nos anos 1980, certamente não poderia prever as
implicações teóricas que, na década seguinte, seriam discutidas
sobre uma perspectiva nova: o Afrofuturismo. Sobre Afrofuturismo,
ver: SOUZA, Waldson Gomes de. Afrofuturismo: o futuro ancestral na
literatura brasileira contemporânea. 2019. Dissertação (Mestrado em
Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília.
[NE]
HORROR
NOIRE
PREFÁCIO
A PROMESSA REVELATÓRIA DO
CINEMA DE GÊNERO
Rick Worland
,Por exemplo, os dois possuem
um radar interno para encontrar galinhas. Quando
Washington invade um viveiro para roubar galinhas, ele é
surpreendido pelo dono, que grita “Quem está aí!?”,
dando espaço para o coloquialismo popular de
Washington: “Não tem ninguém aqui além de nós, as
galinhas”. À medida que Washington foge do viveiro, o
proprietário atira em seu traseiro. Em 1915, a Lubin
Manufacturing Company produziu um desenho chamado
A Barnyard Mix-Up, centrado “no ladrão de galinhas
Rastus que escapa dos tiros do fazendeiro, mas é
derrubado pelo machado, embora seja ressuscitado de
forma inusitada por uma explosão de dinamite”.60 Lucky
serviu como lembrete de que o estereótipo de “negros
amando galinhas” pode ser uma coisa perigosa.
A sorte da dupla muda quando Washington ganha
uma bolada, um carro, um motorista e roupas em uma
partida de dados contra dois transeuntes que estão se
dirigindo para um clube ilegal (que funciona dentro de
uma mansão). Washington e Jefferson vão para o clube e,
enquanto estão lá, Washington ganha o clube inteiro em
um jogo de dados. No fim das contas, o clube é um lugar
mal-assombrado por uma família insatisfeita pelo fato de
seu “sobrinho inútil” ter transformado a casa, agora
propriedade de Washington e Jefferson, em um lugar
onde ocorrem “estripulias, dancinhas de jazz e
algazarra”. As assombrações dão grandes oportunidades
para que Washington, alternadamente, fique paralisado
de medo ou comece a implorar “que meus pés não me
falhem agora”.
A atuação de Moreland como “o pretinho que se
acovarda” não se limitava às comédias de terror.61 No
mistério The Strange Case of Doctor RX (1942), no papel
de Horatio Washington, seu cabelo ficou branco de medo.
Quando foi escalado na série de comédias de mistério do
detetive Charlie Chan como o motorista Birmingham
Brown, de 1944 até 1949, ele geralmente soltava frases
como: “Eu estou com uma vontade danada de sair, mas
as minhas pernas não ajudam!”.62
Cedric Robinson, em Forgeries of Memory & Meaning:
Blacks & the Regimes of Race in American Theater & Film
Before World War II, se esforça para reabilitar o legado de
Moreland63 argumentando que ele “não era um tolo” e foi
alguém que usou de um tipo de subterfúgio com o qual
fazia pouco caso e zombava dos brancos por não serem
tão superiores quanto diziam. Robinson cita O rei dos
zumbis (1941) como um filme em que Moreland entalhou
uma réplica negra. Por exemplo, Robinson enxerga
capacidades intelectuais em Jeff que são propositalmente
evidenciadas com o uso que Jeff faz de palavras como
loquaz, kosher e prevaricador. Realmente, Jeff usa tais
palavras, mas em Jeff, cuja fala também é repleta de
malapropismos, esse linguajar é usado para causar um
efeito cômico.
E, em relação à representação de Birmingham Brown
de Moreland, Robinson até enxerga esperança ali,
observando que Brown transformou a casa de Chan em
um lugar mais “diverso, vivaz, carinhoso e cômico”.64 A
inclusão de Moreland é certamente vivaz e cômica,
embora seja mais utilizada como um acessório do que
para proporcionar uma diversidade racial.
É difícil enxergar como, num todo, essas comédias de
terror fazem alguma coisa além de mostrar os negros
como inferiores. Enquanto os personagens de Moreland
permanecem ao lado de seus mestres, grudados feito
cola, os filmes comunicam que está tudo bem entre
negros e brancos. Tais representações mostram uma
“visão da harmonia racial ao apresentar para o seu
público-alvo uma imagem dos negros como figuras
engraçadas (eles não podem ser infelizes; eles nos fazem
rir), confusas (veja, eles precisam de nós para guiá-los) e
ansiosas para agradar (nós obviamente merecemos a
atenção deles)”.65 Esses filmes também são únicos
porque a violência neles é muito trivializada. Em filmes
de terror mais tradicionais, a violência está sempre
presente, mas dificilmente é trivializada. Quando uma
múmia estrangula ou quando um gorila esmaga, essas
ações são entendidas como violência. Quando o
personagem de Moreland leva um tiro no traseiro
durante uma fuga ou quando o personagem de Eddie
Anderson, Eddie, o motorista, em A volta do fantasma
(1941), leva repetidas cabeçadas de uma foca e quase se
afoga, as consequências da violência infligida contra
corpos negros (nessa era das leis Jim Crow, ainda por
cima) são silenciadas.
FIGURA 3.5 WILLIE BEST.
RKO Radio Pictures/Photofest
Willie Best era o outro ícone das comédias de terror na
década de 1940. Ele também começou a atuar cedo,
“com o preto alto e magro passando por toda a ladainha
banal do comediante vaudeville com o rosto pintado de
preto”.66 Bogle escreve, com um pouco de chiste, que
Best era o “step” de Stepin Fetchit (Lincoln Perry), com
Best se apropriando das caracterizações cômicas,
vacilantes e de gestos toscos de Perry, e, dessa forma,
roubando papéis que teriam ido para Perry.67 Best não
era nem de longe um bom ator como Perry e não
conseguia realizar as performances de pretos
preguiçosos e lentos com a mesma criatividade. Ele
simplesmente não era um bom ator. Em O castelo
sinistro (1940), Best aparece juntamente com Bob Hope,
fazendo bico enquanto atura frases como: “Você parece
um blecaute durante um blecaute. Se isso continuar
assim, eu vou ter que pintar você de branco”. Best era
sempre o mesmo, não muito engraçado, apenas um
parceiro idiota que não reagia a insultos ou disparava
alguma ferroada ocasional, como Moreland fazia. Best,
notoriamente, esticava o lábio inferior, arregalava os
olhos e vagava por filmes de terror “com negros” como O
passo do monstro (1932), no qual ele considera sua
semelhança com um gorila, e O fantasma risonho (1941),
em que ele acrescenta cruzar os olhos e ultrapassar
cavalos em debandada ao seu arsenal de performances
de “negrinho assustado”. Best seria chamado de novo e
de novo para fazer pouco mais do que tremer de medo e
pular por causa de sombras em outras comédias de
terror como The Body Disappears (1941), Veleiro
fantasma (1942) e Cara de mármore (1946).
NEGRO ASSUSTADO… MARIONETES?!
“Se eu sou ’marelo, cê é daltônico.”
— Scruno, Spooks Run Wild (1941)
A grande proliferação de comédias de terror pareceu
quase sufocar as conquistas de Spencer Williams. Até
mesmo a série de filmes The East Side Kids (1940-1944),
com o jovem Scruno (Ernest “Sunshine Sammy”
Morrison), usou do recurso do negro assustado. Em
Spooks Run Wild, enquanto Scruno anda por uma
mansão escura e assombrada, ele é repreendido pelos
colegas: “Da próxima vez que você for sair do escuro, se
cobre com uma mãozinha de tinta branca, ouviu?”, ao
que Scruno responde: “Tô tão assustado que tô ficando
branco agora”. Em Fantasmas à solta (1943), outro filme
de gravação rápida de William Beaudine, Scruno treme e
gagueja: “Quem é… diz quem é quando eu pergunto
quem é”, enquanto Emil (Bela Lugosi), um espião nazista,
o persegue.68 Não surpreende que Hollywood iria deixar
de infantilizar homens para implicar crianças — reais e
desenhadas — na encenação do negrinho assustado.
George Pal fez filmes em stop-motion com marionetes
de madeira chamadas de “puppetoons”. Os filmes mais
infames de Pal são os curtas da série Jasper (1942-1947)
que estrelam a marionete Jasper como “o pretinho”
(como Jasper era apelidado nas propagandas), retratado
numa caricatura de pintura blackface — olhos
arregalados, lábios sorridentes largos e brilhantes,
contrastando com sua pele preta como carvão —, que
vive com a sua “Mammy” em uma cabana decrépita.
Jasper e aqueles ao redor dele conversam com sotaque
negro. Ao longo da série, o amor de Jasper por melancias
é algo constante e representa a fonte de muitos de seus
problemas, situando-o no território dos filmes de terror,
com Jasper experimentando uma “violência arrepiante”
realçada por cenas escuras, mal iluminadas e que
emprestam um tom sinistro e agourento.69 Em Jasper and
the Watermelons (1942), Jasper rouba melancias de uma
plantação proibida. O filme
,então se transforma em uma
“sequência assustadora com a criança [mortificada]
sendo perseguida por figuras ameaçadoras”.70 À medida
que o dia vira noite, melancias aparecem cantando: “Vai
ter problema na Terra das Melancias hoje à noite”,
enquanto se transformam em monstros assustadores que
vão atrás de Jasper. As melancias monstros se tornam
predadoras ao se esforçarem para devorar Jasper, que
por pouco escapa delas, correndo e saltando e lutando
para se afastar de suas bocas. Uma cachoeira de suco de
melancia finalmente fornece a Jasper a vantagem de que
ele precisa, pois a correnteza o leva de volta para casa,
para sua Mammy… que dá a ele um pedaço de melancia.
Em Jasper and the Haunted House (1942) não é uma
melancia, embora normalmente seja, o que mete Jasper
em confusão, mas uma torta de groselha. Por ordem de
Mammy, Jasper precisa levar uma torta para o diácono
Jones, mas acaba em uma casa mal-assombrada. A
sombra de Jasper vira as costas e sai correndo, deixando
o menino sozinho. Aqui, com efeitos especiais, os olhos
de Jasper se arregalam e flutuam de medo, na velocidade
do som. Há um interlúdio musical em que fantasmas
tocam um pouco de jazz no piano e aparições dançam ao
redor.71 Por fim, Jasper foge da casa e, durante a fuga,
fica preso em uma placa onde é possível ler: “Dá próxima
vez, experimente a torta de groselha dos fantasmas”.
Jasper foi criado pela imaginação de Pal, que nasceu
em 1908 na Hungria e morreu em 1980 nos Estados
Unidos. Durante a sua carreira, seu trabalho de animação
lhe rendeu um Oscar, além de outras seis indicações. Pal
afirmava não ter nenhuma animosidade racial em mente
quando criou Jasper, dizendo que ele estava apenas
“trazendo à vida um verdadeiro personagem afro-
estadunidense e que não nutria nenhum preconceito
racial”.72 Ignorou-se o fato de que a série foi construída
em cima de uma sopa de estereótipos negros e
disfunções unidos à pobreza abjeta, um lar
monoparental, pai ausente e mãe negra, tendo como
centro um negro “à toa e problemático”, que, ainda por
cima, rouba melancias.73 Pouco importava a intenção do
criador, a recepção por parte dos negros foi ruim. A
revista Ebony publicou um artigo, “Little Jasper Series
Draws Protest from Negro Groups”, lamentando a
representação de um garoto negro que ama melancias
tanto quanto teme casas mal-assombradas.74
Richard Neuert faz um paralelo entre os filmes de
Jasper e, de maneira interessante, as produções de
Spencer Williams, escrevendo: “contudo, é válido notar
que alguns dos temas de Jasper, como o incentivo para
que o povo do campo permaneça onde está, que respeita
as velhas tradições e rechaça o furto, também
apareceram em filmes raciais com atores de verdade na
década de 1940, filmes como o famoso O sangue de
Jesus de Spencer Williams, feito por e para afro-
estadunidenses”.75 Contudo, os filmes de terror/religião
de Williams eram incomparáveis e se tornaram um
gênero por si só, “pristinamente negros em [sua]
advocacia, locação, ponto de vista, ética social, e […]
técnica popular resolutamente não hollywoodiana”.76
Não havia nada em Jasper que refletisse negritude, e ele
certamente não adotou os objetivos adicionais de
advogar ou privilegiar os valores da burguesia negra.
Williams apresentou sistemas de valores, posicionamento
de classe, rituais e comportamentos, relações amorosas
e ideologias de empoderamento que não haviam sido
vistos durante esse ciclo de filmes de terror. Os filmes de
Pal não apenas falharam em dialogar com essas visões,
mas eram simbolicamente devastadores. Na verdade,
quase duas décadas depois de Pal apresentar Jasper, os
grupos negros ainda tentavam manter estereótipos
desse tipo afastados dos telespectadores. Em 1959, um
canal de televisão de Portland, Oregon, precisou ser
persuadido pela Liga Urbana a cancelar a série por causa
de seus estereótipos óbvios. A imprensa negra — os
jornais Los Angeles Sentinel, Chicago Defender e Afro-
American (de Baltimore), entre outros — noticiou que a
Liga Urbana escreveu para o canal KOIN sobre a
representação de Jasper, que servia para “perpetuar
noções falsas sobre as peculiaridades dos negros como
raça”. O apelo também chegou a afirmar: “É uma coisa
trágica que Jasper e seus associados sejam
continuamente apresentados de maneiras que
solidificam noções falsas e atendam a uma demanda de
superioridade racial por parte dos telespectadores
brancos”.77
CONCLUSÃO
As produções de Spencer Williams não eram
tecnicamente complexos. Afinal, um dos filmes (O
sangue de Jesus) mostrava o Diabo como um homem
vestido com algo semelhante a uma fantasia de
halloween. Alguns críticos chegaram a dizer que suas
lições simplistas de piedade não correspondiam com os
tempos mortais em que eram transmitidas. Ainda assim,
Williams usou literalmente de sua fé para criar “filmes
negros” de terror populares e de sucesso centrados na
cultura negra (sulista) e pensados para o público negro.
Infelizmente, Hollywood ignorou as evidências e
continuou a procurar narrativas banais e estereotipadas.
Ainda assim, grupos de indivíduos instruídos e
organizações continuariam a fazer apelos a Hollywood,
pedindo que o tratamento dos negros sofresse alguma
revolução. Joel Fluellen (Pongo, o gorila branco [1945]) e
Betsy Blair (atriz e esposa de Gene Kelly), em 1946,
apareceram diante da Guilda dos Atores de Cinema (SAG)
e propuseram que a associação advogasse pela afiliação
de negros: “AGORA, PORTANTO, SEJA RESOLVIDO que a Guilda dos
Atores de Cinema use de todos os seus poderes para se
opor à discriminação contra os negros no cinema”.78 Em
1947, Boris Karloff (A múmia [1932]), como membro do
comitê antidiscriminação da SAG, notou os desafios que a
guilda enfrentava e o acréscimo de mudanças que a
organização buscava:
Se insistirmos que os produtores escrevam
papéis para os negros de acordo com um certo
padrão, é bem possível que excluam
completamente os papéis para negros. Contudo,
o que pretendemos fazer é lutar pela inclusão de
negros em todas as cenas que tenham
multidões. Planejamos insistir para que em
todas as cenas pelo menos 10% dos
personagens sejam negros fazendo coisas
normais como as outras pessoas.79
A proliferação de comédias de terror enterrou e minou os
pedidos de mudança. Nessas ficções, os negros são, de
maneira alternada e/ou simultânea e “de forma natural”,
autenticamente dóceis e selvagens, cuidadores e
monstruosos. Tais tratamentos exigiam que se
questionasse a possibilidade de algum dia os negros
interpretarem o monstro cotidiano nos filmes de terror,
ou criaturas retratadas na mitologia, ou serem inseridos
em um terror psicológico. Poderia o terror criar um
monstro negro sem apontar a raça inteira como
monstruosa, ou talvez retratar um personagem negro
como uma figura corajosa ou salvadora? Os Gists e
Williams começaram a responder essas perguntas de
forma afirmativa com alguns recursos. Enquanto se
provou fácil exibir uma participação inteira e complexa
dos negros no gênero do terror, a indústria do cinema
continuou a falhar em agir ao longo dos anos seguintes
por uma série de razões sociais (e algumas financeiras).
Os filmes de terror deixaram a década de 1940 assim
como entraram: ameaçados. Chamar de “filmes B”
alguns dos filmes que seriam produzidos na década
seguinte seria terrivelmente generoso, já que cineastas
dos anos 1950 seriam considerados sortudos se
conseguissem contratar algum humano de verdade para
entrar em roupas de borracha e interpretar monstros.
Cada vez mais, o terror virou motivo de chacota à
medida que os monstros se tornavam criaturas infláveis
(O cérebro do planeta Arous [1957]), tocos de árvore
feitos de borracha e papel machê (Veio do inferno
[1957]) e marionetes tinhosas controladas por cordas (O
ataque vem do Polo [1957]). Isso deixou tudo ainda mais
fácil para a televisão, que começou a transmitir
nacionalmente em 1948, tornando-se uma rival para o
cinema. Embora
,a TV fosse mais rigidamente regulada
pela Comissão Federal de Comunicações (FCC), se um
telespectador quisesse ver algo assustador, a televisão
tinha, fosse transmitindo filmes de terror ou criando uma
programação de suspense (nem tanto terror, mas algo de
ficção científica) como Alfred Hitchco*ck Presents (1955-
1965). Se o negro engraçado era desejado, a televisão
também oferecia isso, com negros “menestréis da TV”
80
aparecendo em programas como Beulah (1950-1953) e
Amos ’n’ Andy (1951-1953).
Já com relação aos filmes de terror, invisibilidade e
ridículo são os melhores termos para descrever o que
havia adiante para os negros pelas próximas duas
décadas (1950 e 1960). Nos anos 1950, a ficção
científica e o terror tenderiam a criar monstros
deformados por bombas atômicas. Diferente de Spencer
Williams, que imaginou uma mulher negra cientista,
Hollywood não conseguia fazer o mesmo. Já que
Hollywood não conseguia imaginar cientistas negros em
laboratórios onde bombas e produtos químicos eram
criados e experimentos davam errado, não era possível
ter negros lidando com esses temas. Os negros se
tornaram basicamente invisíveis nos filmes de terror da
década de 1950 — a menos que algum cientista
precisasse fazer um safári africano. Com essa exceção,
os negros só apareceriam novamente nos anos 1960 em
híbridos de show de menestréis (por exemplo, The Horror
of Party Beach [1964]). Seria apenas em 1968, quase 25
anos depois dos filmes de Williams, com Ben, o
protagonista negro de A noite dos mortos-vivos, que o
gênero alcançaria a visão de Williams.
HORROR
NOIRE
1950/60
INVISIBILIDADE NEGRA, CIÊNCIA
BRANCA E UMA NOITE COM BEN
Eu sou um homem invisível. Não, eu não
sou uma assombração como aquelas que
atormentaram Edgar Allan Poe; nem sou
um dos seus ectoplasmas de Hollywood.
Eu sou um homem de substância, de
carne e osso, fibra e líquidos — e pode-se
até dizer que tenho uma mente. Sou
invisível, compreenda, simplesmente
porque as pessoas se recusam a me ver.—
ELLISON, 19521
Parecia algo saído do espaço sideral, e
também parecia um pesadelo, não uma
parte de mim. — MAMIE TILL BRADLEY,
mãe de Emmett Till, garoto de quatorze
anos que foi assassinado por brancos
racistas2
Algo estava errado. Na pacata e afável cidadezinha de
Santa Mira, a paz idílica da década de 1950 estava sendo
perturbada por um grupo de “eles” perigosos que se
esforçavam para invadir o “nós” comunitário. A cidade
reage rapidamente, embora de forma controversa, contra
a ameaça. Quando ônibus interestaduais deixam
forasteiros em Santa Mira, os intrusos são recebidos de
maneira agourenta pelo xerife da cidade, colocados na
parte de trás de seu carro e levados embora para nunca
mais serem vistos. Controle e conformidade eram as
novas preocupações de Santa Mira; logo, seus habitantes
não tolerariam mais visitantes (baderneiros de fora) que
tivessem potencial para fazer perguntas e que poderiam
influenciar os outros com suas agendas diferentes. A
cada dia, os cidadãos apertavam as rédeas, eliminando
toda e qualquer divergência. Uma banda de jazz/swing
que chegou alguns meses atrás para tocar em um dos
restaurantes populares da cidade, logo sinalizando um
flerte entre Santa Mira e o progresso — “estamos no
caminho” —, foi, neste novo clima, expulsa. A banda foi
substituída por um jukebox pré-programado. No geral,
era uma representação lamentável dos Estados Unidos,
que reprimia a humanidade de seus cidadãos: ser
“mecânico” nesse contexto era ser um “zumbi
ambulante!”.3
A cidade fictícia de Santa Mira do filme de terror/ficção
científica Vampiros de almas (1956) funcionava como
uma metáfora para as muitas ameaças que os Estados
Unidos enfrentavam em 1950 — mudança, guerras
(atômica/fria), invasão estrangeira, comunismo e
integração racial. E evidenciou, como muitos filmes dos
anos 1950 e 1960, “uma forte ressonância entre os
elementos do filme com várias ansiedades existentes na
cultura mais ampla”.4 No filme, embora a noção de
segurança-na-igualdade tenha sido levada por imigrantes
(ilegais) do outro lado do mundo, isso não obscureceu o
fato de que os norte-americanos estavam felizes em
assegurar a insularidade e estabilidade pelos meios que
fossem necessários. Vampiros, um filme de terror sem
nenhum personagem negro, evidenciava como alguns
norte-americanos acreditavam que, embora a estrada
para o fascismo cultural pudesse ser desagradável —
como ficar de pé na frente de uma escola para repelir o
individualismo —, o fim justificava os meios.
Vampiros permanece até hoje como um clássico cult
não apenas para os fãs, mas continua a ser um dos
filmes mais celebrados nos Estados Unidos.5 O filme
narra a história de como vagens alienígenas aterrissaram
na Terra, trazendo com elas a habilidade de replicar
completamente os humanos e então matá-los para
produzir clones emocionalmente neutros, ou “pessoas
vagens”.6 Metaforicamente, Vampiros pode ser visto
como o termômetro para o tratamento dispensado a
qualquer coisa que se mostrasse uma ameaça à
conformidade branca nos filmes de terror das décadas de
1950 e 1960. Acertadamente, houve pouca variação de
representação no gênero do terror ao longo das décadas
de 1950 e 1960, já que os negros eram invisíveis para os
invasores de Santa Mira.
OS INVISÍVEIS
À medida que os anos 1950 emergiam, os personagens
negros se tornaram uma presença rara no terror. O que
no passado constituía na representação do trabalho
“negro”, como empregados ou trabalhadores rurais, se
tornou menos necessário numa era em que o cinema
estava mais preocupado com ameaças científicas e
extraterrestres. Nesses desafios, os brancos, e
notavelmente as personagens femininas, assumiam o
papel de ajudante. Por exemplo, num filme de 1957, O
ataque vem do Polo, um (hilário) pássaro monstro
gigantesco com uma tela de energia anti-matéria
ameaça o planeta (os Estados Unidos, em particular).
Embora a invenção mais mortal da ciência, a bomba
atômica, não seja capaz de exterminar esse alienígena,
os cientistas permanecem resolutos, esforçando-se para
encontrar uma solução. Nesse filme, há pouca
necessidade da presença de negros carregando bolsas ou
servindo refeições. O pássaro é um dilema para
intelectuais, e o espaço em que essas pessoas trabalham
são laboratórios ou centros de pesquisa. Nesse contexto
de trabalho, os negros não servem, teoricamente, para
nada.
No filme, a “srta. Caldwell” (Mara Corday), uma
mulher branca matemática e analista de sistemas,
exerce a função de ajudante. Embora prometa ser uma
pessoa estudada, ela é incapaz de mapear o padrão de
voo básico do pássaro (isto é, analisar o seu sistema). Em
vez disso, Caldwell se transforma naquela que recebe
ordens e tolera abusos sexuais de maneira afável — ela é
referida como “mãe, querida mãe” e recebe ordens de
um colega de trabalho, “me beija e fica quieta” —, o que
ela faz avidamente. Esse tipo de “repressão severa da
sexualidade/criatividade feminina”, escreve Wood, não
apenas atribui passividade, subordinação e dependência
à figura da mulher, mas “em uma cultura dominada por
homens […] a mulher como o Outro assume uma
significância particular”.7 Embora o trabalho primordial
de Caldwell seja parecer bonita e servir como algum tipo
de empregada, servindo bebidas aos homens, ela é
capaz de fazer notas e cuidar de painéis eletrônicos —
tarefas que presumidamente vão muito além da
capacidade dos negros.
Até mesmo na ausência geral de diversidade racial, o
uso do simbolismo racial era abundante ao longo da
década de 1950. O filme A noiva do gorila (1951) une a
diferença e a aberração de forma parecida. Aqui, o
personagem Barney (Raymond Burr) é o capataz de uma
plantação de seringueiras que cuida do gerenciamento
de uma residência construída no interior da selva
amazônica. Barney é um gerente cruel que possui
lembranças saudosas: “Oh, quando eles tinham
escravos!”. Os cineastas sabiam que filmes de selva do
,tipo tinham implicações raciais, e essa produção não foi
uma exceção, trazendo frases como: “Pessoas brancas
não deveriam viver por muito tempo na selva”. De
acordo com Thomas Cripps em Making Movies Black, um
escritor do jornal AfroAmerican, de Maryland, Carl
Murphy, “foi chamado para ser um consultor em […] A
noiva do gorila [daí] estabelecendo um ponto de vista
negro em relação a coisas que iam além do uso da
palavra ‘crioulo’ nos diálogos”.8 Na verdade, insultos não
estão presentes no filme, tampouco participações
significativas de negros. No filme, Barney passa a cobiçar
a esposa do chefe, Dina (Barbara Payton), e mata o chefe
para poder possuí-la. O assassinato é testemunhado por
Al-Long (Gisela Werbisek), uma bruxa que amaldiçoa
Barney. O homem é atormentado por alucinações nas
quais ele acredita que está se transformando em um
gorila. O filme apresenta uma pequena ponta do famoso
ator negro Woody Strode no papel de Nedo, um policial
local. Sua presença é breve aqui, e Strode interpreta de
maneira direta. Ele é estoico e profissional. Suas ações
estão largamente centradas na procura rápida pelo
quarto de Al-Long para ver se ela tinha escondido
alguma evidência do assassinato do chefe. Seus
princípios funcionam para dar credibilidade ao poder
assustador do vodu. Alarmado pelo poder da bruxa, Nedo
a censura de forma veemente: “Eu não acredito em
magia negra […]. Mas fique longe da minha casa. Eu não
quero bruxas perto das minhas crianças”. Ele então sai
de cena (e do filme) rapidamente. A brevidade da
participação de Strode é triste, já que serve para lembrar
o que atores negros poderiam acrescentar ao gênero —
um medo real, sem precisar arregalar os olhos para
parecer assustado. Contudo, qualquer tipo de
representação, assustada ou normal, na metade do
século XX, ainda era uma raridade.
Outra produção pertencente a esse ciclo de filmes de
terror, A noiva e a besta (1958), traz gorilas/primitivismo
e civilização no centro de tudo. Contudo, mais uma vez,
os negros desaparecem das telas. A noiva e a besta não
tem nenhuma pessoa negra em seu elenco, mas ainda
assim obteve sucesso ao exibir o “continente escuro” e
tudo que vem dele como algo grotescamente assustador.
No filme, Dan (Lance Fuller), um grande caçador, se casa
com Laura (Charlotte Austin). A licença de casamento
deles custa 6 dólares, o que faz Dan exclamar de forma
inexplicável: “Eu poderia comprar seis esposas por esse
preço no meio da África!”. Dan apresenta Laura para
Spanky, um gorila africano que ele capturou e mantém
aprisionado no porão de sua casa no topo de uma
montanha nos Estados Unidos. Laura exibe uma estranha
atração sexual pela besta ao conhecer Spanky, olhando
de forma luxuriosa para o gorila e, mais tarde, sonhando
com o animal. Em uma cena chocante, Spanky visita
Laura no quarto, onde a besta e a mulher se abraçam, e
o animal despe Laura em seguida. Dan mata Spanky
imediatamente. A estranha atração de Laura pelo animal
é explicada sob hipnose: em uma vida passada Laura foi
um gorila, a rainha dos gorilas, para ser mais exata.
Laura e Dan, juntamente com o “criado” Taro9
(interpretado pelo ator branco Johnny Roth com o rosto
pintado de marrom), cujo vocabulário é limitado a se
dirigir a Dan como “Bwana”, vão até a África para que
Dan volte a caçar. Aqui, os monstros (gorilas negros) e o
lugar (África) são abertamente racializados. Enquanto
está na África, a atração de Laura por todas as coisas
africanas — um tipo de febre da selva — se torna ainda
mais profunda, e Dan tentar curar a obsessão dela. O
filme termina com uma Laura entusiasmada sendo
levada para os confins da selva nos braços de um gorila
negro. Contudo, a cena provoca inquietação, mostrando
Dan como a verdadeira vítima, que perde o seu amor
para um tipo de miscigenação grotesca, uma mistura de
espécies que provoca um medo parecido com aquele da
mistura de raças. Em resumo, animais e negros são a
mesma coisa.
PRETO SAI, PRETO FICA
O filme de terror “com negros” de 1957 chamado
Monster from Green Hell evidenciou como os negros
poderiam ser empregados de maneira efetiva no gênero
do terror. Trata-se de uma produção B de terror/ficção
científica — baixo orçamento, efeitos especiais cômicos.
O filme começa com o questionamento: o que
aconteceria com a vida “no vácuo sem ar acima da
atmosfera da Terra” em uma “aglomerado de radiação
cósmica?”. Para descobrir a resposta, o programa
espacial dos Estados Unidos envia um macaco, vespas,
um caranguejo, aranhas e um porquinho-da-índia para o
espaço em dois foguetes não identificados. O desastre
acontece quando um dos foguetes é perdido “perto da
costa africana”. Dan (Robert Griffin) e Quent (Jim Davis),
dois cientistas norte-americanos brancos que trabalham
no projeto espacial, logo recebem relatos de vespas
monstruosas e misteriosas que estão causando
destruição na África Central e decidem fazer algo. Lá os
homens conhecem o médico branco dr. Lorentz (Vladimir
Sokoloff) e sua filha Lorna (Barbara Turner), que tratam
os nativos africanos com medicina “real” e cuja missão
secundária é ajudá-los a se livrar de suas crendices, o
que inclui medicina tradicional e orações para deuses
não judaico-cristãos. O filme toma um rumo previsível
com a inclusão de um safári pela selva com nativos
mudos, descamisados e de tangas que andam em fila
indiana e carregam bagagens na cabeça.
Contudo, entre os nativos há um homem chamado
Arobi. Arobi é interpretado por Joel Fluellen, um ator
negro que advogou incansavelmente por papéis
complexos e dignos de nota para os negros em
Hollywood. A influência de Fluellen é evidente, com o
personagem Arobi quase roubando o filme para si (se
assumirmos que alguém estaria prestando atenção em
tal personagem). Arobi é um personagem orgulhoso e
articulado que está bem longe do “Mumbo Jumbo”
interpretado por Fluellen, um servo no filme de terror
“com negros” Pongo, o gorila branco (1945). Arobi está
sempre bem-vestido com roupas ocidentais de safári —
calças cáqui, um chapéu característico, camisa passada,
meias até os joelhos e um cinto de utilidades com
munição e um rifle. Embora Arobi receba frequentes
instruções dos cientistas para trabalhar ou “fazer” coisas
— como a importante atividade de montar explosivos —,
ele também é questionado com frequência acerca de
suas ideias em relação ao plano que estão tramando.
Enquanto os guias nativos são subservientes aos
cientistas brancos, Arobi se torna um membro importante
da equipe, contribuindo com conselhos em tom
profissional. Ele não dorme com os nativos, mas ao redor
do campo com os brancos — perto, mas não junto (afinal,
há uma mulher branca na equipe).
O filme termina com o grupo assistindo ao fim dos
monstros e um diálogo final. Os três integrantes brancos
falam primeiro. Os dois homens e, então, a mulher, falam
brevemente. No fim, é Arobi quem solta o tocante trecho
final: “A morte das criaturas trará a libertação do meu
povo. Os deuses foram bons. Eles nos ensinaram, como o
dr. Lorentz nos ensinou, a ter fé.” A fala evidencia uma
dependência continuada em relação à sabedoria branca.
Contudo, também funciona para restaurar algum valor
cultural à negritude. Muito do filme tem a ver como
desdém pelos modos dos nativos, mas Arobi enfatiza
uma noção da existência de deuses (plural). Porque, na
verdade, não é a ciência que mata os mutantes. Quem
faz isso é a África, por meio de um de seus vulcões, que
os destrói, trazendo equilíbrio para a natureza.
Monster from Green Hell não é uma obra perfeita, e os
problemas são significativos. Com a exceção de Arobi,
ainda é um filme que invisibiliza os negros. Por exemplo,
uma das mortes mais ligeiras e corriqueiras ocorre
apenas dois minutos e 51 segundos após os créditos
iniciais. Aqui, um homem negro chamado Makonga (sem
créditos), de uma das vilas africanas, é encontrado
morto. Sua morte não é vista, e é simplesmente dito que
o homem encontrou o seu
,fim pelas mãos de um monstro
da selva — “o inferno verde” — que injetou uma
quantidade enorme de veneno nele. A cena serve para
estabelecer o que falta na negritude e aquilo que é
superior na branquitude. O corpo de Makonga é levado
até o dr. Lorentz. O dr. Lorentz representa a
modernidade, a sofisticação do iluminismo científico e
religioso dos brancos. Makonga é submetido a uma
autópsia sob a sombra de uma grande cruz pendurada
acima de seu corpo no hospital improvisado. A morte de
Makonga também simboliza o que há de errado na África
— seu “caos”, como menciona o filme. Seis meses depois
da morte de Makonga, os monstros se multiplicaram,
mas não há o menor sinal de qualquer forma de governo
africano, tampouco militares, centros médicos, indústrias
ou cidades modernas — há apenas a selva. A África é
retratada como rebelde, uma terra primitiva cheia de
superstições, sem modernização ou civilidade. Logo, são
os norte-americanos, cujos próprios experimentos
colocaram o continente em perigo, que saem voando
(literalmente, pois o filme faz uma propaganda das linhas
aéreas TWA) para tornarem-se os salvadores. Dan e Quent
chegam na África, de uma maneira que Sontag chamaria
de “fortemente moralista”, para fazer com que todos
saibam que eles dominam o uso próprio e humano da
ciência, e que eles, os homens brancos, não são
cientistas loucos.10 Em relação aos personagens negros,
com exceção de Arobi, há apenas “nativos” trabalhando
como uma junta de animais e sendo retratados como
vítimas desafortunadas dos monstros em fúria. Esses
papéis — carregadores e vítimas — não são mutuamente
exclusivos.
“EU REALMENTE AMO MULHERES
BRANCAS”11
Os cineastas continuaram a forçar a tendência de
oferecer aquilo que Gonder chama de “monstros
grosseiros racialmente codificados”, mas alguns também
acrescentaram mensagens antimiscigenação de maneira
aberta ou velada, só por via das dúvidas.12 O monstro da
lagoa negra (1954) é para os anos 1950 aquilo que King
Kong foi para a década de 1930, um filme
metaforicamente racializado e contra a mistura de raças.
O filme apresenta uma equipe de cientistas/arqueólogos
brancos viajando pela Amazônia em busca de uma
criatura negra que é ao mesmo tempo marinha e
terrestre — o Homem Guelra (Ricou Browning/Ben
Chapman). Assim como em O ataque vem do Polo, a
equipe conta com uma pesquisadora branca cujo papel
principal é ser um colírio aos olhos e gritar assustada
quando o Homem Guelra é avistado. Obviamente, ela
também é o objeto de desejo do monstro, que ataca
repetidamente a equipe para capturá-la. Os
pesquisadores são guiados na expedição por um grupo
de brasileiros que, assim como os africanos em Monster
from Green Hell, encontram fins terríveis e caóticos logo
no início do filme. As mortes desses homens — nativos —
são desimportantes, já que apenas a morte de um
cientista seria “um desperdício de experiência e
habilidade”.13 Contudo, o monstro evoca uma
racialização problemática.
Nesse filme a criatura é violenta e obstinada em seu
desejo por uma mulher branca. O Homem Guelra é Kong
e Gus de O nascimento de uma nação unidos em um só
corpo. Em relação ao seu corpo, o monstro parece uma
caricatura racista — os lábios são grandes e exagerados,
sua pele é pigmentada. É aparentemente vazio
mentalmente. Seus movimentos são trôpegos, exceto
quando faz um manobra rápida para roubar a mulher
branca. O monstro serve como uma imagem inversa da
evolução branca, que é mostrada como moderna,
intelectual e civilizada. Isto é, o filme nos diz que os
brancos — homens brancos no topo da hierarquia —
evoluíram, enquanto, note, outras raças permanecem
estáticas e imóveis em seu progresso. Logo, o filme fala
sobre onde, ou em quais lugares (a Amazônia exótica e
perigosa), e em quais populações (os brasileiros negros
ou não brancos) é possível encontrar a inferioridade.
Quando o monstro encara o seu esperado fim em seu
próprio território, pelas mãos da elite científica branca,
não apenas sua subordinação é assegurada, mas
também fica evidente que um Outro não tem lugar nem
pode contribuir para o mundo branco, e que sua mera
presença, ainda que em seu mundo não branco, é um
incômodo — algum tipo de fardo do homem branco.
Patrick Gonder, em seus ensaios “Like a Monstrous
Jigsaw Puzzle: Genetics and Race in Horror Films of the
1950s” e “Race, Gender, and Terror: The Primitive in
1950s Horror Films”, apresenta uma leitura detalhada e
profunda de O monstro da lagoa negra, argumentando
que a função do filme não é só reforçar a superioridade
branca e a inferioridade dos não brancos, ou sua
monstruosidade. Além disso, o filme também “toca nos
medos racistas de dessegregação”,14 como o monstro
negro, saindo do seu lugar na água e tentando se
integrar com aqueles que estão em terra, que é um
lembrete darwinista do motivo pelo qual a segregação é
necessária.15
É importante lembrar que O monstro não é apenas
uma história sobre uma ação sísmica na escala Richter
evolucionária. Mas, sim, uma história em que
pesquisadores brancos são levados a destruir o Homem
Guelra, em vez de estudar a criatura, pois ele cometeu o
maior pecado de todos: ter colocado seus olhos sobre
uma mulher branca.
A vida real e a arte foram amalgamadas em relação a
uma ameaça sexual à feminilidade branca. Em agosto de
1955, um garoto de quatorze anos de Chicago, Emmett
Till, foi assassinado por ter assobiado para uma mulher
branca enquanto estava de férias no Mississippi. A
brutalidade do assassinato do garoto foi terrível, pois ele
sofreu espancamentos e traumas graves, teve seus olhos
arrancados e levou um tiro na cabeça. Seu corpo
mutilado foi amarrado a uma peça de maquinário
agrícola de 45 quilos e jogado em um rio. A mãe de
Emmett, Mamie Till Bradley, exigiu que o mundo voltasse
sua atenção para essa atrocidade, bem como aos demais
horrores que os negros enfrentavam nos Estados Unidos,
quando abriu o caixão do filho e insistiu para que a
imprensa negra tirasse fotos e as publicasse em seus
periódicos.
Goldsby (250) escreveu sobre o impacto imagístico da
decisão de Till Bradley: “Em uma decisão surpreendente
que reformulou o escopo e a direção do caso, ela
autorizou um velório de quatro dias aberto a todos e
permitiu que a imprensa negra fotografasse o cadáver do
filho. As imagens do corpo mutilado de Till apareceram
em jornais e revistas de alcance nacional como Jet,
Chicago Defender, Pittsburgh Courier, New York
Amsterdam News e na Crisis”.16 As fotos do corpo
terrivelmente abusado e inchado de uma criança
representaram o ápice das imagens de horror. Em uma
rápida sucessão, vieram à tona casos históricos e de
grande notoriedade que reclamavam direitos e justiça
para os negros. Brown vs. Conselho de Educação de
Topeka, Kansas (1954), e o caso dos nove alunos afro-
estadunidenses que frequentaram a Central High School
em Little Rock, Arkansas (1957), foram desafios diretos
ao caso Plessy vs. Ferguson (1896), que assegurou a
segregação nas escolas. Até mesmo aqui, a segurança
das mulheres brancas era invocada — estariam as jovens
brancas a salvo de homens negros em suas salas
integradas? Till e o Homem Guelra sofreram destinos
similares, pois seus corpos foram destroçados de várias
maneiras e mortalmente feridos antes de serem jogados
em um túmulo cheio d’água. “Homens brancos não
apenas lincharam e torturaram afro-estadunidenses na
vida real”, escreve Butters, “mas viveram essa fantasia
por meio dos ataques cinematográficos violentos contra
homens negros”, fossem eles figuras reais, ficcionais ou
metafóricas.17
MUITO CHÃO PELA FRENTE
Não houve uma mudança muito discernível entre os
filmes de terror dos anos 1950 e as produções da década
de 1960. Os anos 1960 começaram da mesma forma que
a década anterior havia começado, com
cientistas/homens brancos procurando maneiras de
intervir na progressão da natureza enquanto os negros
sofriam com medidas de invisibilidade. A distância
,entre
brancos e negros foi mais bem ilustrada no filme de
terror The Alligator People (1959). Situado em uma
Louisiana “primitiva, selvagem”, numa casa em uma
plantação que até uma “bruxa conjuradora sabe que é
ruim”, o filme conta a história de um cientista branco
cujos experimentos científicos transformam humanos em
crocodilos e que agora trabalha para reverter os efeitos
por meio da radioatividade. Esse filme conta com a
participação de dois negros, Toby, o mordomo (Vince
Townsend Jr.) e Lou Ann, a empregada (Ruby Goodwin).
Os estranhos experimentos científicos são feitos em um
laboratório que fica separado da casa. Toby e Lou Ann
ficam limitados à casa, onde limpam, cozinham e cuidam
de outros afazeres domésticos; apenas os brancos e
homens-lagartos brancos saem da casa e entram no
laboratório. Durante sua breve participação, Toby e Lou
Ann se engajam com a branquitude, esforçando-se para
controlar um trabalhador rude, Mannon (Lon Chaney Jr.),
um bêbado violento e sujo cujo comportamento errático
(tentativa de estupro) ameaça a pesquisa. Contudo, o
encontro entre eles é limitado ao momento em que
Mannon vai até a casa ou o jardim, já que esse é o limiar
para a dupla. Mannon, ao contrário, anda por toda a
parte, indo inclusive até a entrada do laboratório, um
lugar que está fora de cogitação para os empregados
negros.
The Horror of Party Beach (1964), um “musical de
terror” muito sério, é parecido com The Alligator People
em seu tratamento dispensado aos negros. Os negros
não figuram na narrativa, com a exceção de uma
empregada mal-humorada, esforçada mas não muito
inteligente, chamada Eulabelle (Eulabelle Moore), que
nunca é vista fora da casa do empregador, um
médico/pesquisador cientista. Quando monstros saídos
do lixo tóxico começam a matar jovens veranistas
brancos, é Eulabelle quem entra em cena para afirmar
não menos que três vezes ao médico designado para
resolver o problema que deve haver algum tipo de vodu
no meio daquilo tudo: “É o vodu, é isso que é!”. Não é.
Ainda assim, a supersticiosa Eulabelle serve para apontar
a religião negra como algo ruim, chegando ao ponto de
andar com uma boneca vodu para amaldiçoar o monstro,
ou, como ela diz: “aqueles malditos zumbis”. O
verdadeiro culpado é o lixo tóxico radioativo despejado
na água e que reanima os mortos, cujos corpos estavam
em naufrágios, trazendo-os de volta à vida como figuras
meio-humanas/meio-monstros-marinhos. A implicação é
que, ainda que o perigo seja branco e criado pelo
homem, o vodu negro é a medida para todas as
monstruosidades.
Contudo, a segunda contribuição de Eulabelle é bem
mais interessante. Antenada em todas as questões
domésticas, é Eulabelle quem descobre que o sódio
caseiro pode matar os monstros marinhos radioativos.
Porém, o modo como Eulabelle descobre a solução
reafirma a noção de que os negros não possuem lugar
em um laboratório. No filme, Eulabelle tem medo de ficar
sozinha no escuro e ousa descer no laboratório do
doutor, onde ele trabalha em uma arma química para
matar os monstros. Apesar de ter a habilidade de
carregar travessas, limpar e cuidar da parte de cima da
casa, no laboratório Eulabelle é um desastre. Ela derruba
produtos químicos e quebra tubos de ensaio, e então
pede desculpas aos gritos. Por acaso, o acidente dela
conduz à solução — sódio. Mas Eulabelle não possui a
capacidade intelectual para dizer “sódio”, então ela se
refere ao produto como “nem sei o nome disso”. The
Horror of Party Beach se mostrou problemático de duas
maneiras diferentes. Primeiro, o filme realmente serviu
para reforçar a crença de que apenas os brancos,
qualificados ou não (fossem as esposas ou outras
mulheres apaixonadas), deveriam estar nos laboratórios.
Em segundo lugar, para o ano de 1964, quando os
movimentos dos Direitos Civis e do Nacionalismo Negro
se complementavam, parecia regressivo ver uma
personagem estilo mãezona negra ressuscitada.
De maneira significativa, Vaidade que mata (1960)
apresenta uma personagem principal negra como adepta
e central aos experimentos de um cientista branco. Paul
Talbot (Phillip Terry) espera criar uma fonte da juventude
farmacêutica, uma droga capaz de cessar e até reverter
o processo de envelhecimento. É aí que entra uma
mulher negra de 152 anos de idade chamada Malla
(Estelle Hemsley), uma ex-escravizada que carrega,
como ela explica, “a marca do mercador de escravos
árabe que roubou a mim e a minha mãe da África e nos
vendeu do outro lado do mar há 140 anos”. A origem
africana de Malla a torna misteriosamente mágica, já
que, ao encontrar a esposa de Paul, ela (corretamente)
declara: “Você não vai precisar se divorciar do seu
marido. Não será necessário. Ele vai morrer. A morte dele
vai te dar vida […]. Você aparece nos meus sonhos
sangrentos.” Por acaso ela também tem Nipea, uma
mistura orgânica capaz de retardar o envelhecimento.
Uma negociadora dura e esperta, Malla insiste para que
Paul pague por seu retorno à África, e somente então ela
fornecerá a segunda substância que, misturada com a
Nipea, reverte o envelhecimento, restaurando a
juventude. A droga só pode ser encontrada na África,
entre o povo Nando, uma “raça selvagem e orgulhosa
[…] que tem um ódio imortal pelos europeus”. Paul paga
pela passagem de Malla, mas ele e sua esposa June
(Coleen Gray), que caminha já para os seus setenta anos,
aproximadamente dez anos mais velha que Paul, seguem
Malla em segredo até a África para assegurarem o
segundo ingrediente da droga — a fonte da juventude.
Eles descobrem que a tribo de Malla realiza um ritual no
qual homens são mortos e têm a glândula pineal
extraída, e então essa secreção é misturada ao pó de
Nipea e ingerida para reverter o processo de
envelhecimento. Dando continuidade ao ritual, Malla se
torna a bela “ jovem Malla”, interpretada pela popular
atriz Kim Hamilton. O filme então muda o seu foco de
atenção para June tentando fugir da África (com a Nipea
roubada), deixando todos os personagens negros para
trás, rumo aos Estados Unidos. June, nos Estados Unidos
— velha e considerada pouco atraente —, mata os
brancos ao redor dela a fim de extrair suas glândulas
para que ela mesma possa fazer a droga da fonte da
juventude. A mudança para os Estados Unidos é
necessária, pois June não pode capturar homens
africanos e injetar os fluídos deles em seu corpo. O filme,
cuidadosamente, evita qualquer mistura de sangue e
implicações de miscigenação.
Para dar os devidos créditos, Vaidade que mata foi um
dos poucos filmes de terror “com negros” de sua época a
elencar uma mulher negra em um papel principal. Mais
do que isso, a personagem é uma feminista, afirmando
os direitos das mulheres ao mesmo tempo que protesta
contra o etarismo, notando que os cabelos grisalhos dos
homens são injustamente respeitados como símbolo de
intelecto e maturidade, enquanto mulheres envelhecidas
são alvo de zombaria e negligência. Malla foi uma das
personagens negras mais substanciais durante essa
época do cinema de terror e foi considerada uma
melhora em relação ao tipo de representação que os
negros experimentavam em filmes como The Alligator
People. Ainda assim, a inclusão dos negros nos filmes de
terror do período continuava desigual e confusa.
AQUI VAMOS NÓS OUTRA VEZ: VODU E
NEGROS ENGRAÇADOS
Filmes de terror adotaram novamente a África e o Caribe
como locações, lugares livres das tensões raciais
testemunhadas nos Estados Unidos durante o movimento
dos Direitos Civis, e portanto lugares em que era possível
ter uma presença de personagens negros sem que o foco
recaísse em questões de igualdade racial. A estratégia
era voltar aos temas vistos nos filmes de terror da
década de 1930. Como resultado, zumbis, vodu e a selva
tiveram uma segunda chance em filmes como Serpent
Island (1954), A ilha do terror (1957), Voodoo Woman
(1957) e O fantasma de Mora Tau (1957). Mas poucos (ou
nenhum) negros apareceriam em tais filmes. Em vez
disso, durante
,a maior parte da década de 1950 e em
boa parte dos anos 1960, como evidenciado pelo filme
Voodoo Bloodbath (1964), “quase todos os filmes de
terror com algum componente racial discernível
mantinham a presença dos negros restringida a
narrativas com ilhas exóticas, brancos se casando em
segredo e nativos (‘selvagens’) desinibidos praticando
vodu e experimentando zumbificação”.18 Por exemplo, o
filme de terror O fantasma de Mora Tau (1957) não tinha
nenhum personagem negro, mas esse fato não impediu
que a África fosse implicada, aquela terra “esquecida
pelo tempo”, no vodu maligno. Nesse filme com teor
político, que critica o colonialismo ocidental, é revelado
que, em 1894, um grupo de norte-americanos navegou
até a África para saquear diamantes. Os marinheiros
localizaram os espólios com sucesso e embarcaram os
diamantes em seu navio enquanto nativos africanos
praticantes de vodu (que não são mostrados)
amaldiçoam os homens, transformando-os em zumbis e
naufragando o navio. Como zumbis, os marinheiros são
condenados a proteger os diamantes para sempre. Ao
longo das décadas, outros caçadores de tesouros tentam
encontrar os diamantes, mas são mortos pelos zumbis.
Diferente da representação dominante de zumbis, esses
mortos-vivos norte-americanos brancos não têm um
“mestre”; isto é, esses zumbis brancos não são
controlados por africanos. Em vez disso, são monstros
bem autônomos que estão simplesmente aprisionados
em seus corpos mortos. Marinheiros estadunidenses
tentam novamente recuperar os diamantes. Uma mulher
velha branca (a esposa do capitão norte-americano que
foi transformado em zumbi) revela que os zumbis só
poderão finalmente descansar em paz quando os
diamantes estiverem perdidos para sempre no mar. No
fim, os diamantes são jogados ao mar, libertando os
brancos mortos-vivos da praga zumbi.
Com o retorno do terror para a África, o gênero
continuaria a culpar a negritude de formas diferentes. O
filme Bwana, o demônio, de 1953, tinha o potencial de
examinar o domínio colonial britânico sobre o Quênia e o
caminho de resistência do povo Kikuyu, que enfrentou
fome (devido ao racionamento britânico de comida),
excesso de trabalho em condições deploráveis,
humilhação, brutalidade e execuções nas mãos de seus
colonizadores. O protesto, por fim, culminou no
movimento Mau Mau de 1952, um levante contra o
domínio estrangeiro. Em vez disso, o filme mostra o
Quênia como uma terra inerentemente selvagem,
implicando até mesmo com a vida selvagem do país,
especialmente com os leões, em uma história de
vitimização racista em que os brancos são os
prejudicados. No filme, os leões quenianos decidiram que
os britânicos seriam a melhor escolha para o lanchinho
de um predador felino.
O público recebeu um filme de terror que referencia as
narrativas da década de 1940, em que os negros ficavam
assustados e sofriam abusos com o fim de causar um
efeito cômico. O filme Spider Baby or, The Maddest Story
Ever Told (1968) conta a história da família Merrye, que é
afligida pela Síndrome de Merrye. A doença herdada é
resultado de incesto e causa retardo mental. Um membro
da família, Virginia (Jill Banner), é obcecada por aranhas,
acreditando ser uma e usando cordas como teias e facas
de açougueiro como ferrões. Mantan Moreland, escalado
simplesmente como um “entregador”, abre o filme e
morre nos primeiros cinco minutos. O entregador sobe na
varanda da mansão isolada e decrépita da família Merrye
e espia pela janela, chamando por algum dos moradores.
A janela se fecha com força, prendendo-o de maneira
que sua cabeça e seu corpo ficam pendurados no interior
da casa enquanto suas pernas balançam do lado de fora,
na varanda. Virginia aparece com uma faca de
açougueiro em cada mão. Ela joga a sua “teia” no
entregador, enrolando-o. Alegremente, Virginia grita
“Ferroe, ferroe, ferroe!” enquanto retalha o entregador
com suas facas. O ataque tem tons de comédia. Uma
tomada da varanda mostra as pernas do entregador
sacudindo de maneira burlesca. Uma filmagem do
interior da casa mostra o torso superior do entregador
esmagado pela janela e Virginia segurando a orelha dele
como um souvenir. É uma cena típica do terror, exceto
pelo fato de que Moreland ressuscita sua risada e seus
olhos arregalados. Moreland, nessa ponta, é incluído
apenas com o objetivo de relembrar a figura do negro
engraçado sofrendo violências em filmes de terror.
Mantan Moreland talvez possa ser considerado uma
das pontes mais evidentes entre os filmes de zumbi dos
anos 1940, como O rei dos zumbis (1941) e A vingança
dos zumbis (1943), e a representação dos negros nos
filmes de terror. Moreland foi central na criação de filmes
sobre zumbis (e outros monstros) negros. Sua aparição
em Spider Baby marcou o fim de uma longa e árida
estação de filmes de terror livres de racialidades. Além
disso, as performances de Moreland lembraram ao
público de filmes de terror que negros e zumbis, para o
bem e para o mal, formavam uma dupla interessante, e
todos sentiam falta deles. Então não foi nenhuma
surpresa que o retorno dos negros ao gênero tenha
acontecido em um filme de zumbis (longe de ser
engraçado), A noite dos mortos-vivos (1968). A obra, que
merece ser discutido em detalhes, representaria uma das
mudanças mais dramáticas e provocativas em relação à
participação dos negros em filmes de terror.
UMA NOITE COM BEN
Foi na noite de 4 de abril de 1968. Algumas horas antes,
o diretor de cinema George R. Romero escutou, junto
com o resto do mundo, que o ativista dos Direitos Civis e
ganhador do Prêmio Nobel, dr. Martin Luther King Jr.,
havia sido assassinado em Memphis, Tennessee. Romero
já estava ansioso enquanto dirigia de Pittsburgh para
Nova York carregando no porta-malas A noite dos mortos-
vivos, o seu19 filme de terror de baixo orçamento e
produzido de maneira independente. Será que ele
conseguiria uma distribuidora para o seu filme, uma obra
que forçava o gênero do terror a novos limites com sua
violência gráfica e sanguinolenta e sua narrativa
sombria? A noite dos mortos-vivos, um filme de terror
“com negros”, traz um personagem negro como
protagonista, Ben (Duane Jones), que sobrevive de forma
heroica e única a uma noite longa e implacável de
ataques de monstros canibais apenas para ser morto em
plena luz do dia por um grupo de vigilantes brancos que
espetam seu corpo com ganchos para içá-lo acima de
uma fogueira. Certamente, no contexto do assassinato
de King, esse filme poderia ser considerado inflamatório
demais para conseguir financiamento. Contudo, pouco
depois de chegar em Nova York, Romero conseguiu o
financiamento para o filme com a Walter Reade
Organization/Continental, e (de maneira apropriada) no
halloween de 1968, A noite dos mortos-vivos estreou nos
cinemas, entrando para a história por conta da reforma
dramática que propôs ao gênero do terror. A noite dos
mortos-vivos é um filme de zumbis diferente de tudo que
veio antes e vem sendo copiado múltiplas vezes desde
então. O filme tem sido creditado pela revolução e
solidificação dos zumbis no subgênero do terror.
A noite dos mortos-vivos começa no cemitério de uma
cidade pequena próxima a Pittsburgh. Os irmãos Barbara
(Judith O’Dea) e Johnny (Russell Streiner) estão visitando
uma sepultura nesse cemitério. Um homem de terno se
aproxima lentamente da dupla, e ele parece normal de
longe. Contudo, à medida que o homem se aproxima,
fica claro que há algo de errado com ele — seu andar não
é lento, mas cambaleante; seu rosto duro não é solene,
mas guarda o olhar vazio de um morto-vivo. O homem
ataca Barbara, e Johnny corre para resgatá-la apenas
para ser morto quando o homem o empurra e ele cai,
batendo a cabeça em uma lápide durante a briga insana.
Barbara foge em pânico e assustada, incapaz de ajudar o
irmão, enquanto o “fantasma” ou zumbi a persegue.
Desfazendo-se mentalmente por causa do encontro
inexplicável, Barbara acaba em uma casa de fazenda,
onde
,encontra refúgio. Pouco depois ela se junta a Ben (a
única pessoa negra do filme), que também está tentando
sobreviver ao ataque dos zumbis.
Enquanto Barbara fica catatônica, Ben assume o
controle de modo confiante. Ele se ocupa reforçando a
segurança da casa com tábuas para bloquear a
passagem dos zumbis que tentam entrar. Ben encontra
uma espingarda na casa e repele a horda de zumbis com
tiros em seus cérebros, golpes em suas cabeças e fogo.
São as últimas defesas de Ben, e ele está vencendo de
maneira heroica e efetiva. Contudo, sem que Ben e
Barbara saibam, um grupo de sobreviventes se trancou
no porão da casa e se encontra em silêncio, escondendo-
se daquilo que acreditam ser zumbis andando no andar
acima. Depois o grupo emerge. Vemos Tom (Keith Wayne)
e Judy (Judith Ridley), um jovem casal. E também a
família Cooper: Harry (Karl Hardman), Helen (Marilyn
Eastman) e a jovem Karen (Kyra Schon), sua filha, que foi
mordida por um zumbi e, adoentada, permanece no
porão. Quase imediatamente uma briga se inicia entre
Ben, uma pessoa altamente competente e ativa, e Harry,
um homem irritado e reclamão que exige autoridade e
respeito. Harry propõe que o grupo se tranque no porão
até que a ajuda chegue. Sua sugestão é recebida com a
oposição de todos. Tom fica do lado Ben e implora para
que Harry reconsidere a ideia de isolamento no porão —
o que Ben chama de uma “armadilha mortal” sem saída.
Helen se pergunta por que Harry tem que estar sempre
“certo e os outros errados”. Para Helen, que melhor
conhece Harry, a questão não é tanto a solidez de
qualquer um dos planos, mas o fato de seu marido
desejar ser o chefe. Ben Harvey, em seu livro Night of the
Living Dead (2008) argumenta que: “Ben também não é
nenhum santo; embora ele seja mais heroico, honrado e
carismático do que Harry, ele também pode ser pouco
razoável, às vezes”.20 Por exemplo, quando Harry
continua a se esconder no porão, deixando todos que
ficaram contra ele entregues à morte, Ben se recusa a
deixar que Harry leve comida para a filha.
Uma reportagem na televisão mostra que os mortos-
vivos estão em todos os lugares, e em uma das várias
notícias os cientistas especulam se o surgimento dos
mortos pode ter alguma coisa a ver com uma sonda
enviada da Terra até Vênus, que voltou repleta de
radiação. Diferente de muitos filmes de terror anteriores
e subsequentes, A noite dos mortos-vivos não acusa a
negritude do mal que está acontecendo. Os zumbis não
são negros e não surgem de lugares negros como a
África, o Caribe ou algum pântano da Louisiana, nem se
levantam como resultado de algum ritual vodu. Em vez
disso, Noite usou de um hábito comum na década de
1950, que era culpar cientistas (brancos) e invasões
alienígenas. Chegam notícias de que abrigos estão sendo
erguidos para os sobreviventes. Com os zumbis ainda
cercando e atacando a casa, Ben cria um plano para que
o grupo fuja em uma caminhonete que está próxima,
mas sem combustível. Tom, Ben e Harry — os homens —
trabalham em equipe para levar a caminhonete até um
posto de gasolina nas proximidades. No último minuto,
Judy corre para ficar ao lado de Tom enquanto ele luta
para se aproximar da caminhonete a fim de abastecê-la.
O plano dá errado, e a caminhonete ensopada de
gasolina explode com Tom e Judy dentro dela. A morte
deles é uma surpresa chocante — certamente o jovem
casal representaria a imagem do futuro norte-americano
depois que sobrevivessem. Não. Os zumbis jantam os
corpos chamuscados de Tom e Judy.21
Ao ver a cena, Harry se encolhe dentro da casa,
deixando Ben do lado de fora lutando contra os zumbis.
Aqui, o filme, de maneira esperta, coloca Ben, o herói,
entre dois tipos diferentes de monstros, ambos munidos
de uma humanidade decadente. Essa é também uma
reviravolta única no filme, pois a representação da
monstruosidade geralmente funcionava para realçar os
traços iluminados e favoráveis dos personagens
brancos.22 Aqui, o filme nos faz lembrar que humanos e
monstros não são assim tão diferentes e, na verdade,
podem ser a mesma coisa. Mas a tensão da cena é
aumentada pelo componente racial.
Enquanto Ben implora para que Harry abra a porta,
Harry fica parado; ele está petrificado pelos zumbis e
irritado com Ben. Harry alternadamente olha para fora e
se esconde de Ben. Logo, Ben encontra uma maneira de
entrar na casa. Assim que entra, ele e Harry se unem
momentaneamente enquanto tentam consertar a
abertura na casa que Ben foi forçado a fazer. Ainda
assim, Ben está possesso, gritando: “Eu deveria ter
arrastado você pra fora e deixado que aquelas coisas te
devorassem”. E fica subentendido que Ben, mais alto,
mais jovem e em melhor forma poderia dar um jeito no
velho e atarracado Harry. Mas Ben não faz isso. Quando
os reparos são terminados, Ben apenas xinga Harry por
ter tentado abandoná-lo à morte. As ansiedades raciais
são realçadas quando Ben faz algo que nunca havia sido
feito por um personagem negro em um filme de terror
(pelo menos não sem uma reprimenda severa contra o
personagem): Ben derruba Harry com uma pancada, o
levanta e bate nele de novo, deixando Harry
ensanguentado e com hematomas. Na verdade, até
aquele momento, em 1968, era raro que qualquer tipo de
filme mostrasse um homem negro batendo em um
branco. Ben, que não está mais em perigo imediato, bate
em Harry porque está frustrado e com raiva. Não se trata
de uma representação exagerada, mas a questão racial
dos homens aumenta o drama.
Mais tarde, depois que Ben se oferece para carregar
Karen (a filha de Harry) até um lugar seguro, Harry está
ainda mais interessado na espingarda de Ben e no poder
que a arma promete. Helen diz a Harry para deixar Ben e
a arma em paz: “Já não foi o bastante?”. Harry não
consegue deixar isso de lado, pegando a espingarda e
apontando para Ben. Mas Ben consegue lutar, então a
arma dispara e fere Harry mortalmente. Harry vai até o
porão e descobre que sua filha morreu. Os zumbis
começam a encher a casa, e Johnny, o irmão morto-vivo
de Barbara, acompanhado da horda zumbi, quebra a
janela e as portas, capturando a jovem para ser
consumida. Harry morre no porão. Karen revive e começa
a se alimentar do cadáver do pai. Ela então encontra a
mãe encolhida no porão, ainda viva. Com uma pá, Karen
golpeia brutalmente a mãe repetidas vezes para que
possa se alimentar dela também. Ben se vê forçado a
“matar” todos eles de novo e, com os zumbis invadindo o
andar de cima, ele se tranca no porão até o dia seguinte.
À medida que o dia amanhece, Ben sai do porão ao ouvir
o som de vozes humanas. A polícia e um grupo de
moradores locais estão cercando os zumbis e os
matando. Ao sair, Ben é repentinamente baleado na
cabeça por alguém que o confunde com um zumbi.
Os realizadores do filme se mantêm inabaláveis na
afirmação de que a escolha de um ator negro aconteceu
por acaso — “ele apenas era a melhor pessoa para o
papel” — e que a questão racial não teve importância no
roteiro, o que fica evidenciado pelo fato de a raça de Ben
não ser mencionada no filme.23 Embora Romero
estivesse ciente de que seu filme seria o “primeiro filme
a ter um homem negro interpretando o papel principal
independentemente e apesar de sua cor”, ele também
diz que “nem mesmo quando Duane leva um tiro na
cabeça no final, nós estávamos pensando em conotações
de brancos e negros”. Apenas décadas mais tarde ele
descobriu “o que aquilo significava de verdade”.24
Se Romero precisou de anos para entender o que o
papel de Ben significou, parte do público compreendeu
de imediato. Nos meses seguintes ao lançamento de
Noite, Romero foi bombardeado com perguntas sobre
aqueles “caipiras” que mataram Ben — eram pessoas
reais (já que alguns figurantes do filme eram “reais”,
como o repórter televisivo Bill Cardille interpretando ele
mesmo em uma ponta) atuando, ou simplesmente sendo
elas mesmas? Em uma resenha de 1970, Romero explica:
“a maior parte das pessoas, na verdade, morava na
cidadezinha
,em que filmamos […] tivemos bastante
cooperação por parte das pessoas da cidade — da polícia
e dos administradores […] [eles ficaram] felizes em
poder empunhar armas”.25 Claro que rótulos de “milícia”
branca, “turba”, “caipiras” e até mesmo polícia
“provinciana” traziam à tona conotações racistas. Como
resultado, o desgosto que o público é levado a sentir em
relação aos personagens é aumentado e se transforma
em desprezo real e ódio quando fica entendido que se
tratam de pessoas reais dos fundões de Pittsburgh. Além
disso, em entrevistas, embora Romero seja cuidadoso
para não alienar aqueles que tanto o ajudaram ao se
voluntariar para o filme, ele admite não “ter feito muita
coisa” para dirigir a atuação dessas pessoas, já que “a
fantasia metafórica confronta uma realidade mal
filtrada”.26 Essa colisão entre fantasia e realidade se
torna ainda mais real quando, no remake do filme, feito
por Romero em 1990, o ator Tony Todd (famoso por O
mistério de Candyman) foi escalado como Ben. Todd se
lembra dos tons de intolerância real partindo dos
figurantes que interpretavam a turba:
Todo mundo na cidade queria ser um zumbi. E
nós filmamos em Washington, PA, que não é o
lugar mais progressista dos Estados Unidos.
Você deve ter visto O franco atirador. Coisas
estranhas acontecem na Pensilvânia. Então,
estou cercado por zumbis que eram caipiras na
vida passada […]. Eu sabia que seria um lance
fodido, porque eles estavam esperando para me
agarrar de verdade. Um pouco da tensão que
você vê é real, coisa genuína.27
Na versão original de Noite, o fato de que a turba
caçadora de zumbis estivesse acompanhada de cães
treinados para atacar os alinhava com as imagens já
familiares de cães policiais sendo incitados a atacar
ativistas dos Direitos Civis. Sua vestimenta rural, camisa
de flanela e jeans, o jeito de falar — “Bata neles ou
queime, eles morrem fácil” — e seus acessórios que
consistiam em balas, charutos e armas, no geral
anunciavam os “cidadãos de bem”,* que também
representavam perigo para os negros. O perigo que os
homens representam é mostrado na maneira descuidada
com que recolhem o corpo de Ben. Ele é baleado e tirado
do enquadramento da câmera apenas para ser visto
novamente em uma longa tomada que mostra seu corpo
sendo arrastado pelo chão. O xerife, de modo simplista,
diz: “Bom tiro” e “Mais um pra fogueira”. Hervey escreve:
“E acaba assim: sem nenhuma longa sequência de
morte, sem nenhuma glória para o herói”.28
Ao contrário das afirmações de Romero de que a raça
não havia sido levada em consideração, o ator Duane
Jones (que trabalhava como professor de inglês durante o
dia) rejeitou a ideia de que Barbara sairia do estupor
para se levantar e salvá-lo dos zumbis. Para Jones, tal
final teria sido “racialmente errado”. Jones acreditava
que “a comunidade negra iria preferir me ver morto a ser
salvo […] de uma maneira brega e simbolicamente
confusa”. A morte de Ben foi chocante, mas talvez tenha
sido um dos momentos mais realistas do filme, já que ele
é morto pelos seus “inimigos naturais, os policiais e
caipiras de Pittsburgh”.29
Aqueles que saíram do cinema antes de os créditos
finais rolarem não viram a forma como lidaram com o
corpo de Ben. Uma série de imagens granuladas são
exibidas rapidamente durante os créditos. Elas parecem
o que poderiam ser fotos antigas de Emmett Till, baleado
na cabeça, sendo jogado na parte de trás da
caminhonete de seus executores para ser levado até o
rio Tallahatchie, onde seu corpo seria sujeitado a mais
abusos. Em vez disso, as fotos são do cadáver sem vida
de Ben, sendo empalado por ganchos de açougues e
erguido para ser colocado em uma fogueira. O corpo de
Ben então é esmagado nas chamas por madeira e
destroços. No fim, “nosso herói não está apenas morto,
mas obliterado. Não haverá registro de sua luta, nenhum
funeral ou cerimônia, nenhuma esperança de justiça”.30
Há muito o que se dizer sobre a produção de A noite
dos mortos-vivos, assim como sobre seu simbolismo e
poder. Richard Dyer, em seu famoso ensaio “White”,
chama a atenção para o simbolismo de cor no filme,
como a fotografia em preto e branco numa era de cor
com o objetivo de acentuar e complicar os
entendimentos de bem e mal. A noite é escura (negra),
mas a luz do dia traz outro mal na forma da multidão
(branca).31 O filme foi acusado inicialmente de
apresentar uma “p*rnografia da violência” com suas
impávidas cenas de zumbis estripando suas vítimas e
então devorando suas entranhas, fazendo com que a
Associação Cinematográfica da América analisasse seu
sistema de classificação.32 E houve aqueles que
escreveram sobre a “família” disfuncional em guerra e
incapaz de trabalhar em união mesmo em um desastre
que transcendia raça e classe.33 Contudo, pouco se sabe
sobre a reação de Noite entre os negros — isto é, além
do fato de que uma grande quantidade de pessoas
negras apoiou o filme, contribuindo para a sua
popularidade.
FIGURA 4.1 BEN SENDO ATIRADO NUMA PIRA EM A NOITE DOS MORTOS-
VIVOS.
Ten/Photofest
A surpreendente bilheteria de Noite — tendo custado
aproximadamente 115 mil dólares, mas arrecadando 90
mil só no primeiro fim de semana — pode ser atribuída,
em grande parte, a sua recepção popular entre o público
negro.34 Kevin Heffernan aponta a contribuição dos
negros frequentadores de cinema para o sucesso de
Noite em seu livro Ghouls, Gimmicks, and Gold: Horror
Films and the American Movie Business 1953-1968 e em
seu artigo de jornal “Inner-City Exhibition and the Genre
Film: Distributing Night of the Living Dead”. Ele observa:
(1) normalmente, os negros compunham 30% da
primeira leva de público em comparação com os 15 a
20% cento da população geral; (2) os cinemas em bairros
negros contribuíram para o sucesso de Noite, pois tinham
dificuldade de conseguir filmes (especialmente durante o
boom do 3-D, quando adaptar os cinemas se mostrou
caro demais), e assim A noite dos mortos-vivos foi
recebido com ansiedade e por um longo período de
tempo; (3) um filme como Noite, com sua atenção
implícita ao assunto de raça, ficava em cima do muro
entre ser um “filme de prestígio sobre um problema
social” e um “produto apelativo”; e (4) o público negro
fez filas para ver um filme com um afro-estadunidense
orgulhoso, esperto e habilidoso como protagonista e
estrela principal.35 Heffernan também nota que, quando
cinemas de comunidades afro-estadunidenses (em
cidades como a Filadélfia, por exemplo) conseguiam
exibições de estreia (um acontecimento incomum), os
filmes geralmente eram de terror.
De fato, se a atenção que a impressa negra dispensou
ao terror nas décadas de 1950 e 1960 serve de
termômetro, é possível afirmar que o gênero tinha um
status favorecido na comunidade negra. Em jornais como
o Chicago Daily Defender, o New York Amsterdam News e
o L. A. Sentinel, artigos curtos e reportagens que davam
conta do gênero eram frequentemente publicados,
notavelmente quando nenhum outro filme ou gênero era
mencionado. O jornal Daily Defender era particularmente
prolífico: por exemplo, publicou um artigo em 1957,
“Horror Films Debut Soon”, prometendo que
pessoas que gostam do tipo de filme que faz
gelar o sangue serão agraciadas em breve com
a chegada de uma nova série chamada “Shock”.
Cinquenta e dois filmes de terror dos arquivos
da Columbia e da UniversalInternational
prometem um ano inteiro de entretenimento
sangrento […] fiquem atentos a esses filmes —
eles serão um agrado terrível.36
Um artigo de 1960 no mesmo jornal proclamava: “uma
tríade de filmes horripilantes em exibição no Royal
Theatre está metendo medo e provocando risadas em
espectadores que nunca experimentaram isso antes. Um
balde de sangue, O ataque das sanguessugas gigantes e
Ordem de matar compõem uma programação
eletrizante”.37 Em outro artigo de 1960, o Daily Defender
detalha alguns dos clichês do terror ao promover o filme
Paranoia, que estava em exibição no Oriental Theatre em
Chicago:
,muitos filmes de terror desenvolvem um enredo
ao redor de uma bela vítima que está sozinha e
vulnerável ao assassinato […] outra técnica dos
filmes assustadores é deixar que o espectador
acredite que a vítima pode escapar […] um dos
ingredientes comprovados do terror é tentar
levar a vítima à loucura.38
Esse estilo de escrita estilizado sobre o terror continuou
até os anos 1970:
Dois filmes excelentes de terror e suspense,
chocantes e de dar calafrios, que são
assustadores e agoniantes mesmo nos
momentos mais amenos de suas histórias, estão
com sua dupla estreia marcada para a sextafeira
(17 de abril) em mais de trinta cinemas de
bairro, nos subúrbios e drive-ins por toda a
Chicago […]. Porém, tomem cuidado, pois esses
dois filmes não são para os fracos de coração.
Aqueles que duvidam do oculto, que são
assustadiços e nervosos, estão duplamente
avisados.39
Estar ciente da promoção e popularidade dos filmes de
terror nas comunidades negras é essencial para entender
como, de maneira geral, o gênero evoluiu graças ao
público negro, e por que Noite, especificamente, foi um
sucesso tão grande. Na época em que Noite chegou aos
cinemas, a Walter Reade/Continental estava pronta para
capitalizar com o mercado afro-estadunidense tão
maltratado normalmente. “Muitos dos cinemas que
exibiram A noite dos mortos-vivos”, escreve Heffernan,
“ficavam no interior das cidades e atendiam
majoritariamente um público negro”, em parte porque os
cinemas de bairro, ou nabe houses,* como eram
apelidados, que atendiam os negros tinham dificuldade
de conseguir filmes.40 Esses cinemas abraçaram uma
programação independente, eclética, fora do escopo dos
grandes estúdios. Noite, por exemplo, apareceu em
conjunto com o drama Um amor para Ivy (1968), de
Sidney Poitier, em sua primeira exibição em um cinema
negro de bairro na Filadélfia, e em outra sessão ele foi
pareado com o filme policial Quadrilha em pânico (1968)
que estrelava Jim Brown.41 Em cinemas desse tipo, A
noite dos mortos-vivos rodou bastante.42
Em 1999, A noite foi inserido na lista da US National
Film Registry e é material de referência para inúmeras
obras de zumbis, incluindo uma franquia de sequências e
outras histórias derivadas, ao mesmo tempo que ganha
status de clássico cult entre seus fãs.
DESPERTAR DOS MORTOS
Romero continuaria, em seus três filmes seguintes —
Despertar dos mortos (1978), Dia dos mortos (1985) e
Terra dos mortos (2005) —, a empregar homens negros
em papéis centrais importantes. Despertar dos mortos é
situado algumas semanas após o primeiro levante dos
mortos e revela que a praga zumbi se infiltrou em cada
canto da sociedade. Aqui, o desespero da situação é
revelado quando os zumbis são vistos causando
destruição na cidade altamente populosa da Filadélfia.
Grupos de oficiais da SWAT, predominantemente brancos
(uma versão urbana dos caipiras mostrados em Noite)
atravessam cortiços, pouco se importando em distinguir
zumbis dos residentes humanos negros e não brancos
dos prédios: “Acabe com todos os porto-riquenhos e os
crioulos de uma vez!”. Uma violenta limpeza racial/étnica
e de zumbis começa quando os residentes se recusam a
sair de suas casas conforme ordenado.
Um tema contínuo de Romero em seus muitos filmes
dos Mortos, os zumbis são metáforas para a branquitude,
mesmo que alguns zumbis sejam mostrados como não
brancos. Numa cena, uma zumbi negra ataca um homem
negro. A zumbi não só é pálida para evidenciar seu
estado defunto, mas parece embranquecida, um
contraste de cor “enfatizado em uma tomada de uma
zumbi negra embranquecida mordendo o pescoço do
homem negro”.43 Entra o herói negro, Peter (Ken Foree),
um membro da SWAT que se levanta contra os seus pares
brancos, exigindo que interrompam a matança de
inocentes. Quando um membro do grupo não para
imediatamente, Peter o mata, como faria com um zumbi,
dando um fim à performance hiper-masculina e de
dominação racial do outro. Peter está fora e acima de
ambas as coisas. Ele faz amizade com outro oficial tático,
Roger (Scott H. Reiniger), um homem branco que
despreza igualmente o tipo de violência que
testemunham. Peter e Roger decidem tentar escapar da
loucura zumbis/polícia procurando um refúgio livre do
caos. Eles se juntam a outros que possuem a mesma
intenção — um casal branco, Stephen (David Emge) e
sua amante Francine (Gaylen Ross), que são repórteres
de uma estação de notícias e têm acesso ao helicóptero
da estação. Mais tarde, é revelado que Francine está
grávida. Os quatro encontram um local seguro em um
shopping.
O filme é uma crítica ao consumo e ao consumismo
norte-americano, assim como um engajamento — graças
à presença da mulher grávida — com o movimento
feminista e a revolução sexual. Ao locar o filme em um
shopping, Romero continua a trazer mudanças
impressionantes e inovações ao terror. A escolha foi
importante porque décadas de cientistas malucos,
mulheres em transe, histórias de experimentos que
deram errado e locações como antigos laboratórios
domésticos se tornaram “chatas e rotineiras”.44 O
shopping foi uma novidade emocionante, com o grupo
atuando em meio a suas mercadorias.
A vida em Despertar é feita de materialismo, que é
ocasionalmente interrompido por zumbis. Da mesma
forma, a negritude não interrompe (muito). Em uma
cena, tambores da selva servem de trilha sonora quando
o grupo explora uma loja de armas com a foto de um
safári africano. Enquanto os tambores e a música
“africana” geralmente sinalizam vodu, não há zumbis de
vodu aqui, apesar do comentário (inexplicável) de Peter
dizendo que seu avô era um sacerdote vodu. Em vez
disso, esse é um filme sobre exploração econômica, que,
de acordo com Romero, significa que todos os norte-
americanos se tornaram zumbis consumindo sem pensar
— canibalizando os produtos, em sua maioria
desnecessários para a sobrevivência e o sustento. Não
dá para culpar o vodu negro por isso.
A vida de Peter se transforma em uma rotina chata,
que, de maneira pouco progressista, inclui assistir
Francine “limpar a casa”, em um apartamento que o
grupo montou no shopping. A esperta e talentosa
Francine “dá uma de Caldwell”, como no filme O ataque
vem do Polo, cozinhando e limpando para os homens
(embora ela exija ser consultada acerca dos planos e ter
permissão de aprender a atirar e pilotar o helicóptero).
No restante do tempo, a existência de Peter é vazia,
limitada a conversar com seu amigo Roger, que foi
mordido por um zumbi, até que ele morre e Peter precisa
atirar no parceiro.
FIGURA 4.2 PETER SE PREPARA PARA LUTAR CONTRA ZUMBIS EM DESPERTAR
DOS MORTOS.
United Film Distribution
Company/Photofest
Com o tempo, a relativa paz do grupo é perturbada
por uma gangue de motociclistas que deseja os espólios
do shopping. A gangue invade o local e hordas de zumbis
vêm atrás, enchendo o lugar. Os motociclistas se tornam
comida de zumbi, e Stephen é morto e transformado em
morto-vivo. Peter e Francine — que, após meses no
shopping, já se encontra em um estágio avançado da
gravidez — são os únicos sobreviventes. Francine os
conduz pelos ares para longe do shopping. O filme
termina convidando o público a se preocupar com o
destino da dupla. Eles têm pouco combustível e não
fazem ideia do rumo que deveriam tomar. Contudo, há
coisas que o filme não aborda — será que Francine
conseguira parir seu bebê sozinha? Peter, um oficial
treinado, seria capaz de ajudar? Qual será o futuro da
dupla? São nessas questões que a negritude e
masculinidade de Peter e a branquitude e feminilidade de
Francine aparecem de maneira mais óbvia.
DIA DOS MORTOS
A terceira produção de Romero, Dia dos mortos (1985),45
não teve a inovação política e, até certo ponto, racial,
dos outros filmes da série. O filme é situado em uma
época “após o fechamento de todos os shoppings” (uma
referência a Despertar dos mortos) e se passa em um
bunker militar subterrâneo na Flórida em que
experimentos grotescos são feitos
,(2007), em seu livro The Horror Film,
observa de forma jocosa, ainda que astuta, que autores
que escrevem sobre filmes de terror têm uma propensão
a incluir “declarações mais ou menos irônicas indicando
que seu interesse [em filmes de terror] começou na
infância ou recentemente, argumentando de forma
implícita que a credibilidade que uma pessoa possui para
falar sobre o tema foi de alguma forma melhorada ou
piorada apenas em relação à época em que o interesse
do autor começou”.1
Aqui eu me junto a essa banal tradição para oferecer
minha própria declaração de interesse — comecei a
gostar de filmes de terror bem cedo, talvez com apenas
cinco anos de idade. Essa revelação vai além das minhas
confissões em relação às “florestas psicológicas” da
minha infância levemente insana.2 Minha honestidade
quanto ao consumo do terror — e quanto a gostar disso!
— é oferecida para fornecer a vocês alguma base
relacionada às minhas experiências únicas com o gênero.
Tenho esperança de que este vislumbre do meu mundo
psicológico ajude você a compreender de onde surgiram,
em parte, minhas interpretações sobre a representação
dos negros no cinema.
CONFISSÕES DE UMA CRIANÇA DO TERROR
Escrevo este livro cheia de um sentimento de posse. Eu
nasci e fui criada em Pittsburgh, Pensilvânia. Para os
verdadeiros fãs de terror, eu não preciso dizer mais nada,
pois vocês entendem o motivo de eu dizer que este livro
é o meu destino. Para aqueles que precisam de uma
pista: o lugar do meu nascimento foi o berço do Hércules
do terror, George “A noite dos mortos-vivos” Romero,
assim como do extraordinário criador de efeitos visuais
Tom “Padrinho do Gore” Savini.3
Na pré-adolescência, eu estava levemente ciente de
que literalmente seguia os passos de Romero e Savini em
meu shopping favorito de Pittsburgh — o Monroeville
Mall. O “Shopping” (como nós de Monroeville o
chamamos) é a assustadora peça central em espaço e
ideologia no filme Despertar dos mortos (1978) de
Romero. O filme também continha a magia dos efeitos
espetaculares de Savini nos mortos-vivos, ele, que
também faz uma ponta como um “zumbi motoqueiro”.
Em 1979, aos dez anos de idade, eu gostava de fazer
o que crianças entediadas do país inteiro gostam de
fazer — andar no shopping. O personagem adolescente
Flip Dog (Danny Hoch) do filme Garotos brancos (1999)
colocou este rito de passagem mundano da juventude
moderna em perspectiva de forma sucinta: “Tudo que
eles fazem é andar pelo shopping o dia todo […] Indo da
Chi-Chi’s pra Footlocker e da Footlocker pra Chi-Chi’s […]
Umas ocupações idiotas pra caralho”.4 Idiotas mesmo.
Foram as crianças da minha geração que, de forma
desavergonhada, começaram a abandonar os parquinhos
e os cantinhos de areia, preferindo andar pelas alas dos
shoppings como zumbis.
Mas o Monroeville Mall nos anos 1970 era uma coisa
realmente especial. Primeiro, porque o seu primeiro
andar era uma pista de patinação no gelo coberta. Com o
rinque envolto em acrílico, o lugar parecia o Civic Arena
(também conhecido como O Grande Iglu), lar dos
Pittsburgh Penguins. Você podia se sentar perto do Pup-
A-Go Go, um restaurante que se parecia com uma
barraca de cachorro-quente, e assistir ao pequeno Mario
Lemieuxs patinando de forma acanhada pra lá e pra cá
no gelo enquanto a pequenina e futura Michelle Kwans
ficava no centro do rinque, cruzando as pernas e
pulando. Alguns anos depois, a direção do shopping, não
aquiescendo à missiva de Romero sobre os perigos da
produção em massa, iria desmontar o idiossincrático
rinque de gelo com o Pup-A-Go Go. O lugar foi
abocanhado por uma loja de biscoitos Mrs. Fields
(trocadilho proposital).
Eu assisti Despertar dos mortos com a minha avó e
com a minha mãe no Greater Pittsburgh Drive-In, que
frequentemente exibia filmes de terror tarde da noite.
Embora tenha surgido uma década depois de A noite dos
mortos-vivos, o Despertar de Romero pareceu atrair sua
parcela de negros. Existem pelo menos duas teorias
interseccionadas sobre a afinidade dos negros em
relação ao Despertar. A primeira explicação é que, uma
década antes, muitos dos cinemas que exibiram A noite
dos mortos-vivos atendiam cidades do interior, servindo
uma audiência predominantemente negra.5 Talvez o
acesso tenha contribuído para o amor inicial dos negros
para com Romero. Contudo, creio que essa proximidade
foi apenas uma parcela daquilo que atraiu espectadores
negros para os filmes seguintes do diretor. O outro ponto-
chave foi que Noite tinha Ben! Ben (Duane Jones) — um
personagem principal negro complexo e corajoso, que se
mostrou calmo sob pressão, tomou controle de uma
situação mortal com competência, e, de forma
surpreendente, chutou alguns traseiros (brancos) e
mostrou respeito (afinal de contas, ele bate e atira em
um homem branco).
Nós, duas mulheres e uma criança, nos dirigimos até
aquele drive-in para ver se Romero nos daria mais uma
vez outro herói negro empoderado que não vacilava e
não era apelativo. Romero não nos decepcionou. Ele
provocativamente proporcionou um conquistador negro e
mais, através do personagem durão Peter (Ken Foree),
que sobrevive à praga zumbi e busca segurança com
uma estranha — uma mulher branca grávida (suspiro),
Francine (Gaylen Ross). Poderiam Peter e Francine
encontrar esperança e uma vida sem zumbis em outro
lugar? Quem vai fazer o parto do bebê de Francine
(suspiro duplo)? Seja em 1968 com Noite, 1978 com
Despertar, ou até mesmo hoje, representações desse
tipo de raça, sexo e relações de gênero continuam a ser
muito importantes.
Se não me falha a memória, minha viagem até o
drive-in com a minha família ficou ainda mais sublime
quando Noite passou logo depois de Despertar como
parte de uma dobradinha de Romero. Eu mantive o meu
sono distante para que pudesse ver Noite outra vez (eu
já tinha assistido antes), com os olhos “maduros” de uma
criança de dez anos de idade. Vi o canibalismo como algo
“nojento”. Contudo, fiquei profundamente afetada, de
forma indescritível, pelo infame final de Noite, que, na
minha mente, serviu, tanto na época quanto hoje, como
uma crítica poderosa a respeito das relações raciais. Nas
doloridas cenas finais de Noite, depois de Ben ter
vencido todas as dificuldades para sobreviver à noite
contra os zumbis canibais, ele é (simbolicamente)
linchado por uma turba de homens brancos com
espingardas. O filme refletia diretamente o clima social
da sua época. O assassinato de Martin Luther King Jr.
aconteceu no mesmo dia — 4 de abril de 1968 — em que
Romero levava Noite até Nova York para ser distribuído.
Para muitos negros em 1968, depois do assassinato do
dr. King, era plausível se questionar se um homem negro
seguro de si como Ben poderia ao menos sair da tela
grande em segurança. Embora o filme de Romero fosse
uma fantasia com seus zumbis comedores de carne,
ainda assim era um obra de realismo significante. Ele
dirigiu a atenção da audiência, exigindo que levássemos
em consideração que no mundo real dos negros as
multidões brancas são bem mais mortais.
Eu me lembro da minha avó disposta a colocar a mão
sobre uma pilha de bíblias e jurar que reconhecia um
daqueles “matadores de pretos com armas nas mãos,
este e aquele”, à medida que os via aparecendo no filme.
Eu odeio dizer isso, mas ela podia estar certa. Policiais da
área de Pittsburgh e de outros locais atuaram como
figurantes na cena principal que decidiu o futuro de Ben.
O que vimos em Despertar e Noite era realmente as
nossas experiências em Pittsburgh naquela tela.
Pittsburgh, assim como várias cidades dos Estados
Unidos nas décadas de 1970 e 1980, tornou fácil ter
certa hesitação em relação ao seu potencial progressista
(especialmente para as minorias). Pittsburgh era, e ainda
é, uma cidade segregada. Seus bairros são ricos
culturalmente, mas também servem como fronteiras
raciais. O bairro de Bloomfield é predominantemente
italiano. Polish Hill [Colina Polonesa] fala por si só. No
lado
,nos zumbis por
cientistas civis sob direção militar. Acima do chão, as
coisas parecem sem esperança, com pouca vida restante
à medida que os zumbis tomam conta de tudo. Os
membros restantes do governo e do Exército esperam
que os experimentos revelem uma maneira de acabar
com o reino dos zumbis. O filme se foca em um zumbi,
Bub (Sherman Howard), que parece estar evoluindo e
pode sentir a maldade nos cientistas e militares de moral
decadente. Os cientistas são distantes, às vezes ríspidos.
Um deles faz experimentos em soldados mortos-vivos, e
até mesmo os joga como alimento para os outros zumbis.
Os cientistas são “loucos”. Os militares são a versão da
década de 1980 dos caipiras de Romero. Os soldados são
mostrados como figuras sádicas, racistas e machistas. Os
militares é que são os monstros, prontos para matar e
torturar tanto zumbis quanto humanos. Os homens
ameaçam estuprar a única cientista mulher, Sarah (Lori
Cardille), importunam e até matam os outros civis da
equipe por serem diferentes.
O personagem negro indispensável no filme é John
(Terry Alexander), um piloto civil de helicóptero oriundo
das Índias Ocidentais. Nesse contexto, John é uma tripla
minoria — negro, não militar/cientista e estrangeiro,
como fica evidente em seu sotaque. John também é
educado e civilizado. Ele cria um lugar de convivência
improvisado, mas idílico, que chama de “Ritz”, dentro do
bunker, e que tem até mesmo a réplica de uma cabana
na beira do mar que ele usa como sala de leitura. Ele
divide seus aposentos sem dificuldades com um civil
branco e direito chamado William (Jarlath Conroy), em
um acordo de convivência que alude a uma definição de
masculinidade mais iluminada, não associada aos
soldados, que dormem com suas armas.
No filme, as coisas dão errado, e Sarah, William e John
precisam lutar em duas frentes de batalha: contra os
zumbis, que lotam o bunker, e contra os soldados, cuja
sede de sangue é igual a dos mortos-vivos. Todos são
dispensáveis em potencial nesse filme, com exceção de
John, porque ele é o único que sabe como pilotar um
helicóptero e pode levar os sobreviventes até um lugar
seguro. Embora os militares precisem dele, ele é
claramente desprezado. John zombou do comportamento
primitivo dos soldados e não baixou a cabeça para suas
ameaças. Quando ele se recusa a abandonar Sarah e
William para encarar a morte iminente nas mãos dos
zumbis que estão no bunker, John é espancado até
obedecê-los — uma referência clara à escravidão.
Contudo, ele luta contra os soldados, resgata Sarah e
William, e salva o dia ao levá-los pelos ares para longe do
bunker e para uma ilha deserta que só ele parece
conhecer. O filme termina com John pescando em paz em
uma praia, junto com Sarah e William.
Em uma convenção de terror em 2010, em
Indianápolis, o ator Terry Alexander e o diretor Romero
falaram sobre o personagem John e, especificamente, a
respeito dessa cena final que mostra os três personagens
desfrutando uma sobrevivência pacífica. Ao notar a
capacidade do personagem John, Romero disse que,
embora tenha havido centenas de outros filmes em que
zumbis-dominam-o-mundo, talvez o público continue a
acreditar que “Terry ainda está pescando naquela praia”,
uma hipótese que Alexander abraçou de forma
entusiasmada.46 O comentário de Romero sobre o
personagem John confirma sutilmente a análise de Dyer,
de que “o ponto principal em relação a Ben, Peter e John
é que, de maneiras diferentes, todos eles possuem
controle sobre seus corpos, conseguem usá-los para
sobreviver, sabem como fazer coisas com eles”. Embora
os brancos percam o controle enquanto permanecem
vivos, muitas vezes voltando “na forma descontrolada de
zumbis”,47 esses homens negros, especialmente John —
que, diferente de Ben, sobrevive, e, diferentemente de
Peter, conduz o grupo até um local seguro —, continuam
donos de si, seguindo em frente.
TERRA DOS MORTOS
Em 2005, Romero lançou Terra dos mortos. Aqui, a
profundidade política de Romero volta, pois ele trabalha
para criticar o classismo. Em Terra existem duas classes.
A primeira é a classe superior, composta de humanos
ricos que vivem em um prédio requintado de frente para
a água, de vidro e aço, que tem três lados protegidos
pelos três rios da cidade e, do lado que dá para a terra,
há barricadas eletrificadas. O estilo de vida dessas
pessoas é mantido pela segunda classe, forrageadores
profissionais que vasculham as ruínas da cidade
enquanto lutam contra zumbis, ou “fedidos”, em busca
de mercadorias — comida, vinhos finos, tecidos e outros
suprimentos. Os forrageadores vivem, assim como a
maior parte dos cidadãos, numa terra devastada, caótica
e brutal. Essa segunda classe se encontra faminta e
imunda, vivendo e morrendo nas ruas. A terceira classe,
ainda que não seja a “mais baixa”, é formada pelos
zumbis, que andam livremente e, à medida que os
humanos morrem ou são capturados do lado de fora das
cercas, têm muito o que comer.
Um zumbi, um homem negro chamado “Big Daddy”
(Eugene Clark), acaba por ser especialmente evoluído e é
ciente da brutalidade continuada direcionada aos zumbis.
Ele se torna o líder de uma facção zumbi, aprende a se
comunicar com rugidos e rosnados, e descobre como
usar armas para destruir seus opressores humanos. Ele
até mesmo ensina seus compatriotas a pegarem em
armas como facas e facões. Em uma cena importante,
Big Daddy evidencia um alto nível de pensamento
racional, pois conclui que seu exército zumbi pode
alcançar o prédio — um símbolo que ostenta exclusão
até mesmo para os zumbis — indo pelo fundo do rio em
vez de arriscar uma eletrocussão na cerca. De fato, os
zumbis invadem, e Big Daddy busca uma vingança
particularmente brutal contra o malvado dono do prédio.
O filme termina com um grupo de sobreviventes
humanos, estrelas do filme, entregando a cidade para
Big Daddy enquanto os humanos procuram um novo
lugar para viver. Por sua vez, Big Daddy parece
reconhecer essa trégua enquanto lidera seu exército
zumbi.
Como um todo, os filmes de Romero podem ser
celebrados por seu tratamento complexo e até mesmo
positivo dos negros. Parte da profundidade de seus
personagens talvez venha da crença de Romero de que
raça não fazia diferença quando ele escalou os atores
Duane Jones, Ken Foree ou Terry Alexander.48 Contudo,
seus personagens não estão livres das histórias e
políticas que a pele deles traz de herança. Os
personagens negros de Romero são revolucionários no
que se refere à representação cinematográfica de raça
nos Estados Unidos, fossem heróis humanos ou zumbis. E
mais ainda: esses personagens negros são retratados
como pessoas diferentes dos brancos ao redor deles.
Ben, Peter, John e Big Daddy são autoconscientes de
suas identidades, e, enquanto buscam sobreviver entre
os demais, eles não passam necessariamente uma
mensagem de integração, mas de coexistência — uma
diferença sutil, mas importante. A diferença deles se
torna mais evidente quando, como Dyer insiste, a
negritude dos personagens é compreendida em
contraste com a branquitude. Através de tal análise, fica
óbvio que o heroísmo desses quatro personagens vem,
em parte, do fato de se elencarem enquanto alheios às
hierarquias raciais e outras normas dominantes. É por
meio de sua rejeição a essas limitações e de sua
resistência à dominação que se torna “possível ver que
os brancos [ou pelo menos aqueles investidos na
branquitude] são os mortos-vivos”.49
CONCLUSÃO
As décadas de 1950 e 1960 trouxeram um novo
significado para o velho ditado “um passo para frente,
dois para trás”. Hollywood não estava pronta para
desistir da fórmula insípida de situar o mal em lugares
negros ou entre os negros. Lembre-se, é a empregada
negra Eulabelle, em The Horror of Beach Party, que
pronuncia aleatoriamente que um monstro saído do lixo
tóxico deve ser um trabalho de vodu (negro). Assim, ao
continuar com o impulso de entender o mal e o
monstruoso como algo inspirado nos negros,
,norte da cidade, os negros, especialmente aqueles
que vivem nas segregações elevadas e remotas do
projeto habitacional Northview Heights, precisam fazer
um grande esforço para chegar ao centro de Pittsburgh.
São obrigados a descer a colina mais íngreme da cidade,
atravessar “as planícies” e as pontes acima dos três rios
famosos de Pittsburgh — o Allegheny, o Monongahela e o
Ohio — para chegar no centro da cidade, também
conhecido como o “distrito cultural”. O distrito cultural
sedia alegremente shows da Broadway em turnê,
convenções e, ocasionalmente, até mesmo um festival
de filmes de terror. Para se conectar com os negros que
vivem, por exemplo, nas altitudes da região leste,
esforços comparáveis são necessários. Logo, não apenas
a conexão inter-racial é um desafio na antiga Cidade do
Aço, mas a união intrarracial também não é nem um
pouco fácil.
Romero fez a sua quarta produção da franquia dos
mortos em 2005 com o filme Terra dos mortos. O
comentário social de Terra tem tudo a ver com limites —
corporativo versus público, ricos versus pobres,
integrados versus marginalizados — e localização,
especialmente sobre como aqueles três rios reforçam
todas as formas de divisas e separações. Ao assistir
Terra, eu vibrei quando o frentista negro, que se tornou o
líder de uma facção zumbi rebelde, tomou o longo
caminho para sair do seu bairro. Ele mergulhou na área
em que os três rios se encontram e marchou no fundo
escuro das águas com seu exército de compatriotas
destituídos para expressar sua insatisfação, de uma
forma bem “especial”, em relação aos valores daqueles
que se encontravam do outro lado das faixas raciais, de
classe e corporativas no distrito cultural. Romero entende
Pittsburgh tão bem.
Pittsburgh também tem, de forma dúbia, me fornecido
algum capital de horror cultural para chamar de meu. Em
1982 o filme de terror Cão branco contou a história de
um cruel pastor-alemão treinado por um racista branco
para matar negros. Quando as pessoas comentam sobre
o enredo fantasioso de Cão branco, eu as recordo de
Dolpho, um pastor-alemão da polícia. Em um subúrbio de
Pittsburgh, em 2002, Dolpho teve três reclamações
registradas contra ele por negros que relataram ataques
sem provocação. As coisas chegaram ao limite quando o
cão preferiu atacar um menino negro de nove anos de
idade em vez de perseguir, sob o comando de seu
treinador branco, um homem branco suspeito de tráfico
que estava por perto.6 Dolpho foi suspenso da força
policial.
Atualmente, Pittsburgh também é o lar de um “clube
de encontros” de vampiros (mas qual cidade não é?) e
está trabalhando para expandir seu grupo de lobisomens
para pessoas como “Nicole”, que postou no grupo de
mensagens do site
pessoal. Tenho 20 anos de idade, sou mulher e
lobisomem. E só”. A cidade também possui a Associação
dos Caçadores de Fantasmas de Pittsburgh (PGHA), que
investiga atividades paranormais na área desde 2002. Os
“caçadores” da PGHA afirmam conhecer particularmente
um instrumento transcomunicador (ITC). Isso significa que
eles gravam “mensagens do além” (imagine Michael
Keaton em Vozes do além [2005]).7
Então, sim, o fato de eu ser de Pittsburgh, e de ser
uma fã de terror desde cedo, significa que trago uma
nova relação com, e uma perspectiva única sobre, os
filmes de terror.
DESAFIANDO O TERROR
Meu interesse nos filmes de terror e em suas narrativas
acerca de raça certamente não começam e muito menos
terminam nos filmes de Romero. Filmes como King Kong
(1933), com seus nativos de pele preta entoando “uga-
buga” e que se enamoram da pele branca, são
extraordinariamente úteis para jogar uma luz na forma
como entendemos o papel de raça, assim como
(imaginárias) práticas culturais. E nem me fale de filmes
http://werewolf.meetup.com/
como Bones: o anjo das trevas (2001), inspirados pela
cultura hip-hop, com seus temas neo-blaxploitation ao
som de rap. A corda que une todos os filmes que vou
examinar aqui é a sua habilidade de inspirar abordagens
raciais provocativas e que oferecem lições únicas e
mensagens acerca das relações raciais.
Eu mostrarei neste livro que existem muitos filmes de
terror que contribuem para a conversa sobre negritude.
Acredito que seja particularmente importante entender
que existe uma miríade de filmes de terror, geralmente
feitos por criadores negros como Spencer Williams (O
sangue de Jesus, 1941), Bill Gunn (Ganja & Hess, 1973) e
Ernest Dickerson (Def by Temptation, 1990), que exibem
temática negra, elenco negro e cenários negros que
contribuem para o conteúdo inovador do gênero.
O horror tem algo a dizer sobre religião, ciência,
estrangeiros, sexualidades, poder e controle, classe,
papéis de gênero, origem do mal, sociedade ideal,
democracia etc. Esses tópicos mudam completamente de
figura quando são examinados sob a ótica da cultura
negra. Meu ponto é: a história da negritude contada pelo
terror é interessante e complexa. Enquanto o terror às
vezes tem sido marcado pela sua reputação de “filme B”,
de baixo orçamento e/ou de gênero explorador, é
impossível negar sua capacidade única de expor as
questões e preocupações do nosso mundo social,
incluindo nossas sensibilidades raciais.8
“Uma forma de rebaixar o gênero do terror”, escreve
Hutchings, “é subestimar sua audiência […] dizendo que
as únicas pessoas que possivelmente podem gostar
desse tipo de coisa são doentes ou estúpidos (ou doentes
e estúpidos)”.9 Eu não quero desconsiderar o que para
alguns é uma “pulga atrás da orelha” no que diz respeito
aos filmes de terror. Muitos desses filmes são, realmente,
repletos de sanguinolência (a doença) e com roteiros
fracos (a estupidez). Filmes de terror raramente são
coisas dignas de vencer um prêmio no Festival de
Cannes, mas o seu público pode ser bem mais esperto do
que alguns críticos e acadêmicos imaginam. Esse público
entende que o gênero como um todo não é inerte, e que
realizadores de filmes de terror revelam algo muito,
muito mais horrorizante: que o nosso mundo e as
relações são realmente unidos por pouco mais do que
cola de peruca spirit gum.
A noite dos mortos-vivos é um clássico cult agora. Os
aficionados do gênero concordam que foi uma das
maiores contribuições de Romero para o gênero e para a
mídia. Contudo, já se passaram algumas décadas desde
que Noite exigiu que nos perguntássemos o que era mais
assustador: zumbis comedores de carne, ou aquilo que
fazemos uns com os outros diariamente.
Então, aí está. Eu obviamente acredito que o gênero
do terror tem uma grande promessa revelatória e é isso
que me move a explorar sua miríade de definições de
negritude, assim como aquilo que o gênero revela sobre
os tipos relevantes de personagens negros, em relação
aos níveis de participação dos negros em filmes e a
respeito da contribuição negra para o nosso mundo
social.
HORROR
NOIRE
INTRO
ESTUDANDO NEGROS E FILMES DE
TERROR
:01 segundo de início do filme Jurassic
Park: o parque dos dinossauros (1993): O
guarda negro sem nome #1 é empurrado
para dentro de uma cela com um
velociraptor em movimento [Oh, não.
Tome cuidado guarda negro #1!] :04
segundos depois, o guarda negro #1 é
transformado em um verdadeiro purê pelo
velociraptor.
Jurassic Park talvez tenha sido um entretenimento de
ficção científica emocionante para alguns naquele
cinema escuro em Columbia, no estado do Missouri, mas
para mim essa primeira cena de aniquilação negra
prometia um show de terror. Eu me lembro de ter
passado vários minutos em luto pelo guarda negro #1
(Jophery C. Brown), cuja morte foi testemunhada com o
único propósito de evidenciar o que todos já sabíamos —
que o velociraptor é um monstro terrível. Para se
certificarem disso, diretores como Steven Spielberg
brincam de forma sagaz com as expectativas da
audiência, incluindo a descoberta de que não há modo
melhor de mostrar a letalidade extrema de alguém, ou
algo, do que assegurar uma vitória sanguinária
,em
detrimento de um homem negro com uma gigantesca
arma negra.
Enquanto as pessoas ao meu redor no cinema davam
risadinhas com as bizarrices do encontro entre crianças e
dinossauros, eu me sentia estranhamente
desconfortável… talvez porque eu estivesse olhando
para o cepo ensanguentado do engenheiro (negro) Ray
Arnold (Samuel L. Jackson) do Parque dos Dinossauros.
Ele também tinha sido capturado pelos dinossauros. Ray
não era o advogado desagradável, o ladrão de segredos
corporativos, ou mesmo o grande caçador, que foram
todos merecidamente devorados pelas criaturas. Assim
como o guarda negro #1, Ray Arnold era inocente;
portanto, os dois únicos personagens negros do filme
foram unidos pelo fato de terem experimentado mortes
horríveis e absolutamente injustificadas.
O objetivo dessa lembrança é revelar que, às vezes,
os negros têm uma relação bastante única com a
representação dos negros em filmes estadunidenses. Ao
assistirem um filme, alguns levam, ou vão embora
carregando, expectativas culturalmente específicas — o
que Kozol chama de “o olhar racial”1 —, esperando ver a
si mesmos como sujeitos completos, redondos e
complexos em vez de simples “ornamentos no set de
filmagem”2 ou carne humana para elevar a
sanguinolenta contagem de corpos.
Em Horror Noire: A Representação Negra no Cinema
de Terror, eu estou interessada naquilo que o terror pode
revelar, por meio das representações, sobre nosso
entendimento dos negros e dos tropos da cultura negra,
ou negritude, bem como em saber com que tipos de
discursos sociopolíticos esses filmes contribuem e quais
significados provocam. Mais ainda, eu especulo sobre os
ímpetos acerca das narrativas e imagens racializadas dos
filmes de terror. Em meus esforços para rehistoricizar e
recontextualizar os filmes de terror, eu noto como o
gênero “fala” sobre diferença. Isto é, marcando as
pessoas negras e sua cultura como o Outro — à parte
das populações e culturas dominantes (brancas) nos
Estados Unidos. O título principal do livro, Horror Noire,
funciona como uma espécie de duplo sentido. Ele
referencia o “escuro”, ou o “noire” (como em bête noire),
e ao mesmo tempo oferece um reconhecimento das
relações complexas do horror com o bem e o mal, certo e
errado, assim como um outro gênero, o filme noir,
também lida com essas questões. Contudo, este livro não
toma o filme noir como foco. Em vez disso, Horror Noire é
um título que trabalha para saudar e unir a riqueza das
formas populares de cultura oferecidas com foco nos
negros norte-americanos — que também se apropriam
da palavra francesa noir(e) para se referir a “negro” —
por exemplo: Noire Digerati, uma organização
tecnológica que foca na inclusão de negros no
desenvolvimento de jogos, computação móvel e mídia
interativa;3 ou o livro Black Noir, composto por escritores
afro-estadunidenses de histórias policiais;4 ou o site
NetNoir, um portal de notícias e política que trabalha sob
“uma perspectiva afro-estadunidense”.5
O terror é um gênero que, de acordo com Mark Reid
em Black Lenses, Black Voices: African American Film
Now, exige escrutínio quando “a diferença demoniza
personagens e cria ou resiste a noções estáticas de bem
e mal”.6 Isso não quer dizer que apenas os filmes de
terror que apresentem, ou lidem, com nossas
desigualdades sociais ou que debatam nossa hipocrisia
mereçam ser estudados. Para o escritor de livros de
terror Stephen King, aquilo que está enterrado sob a
fantasia de terror é válido o suficiente; como ele afirma:
“para início de conversa, nós entendemos que a ficção é
uma mentira. Ignorar a verdade dentro da mentira é um
pecado contra o ofício”.7 Para nos certificarmos, a
intrínseca “qualidade fantástica [do horror] produziu mais
pensamentos imaginativos, inovadores e provocadores
(bem como tortuosos e confusos) do que é por vezes
aparente naquelas áreas de representação mais
engessadas pelas exigências do realismo”.8 Por meio da
sua imaginação, inovação e inclinação à provocação, o
terror não apenas comenta sobre a cultura negra, mas,
como Clover afirma, também “dedura” a mídia
dominante, reparando seus lapsos em relação a
convenções, visões culturais e representacionais e
coragem.9
O que eu procuro evitar aqui é tratar o gênero do
terror como “uma longa cadeia de códigos imutáveis”
onde as mudanças históricas significativas são
descartadas como “pouco mais do que variações
insignificantes”.10 Outros estudiosos têm trabalhado de
forma eficiente e influente para identificar e organizar o
tratamento dos negros ao longo do tempo na cultura
popular e na mídia. Por exemplo, Brown categoriza os
tipos de personagens negros frequentemente vistos na
literatura dominante no início do século XX como
“escravo contente” ou o “livre miserável”.11 Clark12
contribuiu com uma tipologia organizada em torno da
participação negra, ou da falta dela, na mídia. Ele
identifica representações recorrentes e modismos como
o “não reconhecimento” (ou ausência) e o “ridículo”.
Nelson13 e Coleman14 focam nos sitcoms de televisão
para providenciar uma rubrica que elucida o impacto
sociopolítico dos discursos de mídia que incluem as
mensagens nas entrelinhas de “separados mas iguais” e
“assimiladores”. Em Horror Noire, eu comecei a apreciar
essas e outras contribuições organizacionais
importantes, enquanto inovo meu próprio exame
histórico — década por década — da participação negra
no gênero dos filmes de terror.
Ainda assim, tomei bastante cuidado para não
encaixar forçosamente este histórico dos filmes de terror
em décadas. Contudo, a posteriori, minha análise
realmente revelou um ciclo de representações que
coincide com a ascensão e queda dos rumos
sociopolíticos em cada década, e apresento aqui meu
entendimento e a minha interpretação dos eventos.
Ainda que delineado por década, o gênero do terror
apresenta tanto tendências de longa duração e que
atravessam eras quanto alguns modismos temporários.
Eu trabalho bastante para notar exemplos de cada um.
O TERROR COMO UM GÊNERO (RESISTENTE)
A questão imediata, dada a constante simultânea (por
exemplo, medo e violência) e a natureza flexível (por
exemplo, bom gosto e estética) do gênero, é: “O que,
então, constitui um filme de terror?”. É válido notar de
imediato que discutir o que entra ou sai dos limites de
um gênero é um processo complexo, quiçá impossível e,
às vezes, infrutífero. Hoje, especialmente na era da
multimídia e das novas mídias tecnológicas, limites
puristas e genéricos são extremamente difíceis de ser
definidos. Seria um filme de terror, um filme de verdade,
apenas se estiver, vamos dizer, numa tela de cinema
hollywoodiana, ou podemos aceitar agora que o terror
encontrou sua casa em telas cada vez menores (como as
tecnologias digitais portáteis)? Pode o filme de terror ser
feito não apenas por grandes estúdios, ou estúdios
independentes, mas também por um ou dois indivíduos
com uma câmera digital, um roteiro que de roteiro não
tem quase nada e orçamento zero? O Jurassic Park, por
exemplo, seria um filme de aventura, ficção científica,
uma comédia, ou todas as opções ao mesmo tempo?
Continuando com o exemplo de Jurassic Park, o filme se
aproximaria da categoria de terror por causa dos seus
monstros assassinos, do sentimento de medo que causou
ou mesmo porque ao menos uma pessoa da plateia o
interpretou como um filme de terror com base em sua
crença de que a taxa de mortalidade entre as pessoas
negras no filme, embora baixíssima, seja assustadora?
Essas questões revelam que, mesmo juntando mídia,
produção e recepção, não é possível conseguir uma
definição clara.
Hutchings, em seu livro The Horror Film, está certo em
sua observação de que as definições são fugidias: “quais
filmes são terror e quais filmes não são é uma questão
que continua sendo uma incógnita […], talvez a
característica mais emocionante e impressionante do
cinema de horror nesse aspecto seja que, assim como
um de seus monstros metamorfos,
,o gênero está sempre
mudando, sempre em processo”.15 Contudo, aceitar a
inconclusão é insatisfatório aqui, já que, dentro do
contexto deste livro, é útil abordar pelo menos algum
entendimento sobre o que seria, e o que não seria, um
filme de terror.
Certamente, a noção de gênero e a prática de
distribuir tipologias, especialmente dentro do terror, são
“particularmente contestadas”.16 Hoje, nosso
entendimento de gênero vai além das noções iniciais
aristotélicas/Poética e daquelas de Northrop
Frye/Anatomia da crítica17 de desafiar as fórmulas e
convenções distintas e separadas das formas de arte
para criar um sistema classificatório. Em vez disso, o
gênero tem muito a ver com o poder heurístico que
envolve a nomeação de “algo”, e também se relaciona
com eufonia sociopolítica. Ao “nomear algo”, Gateward
nos ajuda a revelar a profundidade do problema; como
ela aponta: “na verdade, existem tantos filmes de
vampiro com tantas convenções compartilhadas em
relação a temas e personagens, que o filme de vampiro
acabou se tornando um gênero por si só”.18 O mesmo
pode ser dito sobre negros em filmes. Isto é, existem
tantos filmes exibindo a negritude, compartilhando de
tantas convenções, que filmes negros se tornaram um
gênero por si só.19
Marcar ou nomear alguma coisa, no fim das contas, é
intrinsecamente perigoso porque pode subordinar ainda
mais essa coisa (como a figura da mãe versus a mãe que
depende da ajuda do governo).* Contudo, a nomeação
de algo contém o potencial de ser politicamente
poderoso e pode funcionar para expor materiais de
qualidade que teriam permanecido invisíveis de outra
forma. Por exemplo, existem categorias úteis e criativas
criadas em reconhecimento aos motivos recorrentes e
papéis disponíveis para a negritude. Quando chamamos
certos filmes de “blaxploitation”, por exemplo, a
nomenclatura serve tanto para expor uma certa
categoria de filmes cheia de estereótipos sobre as
relações raciais, papéis de gênero, sexo e violência, e
também funciona como uma crítica em relação àqueles
que criaram os estereótipos, a economia política
(investimentos financeiros, distribuição e marketing) por
trás de tais esforços, e a recepção e o grande impacto
cultural que as imagens contêm dentro e fora do escopo
da negritude. Categorias adicionais, guiadas pelo
consenso cultural, impacto social, assunto tratado, estilo,
técnica ou qualidade, continuam a surgir a todo
momento, como os “filmes de gueto”, tipo Os donos da
rua (1991) ou Perigo para a sociedade (1993). De forma
compreensível, muitos se recusam a categorizar filmes
por meio de alguma espécie de raciologia. Esse tipo de
alocação corre o risco de criar uma sobredeterminação
de todas as formas de variáveis das diferenças, como
visão de mundo, classe, sexualidade, gênero etc. Ainda
assim, David Leonard criou um argumento convincente e
persuasivo para delinear filmes negros a fim de facilitar o
estudo em Screens Fade to Black: “é preciso analisar o
cinema negro como um fenômeno em si — como algo
que possui a sua própria história, tradição cultural e
normas expressivas (africanismo, tradição oral, estilo
narrativo, espiritualidade, sincretismo, hibridização)”.20
Assim sendo, o que, então, é o terror conceitualizado
aqui? Eu tomo a discussão de Phillips acerca das
definições em seu livro Projected Fears: Horror Films and
American Culture.21 Nessa obra, ele argumenta que o
terror, como um gênero, é marcado por aquilo que é
reconhecível instantaneamente como aterrorizante;
aquilo que corresponde a nossa compreensão e
expectativa do que é aterrorizante; e por aquilo que é
discutido e interpretado como sendo parte do terror.
Isabel Christina Pinedo, em Recreational Terror: Women
and the Pleasure of Horror Film Viewing, sintetiza de
forma hábil a variedade das considerações acerca do
terror, definindo o gênero de acordo com cinco
descritores: (1) o horror perturba o mundo corriqueiro;
(2) infringe e viola limites; (3) incomoda a validez da
racionalidade; (4) resiste aos fechamentos narrativos; e
(5) trabalha para evocar o medo.22 Na verdade, neste
livro, eu acredito que seja mais proveitoso abordar o
nosso entendimento dos filmes de terror por meio de um
apanhando de considerações. Ao fazê-lo, eu tento evitar
as armadilhas e os limites de estabelecer categorias
fixas, enquanto dou crédito à ambiguidade e abertura
textual ou polissemia.
Há muito o que considerar quando exploramos o
terror, e existem limites em minha análise. Em minha
abordagem crítica cultural/crítica racial, eu notavelmente
omito o psicanalítico, além da ênfase na agressão e na
violência, que contribuíram na definição de um
conhecimento sobre os filmes de terror. Meu
questionamento sobre identidade cultural e mensagens
mediadas apresenta um interesse diferente daquelas
questões focadas nos efeitos do terror e da violência
sobre a psicologia e o desejo de sangue dos
telespectadores reais. Enquanto o meu desinteresse em
relação à psicanálise é guiado pelas minhas questões
culturalmente focadas, Hutchings apresenta uma
perspectiva mais pessimista das leituras psicanalíticas,
descrevendo tais críticas cinematográficas como
“profundamente problemáticas”, em grande parte por
causa de seu embate naquilo que se refere a “noções de
coletividade, economia, tecnologia, história, raça e
classe”.23 Jonathan Lake Crane, em Terror and Everyday
Life, também expressa dúvidas acerca do foco em
“violência nas telas […] desejo libidinoso ou qualquer
outro tipo de agitação psíquica”.24
Outra marca do gênero de terror é a sua
complexidade. Assim como é capaz de fornecer as
narrativas mais empolgantes, heroicas e imaginativas, o
terror também pode produzir filmes de violência
assustadora, repugnante e indescritível. Não é possível
ignorar que as violências psíquicas e emocionais são
frequentemente centrais no gênero. Enquanto filmes
(hiper)violentos e dramáticos dos gêneros de guerra,
crime e suspense, como Pulp Fiction: tempos de
violência, O resgate do soldado Ryan e Onde os fracos
não têm vez são aclamados criticamente e poupados dos
desvios acadêmicos em pesquisas experimentais sobre
agressão e perturbações psicológicas, é impossível
ignorar a dependência que o horror guarda na violência
como ferramenta narrativa. É reconhecido aqui que não é
apenas o derramamento de sangue que constitui um
filme de terror, mas “o contexto niilista no qual a
violência ocorre”.25 É fácil perceber como a violência do
filme de terror veio a ser vista como algo esvaziado de
qualquer valor elucidativo. Talvez tenhamos que
agradecer aos filmes de assassinos sanguinolentos por
isso (por exemplo, Baile de formatura [1980]). Contudo, o
que observamos aqui é que, muitas vezes, a violência no
terror e na negritude trabalham juntas para prover
incursões discursivas importantes, como a violência
exibindo algum tipo de “retorno do re/oprimido”. Aqui, a
violência, seja ela gratuita ou assertiva, não irá encobrir
as narrativas revelatórias de negritude que os filmes de
terror têm para oferecer.
NEGROS NOS FILMES DE TERROR
(VERSUS FILMES NEGROS DE TERROR)
Este livro contribui para o diálogo acerca do filme de
terror ao oferecer duas categorias adicionais para o
léxico. A primeira é filmes de terror “com negros” e a
segunda é “filmes negros” de terror.
Filmes de terror “com negros lidam com a população
negra e a negritude no contexto do terror, ainda que o
filme de terror não seja completamente ou
substancialmente focado em um ou outro. Contudo,
esses filmes possuem um poder discursivo particular em
seu tratamento da negritude. Esses filmes de terror
geralmente são produtos de grandes estúdios, embora
não universalmente. Eles têm sido produzidos, histórica e
tipicamente, por pessoas não negras para o consumo
mainstream. Filmes de terror “com negros” apresentam
algumas das imagens mais importantes para se entender
como a negritude é representada. Exemplos de filmes de
terror “com
,negros” que serão discutidos neste livro
incluem King Kong (1933), A noite dos mortos-vivos
(1968), A maldição dos mortos-vivos (1988) e O mistério
de Candyman (1992). O elo que une muitos desses
filmes, primeiramente, é que eles tendem a provocar um
consenso do que constitui um filme de terror — eles
perturbam nossas noções de uma vida racional,
mundana e segura. Em segundo lugar, esses filmes
contribuíram de maneira significativa para as discussões
e debates em relação não apenas à negritude, mas
também à sua proximidade com interpretações acerca do
que é aterrorizante e onde ela é incorporada. Esses são
filmes que frequentemente “codificam o monstro como
um Outro racial associado a uma poderosa religião
selvagem”.26 Na verdade, nós vemos o Outro racial em
filmes como O mistério de Candyman, e a religião negra
como selvagem e poderosa em A maldição dos mortos-
vivos. Além disso, esses filmes são “mais
hiperbolicamente preocupados do que nunca com a
questão da diferença” (citado em Grant 2).27
Não estão incluídos neste livro os filmes de terror que
não fornecem uma percepção significativa relacionada ao
legado que une a negritude com o horrorizante. Excluí os
filmes nos quais personagens negros são incidentais ou
estão ali só para marcar presença, e dos quais algum
comentário sobre a negritude também está ausente —
exceto para dizer que se trata de algo com pouca
relevância. A inclusão de filmes como Chamas da
vingança (1984) ou O mestre dos desejos (1997), em que
os negros são relegados “ao status de vítimas,
personagens descartáveis amplamente
subdesenvolvidos”,28 foi omitida desta análise. Contudo,
aqui foram incluídos casos de filmes que falam muito
sobre negritude, ainda que por meio de sua exclusão. A
omissão completa dos negros e da negritude revela
muito sobre a nossa cultura estadunidense em diferentes
pontos da história. Por exemplo, existem razões
intrigantes para o fato de haver poucos — ou uma total
ausência de — negros nos subúrbios da década de 1980
em que monstros como Freddy Krueger e Michael Myers
caçavam e eram caçados. Isso significa que um filme não
precisa ter um personagem negro para dizer algo sobre
ou contra a negritude. As discussões a respeito de filmes
que parecem oferecer metáforas raciais também serão
incluídas. O monstro da lagoa negra (1954), em
particular, é um filme que não possui uma presença
negra significativa em tela, mas merece atenção por
exibir o herói branco ocidental moderno cuja missão
primordial é proteger uma mulher branca similarmente
situada de um monstro negro primordial.29
Também é válido levar em consideração as noções de
aparência do bem e do mal em um filme. Isso quer dizer,
por exemplo, que existem alguns contribuintes para a
categoria de filmes de terror “com negros” que merecem
a nossa atenção por causa de sua significativa
contribuição para o nosso entendimento do negro-como-
monstruosidade. O nascimento de uma nação (1915), o
épico pró-Ku Klux Klan da Guerra Civil, é um filme que
elenca os negros de forma escandalosa como figuras
horríveis — eles são monstruosos, bichos-papões
selvagens (frequentemente homens) que possuem
práticas culturais perturbadoras. Logo, neste livro, a
definição de filmes de terror “com negros” pode ir além
das expectativas tradicionais daquilo que constitui um
filme de terror para revelar — em forma e processo —
que aquilo que aterroriza é solidificado na imaginação.
Alguém irá se perguntar inevitavelmente por que este
ou aquele filme não entrou no livro. O critério para a
inclusão que foi empregado aqui se relaciona à saliência
em exemplificar as eras históricas e os temas que os
próprios filmes trabalharam para criar e informar. O
objetivo não é ser enciclopédico.
FILMES NEGROS DE TERROR
(VERSUS FILMES DE TERROR COM NEGROS)
Existe um segundo tipo de filme tratado neste livro, os
“filmes negros” de terror. Filmes negros de terror são
constituídos por muitos dos mesmos indicadores dos
filmes de terror, como a perturbação, monstruosidades e
medo. Contudo, filmes negros de terror são filmes
“raciais” na maioria das vezes. O que significa que
possuem um foco narrativo adicional que chama a
atenção para a identidade racial, nesse caso, a negritude
— cultura negra, história, ideologias, experiências,
políticas, linguagem, humor, estética, estilo, música e
coisas do tipo. Filmes negros, diz (e acautela) Cripps:
[…] têm um produtor, diretor e escritor, ou
artistas negros; que falam com o público negro
ou, de forma incidental, com o público branco
possuidor de curiosidade sobrenatural, atenção
ou sensibilidade em relação aos assuntos
raciais; e isso emerge de intenções conscientes,
sejam elas artísticas ou políticas, para iluminar a
experiência afro-estadunidense. […] Se
fôssemos trazer essa definição para âmbitos
mais pontuais, nós iríamos discutir eternamente
sobre quem tem o direito de participar da
dança.30
Em resumo, os negros podem aparecer em todos os tipos
de filmes de terror, mas os próprios filmes podem não ser
negros em si, em relação ao criador, público ou a
experiência que apresentam. É válido notar o
apontamento que Yearwood coloca de que a compleição
do criador do filme e do público não são medidas
suficientes para se definir um filme negro, seja de terror
ou não. O filme negro trata sobre a experiência negra e
as tradições culturais negras — um meio cultural e
histórico negro girando e impactando as vidas negras nos
Estados Unidos. Embora seja difícil definir um filme
negro, isso não quer dizer que ele não exista, apenas que
é algo dinâmico de onde novas estéticas e limites
surgem.31
Neste livro, Def by Temptation (1990) é um “filme
negro” de terror. É feito por produtores negros: James
Bond III é o autor, diretor e produtor, e Ernest R.
Dickerson é o diretor de fotografia. Apresenta um elenco
todo negro, incluindo Bond, Kadeem Hardison e Samuel
L. Jackson. Ele saúda o público negro ao apresentar
cantores de R&B, como Melba e Freddie Jackson, e lida
com tropos específicos da cultura negra — invoca rituais
das igrejas sulistas negras, espaços negros urbanos,
performances de masculinidade negra, vernáculos
negros, música, estilo e outras características estéticas.
Contudo, é importante notar que nem todos esses
elementos precisam estar presentes para que um filme
seja “negro”.
Ao contrário, existem filmes de terror que voltam sua
atenção para a negritude, mas falham em ser filmes
negros. As criaturas atrás das paredes (1991) é oferecido
por um criador de imagens não negro (Wes Craven). O
filme é notável por ter o personagem “Fool”, uma criança
negra ladra, como protagonista. Mas a produção também
estrela um casal branco incestuoso, “Mãe” e “Pai”, que
são os antagonistas grotescos. As criaturas atrás das
paredes exibe Mãe e Pai como senhores do gueto em um
bairro pobre predominantemente negro. Além dos negros
criminosos e negros pobres, o foco narrativo recai em
cima de Mãe, Pai e de uma “filha” branca, Alice, que foi
sequestrada e sujeitada a abusos. Assim sendo, As
criaturas atrás das paredes trata da branquitude com um
elenco e uma equipe majoritariamente brancas, assim
como seu impulso textual. Pelas minhas contas, trata-se
de um esforço do tipo filmes de terror com negros.
Contudo, o ponto de igualdade entre os dois filmes, Def e
As criaturas, é que, como argumenta Tony Williams,
assim como vários outros filmes de terror, ambos contêm
“temas altamente relevantes para o público que ocupa
uma posição marginal na sociedade”.32
Outro filme dirigido por Wes Craven, Um vampiro no
Brooklyn (1995), foi escrito pelos afro-estadunidenses
Eddie e Charlie Murphy e Vernon Lynch. O filme estrela,
além de Eddie Murphy, os atores negros Angela Bassett,
Allen Payne, Kadeem Hardison e John Witherspoon. A
produção conecta o Caribe com uma vizinhança negra no
Brooklyn, apresenta formas de arte negras e conta com
um humor derivado culturalmente. Aqui, Um vampiro