Horror Noire - Comunicação e Expressão (2024)

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HORROR

NOIRE

“Nossos nomes serão escritos

em milhares de paredes.

Venha comigo e torne-se imortal.”

CANDYMAN

ROBIN R.

MEANS COLEMAN

HORROR

NOIRE

SUMÁRIO

ASHLEE

BLACKWELL

Como chegamos aqui?

PRÓLOGO

Em busca do sentimento de equilíbrio

PREFÁCIO

A promessa revelatória do cinema de gênero

INTRODUÇÃO

Estudando negros e filmes de terror

PRÉ-1930

O nascimento do bicho-papão negro no imaginário

1930

Febre na selva: um romance de horror

1940

Bandidos aterrorizantes e miseráveis menestréis

1950, 1960

Invisibilidade negra, ciência branca e uma noite com Ben

1970

Grite, branquelo, grite: retribuição, mulheres duronas e carnalidade

1980

Nós sempre morremos primeiro: invisibilidade, segregação racial

econômica e o sacrifício voluntário

1990

Estamos de volta! A vingança e o terreno urbano

CONCLUSÃO

Capturando alguns Zzzzzs: os negroz e o terror no século XXI

NOTAS

CINEMATECA

BIBLIOGRAFIA

AGRADECIMENTOS

HORROR

NOIRE

INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

ASHLEE

BLACKWELL

COMO CHEGAMOS AQUI?

Era uma noite insistentemente gelada, e, geralmente, eu

não estaria até tão tarde na rua numa terça-feira de

fevereiro. A rua principal, muitas vezes cheia, estava um

tanto deserta, me deixando ainda mais ansiosa para que

o meu ônibus chegasse. Meu plano, além de me manter

alerta e aquecida, era guardar as imagens da estreia

fenomenal de Corra! de Jordan Peele frescas em minha

mente. Eu morava do outro lado da cidade e precisava

anotar imediatamente minhas ideias em uma página

digital. Naquela época, eu já havia passado alguns anos

em um estudo on-line sobre terror que foi tão único e

respeitado que acabei sendo convidada para aquela pré-

estreia. Eu tinha esperanças de que Corra! pudesse se

tornar aquele filme de terror mainstream dirigido por um

artista negro e que seria abraçado pela estratosfera

autoral. E o filme definitivamente alcançou isso.

O aspecto mais tocante de Corra!, para mim, não

foram as várias camadas de racismo institucionalizado,

supremacia branca e subtextos de políticas raciais, mas a

personificação interna dessas questões maiores

enclausuradas na psique de Chris (Daniel Kaluuya). Rose

(Allison Williams) não apenas predou um homem negro

que estava vivendo sua vida: ela atacou a fragilidade da

perda de Chris. A perda da estabilidade familiar (pai

ausente, mãe morta em um acidente trágico) e o desejo

de uma comunidade (os reflexos da vida negra em sua

fotografia, sua confiança inabalável em Rod, interpretado

por Lil Rel Howery). É a perseverança de Chris, apesar

dessas adversidades, junto de seu olhar talentoso, que

fazem dele a presa ideal para que Rose o transporte ao

que parece ser outra dimensão, mas que na verdade não

é. Porque uma vez que pessoas negras saem da

segurança de suas casas, famílias e comunidades e vão

para um mundo repleto de microagressões raciais e

comportamentos discriminatórios, há uma verdadeira e

consciente angústia em relação à perda de identidade e

extinção. Essa angústia foi incorporada em nosso DNA por

meio de traumas geracionais.

Em minha resenha de Corra!, disponível no site

Graveyard Shift Sisters, eu descrevo Chris como uma

figura fragmentada. Foi uma revelação em meu próprio

trabalho como uma escritora e fã de terror, mulher e

negra, porque eu também me sentia fragmentada em

um ambiente onde poucos se pareciam comigo. Estive

desprotegida e era verbalmente insegura em lugares de

encontro de terror por ser a única. Minha presença era

claramente indesejada, e Corra! se utiliza do terror para

demonstrar esses sentimentos tão tangíveis que várias

pessoas não brancas sentem em espaços que sugerem

que suas cores e culturas sejam educadamente

suavizadas no melhor dos casos, e invisibilizadas nos

piores.

Pensamentos do tipo já estavam na minha cabeça,

como sem*ntes, quando Corra! chegou aos cinemas. O

tipo de pensamento que, na época, eu não sabia como

expressar de forma exata ao meu novo amigo Phil Nobile

Jr. Ele era apenas um cara legal que conheci em uma

convenção de terror dois verões atrás e que eu via às

vezes no Twitter, até que ele me convidou para escrever

para o Birth.Movies. Death, um site famoso. Ele não

apenas surgiu na minha caixa de entrada do e-mail com

um pedido vago e genérico de resenha. Ele fez a

proposta sabendo que eu daria mais importância para

um filme de terror escrito e dirigido por um homem negro

e estrelado por negros, e para uma história com um

fundo definitivamente afro-estadunidense. O que eu

gosto no Phil é esse cuidado de tirar um tempo para

entender quais tópicos particulares compelem alguém a

usar seus talentos para ir mais a fundo. A fundação de

nosso relacionamento, como colegas de trabalho, nos fez

sentar juntos para um almoço em determinado dia,

sabendo que Corra! era o nascer do sol no horizonte de

um movimento.

A pergunta “Como chegamos aqui?” foi a transição

perfeita na preparação de um argumento para contar a

história e expressar teorias críticas em torno do terror

negro. E começou com Horror Noire, uma monografia de

mais de dez anos da dra. Robin R. Means Coleman. A dra.

Coleman é uma nativa da Pensilvânia, de Pittsburgh, que

dividia o tempo com sua família em drive-ins,

testemunhando as mais modernas novidades em relação

a criaturas e deleites fantasmagóricos. Uma vez que seu

lugar de origem foi o lar de alguns dos trabalhos mais

celebrados do cineasta George A. Romero, como A noite

dos mortos-vivos (1968) e Despertar dos mortos (1978) e

com as locações acessíveis, Robin pôde criar o que ela

descreveu como uma relação puramente “especial” com

o gênero. Essas influências indubitavelmente a fizeram

canalizar a energia dessas experiências em sua pesquisa

investigativa acerca da experiência negra no terror com

tanta riqueza de detalhes, que hoje este é o trabalho

mais seminal sobre o tópico, ainda não igualado. A dra.

Coleman acendeu em mim o tipo de chama com a qual

eu havia apenas sonhado enquanto era uma estudante

universitária. Foi uma honra usar meu conhecimento

adquirido para introduzir o trabalho de Robin a outras

pessoas. Mas, enquanto eu produzia alguns dos meus

primeiros escritos on-line de maneira intensa, não me dei

conta do quanto a minha pesquisa e a entrevista com a

dra. Coleman poderiam impressionar Phil e suas

sensibilidades como fã de terror.

Já estabelecido como profissional versátil e

desenvolvedor de produções cinematográficas e

televisivas na Center City Film & Video, na Stage 3

Productions e em outras companhias mais antigas na

Filadélfia, Pensilvânia, ele se utilizou de sua longevidade

e da confiança de seus superiores para pensar fora da

caixa em relação aos programas que eles estavam

desenvolvendo. Com seu entusiasmo em relação a

Corra!, minha proximidade imediata e igual fervor, ele

apresentou uma ideia que era insensata demais para

deixar passar: contar a história do terror negro na forma

de documentário. Corra! já tinha atenção mundial, mas

era importante, para manter a efervescência dessa

atenção, dar reconhecimento à história escondida que

havia levado a esse avanço na cultura pop.

Eu me coloquei à disposição para reuniões e

contribuições para colocar esse projeto em ação. Robin

estava entusiasmada com a ideia de transformar seu

livro em uma jornada multimídia e de se tornar uma

produtora executiva. Foram marcadas reuniões com

algumas produtoras em Los Angeles, onde Phil e eu nos

encarregamos de enfatizar a importância dessa história a

ser contada e o impacto que o terror teve na audiência

negra por décadas. Em uma tarde ensolarada em Santa

Mônica, eu olhei para Phil e propus a Shudder como o

meio de distribuição. Ele respondeu de maneira casual

que levaria a proposta em consideração.

Eu conhecia a Shudder como um serviço de streaming

com uma vasta e variada biblioteca

,

no

Brooklyn é tratado como um filme negro de terror. É

válido lembrar, então, aquilo que o estudioso de cinema

Ed Guerrero escreve em Framing Blackness: “nenhum

filme hollywoodiano de imagem negra é fruto da

inspiração ou esforço de um indivíduo, mas um esforço

colaborativo no qual estética, economia e política

compartilham (às vezes de forma antagônica)

influências”.33

Juntos, filmes de terror “com negros” e “filmes

negros” de terror oferecem uma oportunidade

extraordinária de se examinar como raça, identidades e

relações raciais são construídas e representadas. Talvez o

mais interessante para os dois tipos seja quando e de

que maneira esses filmes posicionam de forma variada

os negros como a coisa que horroriza ou como a vítima

que é horrorizada. A narrativa única do gênero de terror,

assim como sua estética e suas qualidades comerciais,

providencia a noção de que “o gênero, mais do que

nunca, se mostra ‘útil’ para debater os dilemas da

diferença”.34 Certamente, o terror sempre prestou

atenção aos problemas sociais de forma provocativa. No

entanto, este momento da sociopolítica estadunidense —

nas interseções da globalização de mídia, formação

identitária, performance e circulação, entendimento de

raça (negritude em particular e a noção de uma era pós-

racial), além do acesso a (e o uso de) novas tecnologias

— é um momento ideal para mergulhar nesse fenômeno

cinematográfico, criador de raças e ideologias.

FLUXO EPISTEMOLÓGICO

Horror Noire é guiado por várias conjecturas básicas. A

primeira delas é que o estudo de raça continua a ser

importante. Em seu livro Darkwater: Voices from Within

the Veil (1920), W.E.B. Du Bois nota que, ao focar no

assunto de raça nos Estados Unidos, ele se encontra

mais uma vez escrevendo (tristemente) acerca de um

tema “sobre o qual grandes almas já disseram grandes

palavras”.35 O tema da raça não perde o interesse para

Dubois pelas mesmas razões que o impeliram a escrever

sobre o assunto pela primeira vez — o problema sempre

presente da divisão entre cores. O “estranho significado

de ser negro” no início do século XX, quando Dubois

escrevia, nos seguiu até o século XXI. O “estranho

significado” de ser negro neste milênio continua a se

referir, em partes, ao “problema da divisão entre cores”

(ao contrário das proclamações recentes a respeito de

uma sociedade pós-racial). Trata-se de um questão ainda

exacerbada pelo “sentido de sempre olhar para si

mesmo por meio dos olhos de outros, de medir a própria

alma pela fita métrica de um mundo que o olha com

divertido desdém e pena”.36 Para o historiador de cinema

Thomas Cripps, os filmes de Hollywood, “desde o início”,

tiveram um papel vital em aguçar a distinção da linha de

cor, enquanto trabalhavam de maneira efetiva para

espalhar as crenças raciais e as angústias da

sociedade.37 Este livro também leva em conta um

número de “-ismos”. Ele interroga as consequências do

racismo, machismo, classismo, separatismo,

heterossexismo, noções de masculino e masculinidade,

assim como de feminino e feminilidade. As notórias

estudiosas feministas Patricia Hill Collins e bell hooks

exigem que entremos em sintonia com as intersecções e

interconexões entre discursos dominantes sobre raça,

classe, gênero e sexualidades. Assim sendo, este é um

projeto de viés negro/feminista no qual os negros são

identificados como sujeitos, e não apenas como objetos

(o que também é o caso em muitos destes filmes); a

realidade histórica da negritude de acordo com os filmes

é definida e exposta; e a história do filme negro de terror

é contada de um vantajoso ponto de empoderamento e

com o objetivo de elevar a consciência.38

Este livro é também uma extensão do ensaio “Her

Body, Himself: Gender in the Slasher Film”,39 de Clover, e

da obra de Pinedo, que, em Recreational Terror: Women

and the Pleasures of Horror Film Viewing,40 argumenta

que há mais nos filmes de terror do que misoginia,

violência e olhares voyeurísticos. Embora esses e outros

casos problemáticos de “-ismos” sejam encontrados nos

filmes, este livro argumenta que também existem

oportunidades — ainda que não haja muito esforço —

dentro dos filmes para perturbar ou eviscerar nossas

visões dominantes e presunçosas acerca do lugar de

cada um no mundo. Questões perturbadoras de mácula,

escuridão e bufonaria não são as únicas intenções deste

livro. Em vez disso, o terror também tem sido um meio

capaz de tomar todos os tópicos de empoderamento e

revolução para reescrever os lugares do heroísmo e da

maldade. “Embora os paralelos diretos entre as forças

sociais e a cultura popular sejam arriscados, na melhor

das hipóteses”, estão presentes aqui dois entendimentos

distintos a respeito do funcionamento da participação

negra nos filmes de terror.41 Na primeira instância, os

negros têm sido mostrados como deficientes — infantis,

contaminosos, situados nas esferas mais baixas da

escala socioeconômica, servindo de metáfora e como

catalizadores do mal, e demonizados, ainda que nem

sempre tenham sido escalados, propriamente, no papel

do diabo. No segundo momento, este livro trabalha para

revelar como o gênero do terror tem o potencial de

desmitificar representações onerosas dos afro-

estadunidenses, que são calcadas em, e derivadas de,

um tipo de “menestrel do fim do século”.42 Ao contrário,

a negritude pode ser tão madura, temente a Deus e

resistente ao mal, inteira e completa, sábia e antiga,

totalmente engajada contra o mal, e estar presente no

centro ou nas cercanias das edificações de bondade.

UM SÉCULO DE HORROR NEGRO

O capítulo 1, “O nascimento do bicho-papão negro:

pré-1930”, começa com os filmes mudos e os curtas

“antropológicos” como Native Woman Washing a Negro

Baby in Nassau, de 1895, para situar como os negros

eram representados e a negritude era percebida nos

primeiros anos do cinema. Este capítulo descreve de que

maneira filmes iniciais (usando a pintura facial

blackface), como A nigg*r in the Woodpile, de 1904,

eram apresentados como curtas humorísticos para a

população não negra, mas também podiam ser

interpretados como horror por causa de suas

representações de ataques violentos e criminosos contra

as comunidades negras. Esses filmes não apenas

refletem as sensibilidades do tempo, mas também

apresentam lições devastadoras acerca da hierarquia

racial e supremacia branca na virada do século XX. O

capítulo também examina o uso de convenções do horror

por parte de inovadores do cinema como George Méliès,

um cineasta e ilusionista que apresentou um dos

primeiros casos de filmes de terror “com negros”, e D.W.

Griffith, um diretor de cinema que ofereceu um dos mais

duradouros e pérfidos entendimentos dos negros como,

literalmente, bêtes noires, ou feras negras. Essa era do

cinema também é notável por sua contribuição seminal à

mídia do entretenimento pelos cineastas negros

pioneiros do país, os quais buscavam desafiar as

miríades de discursos danosos que igualavam a

negritude à maldade.

Esse capítulo revela que cineastas negros como John

W. Noble e Oscar Micheaux, por meio de Deus e a

humanidade (1918) e Nos limites dos portões (1920),

respectivamente, trabalharam para combater as imagens

racistas ao apresentarem negros nas telas como figuras

desenvolvidas e complexas.

O capítulo 2, “Febre da selva — um romance de

horror: os anos 1930”, revela a fascinação do terror por

figuras de primatas predadores, assim como sua

tendência narrativa problemática de identificar negros e

macacos como inseparáveis na escala evolutiva. Negros

e primatas nesses filmes de terror “com negros” são

ligados, como alguns já observaram em relação à

representação de King Kong (1933). Também, durante

esse período, eles estão explicitamente (de forma literal

e figurativa) unidos pela biologia — quer dizer, negros e

primatas são apresentados procriando (bestialidade),

produzindo, dessa maneira, a cria de negros/macacos

que são indistinguíveis em sua primitividade. O capítulo

,

então se dirige para a ilha de Hispaniola, e para o Haiti. O

país viu trabalhadores negros escravizados trazerem

práticas culturais que eram vistas como estrangeiras na

melhor das hipóteses, e deficitárias na pior delas, pelos

colonizadores franceses, espanhóis, norte-americanos e

britânicos. Práticas e religiosidade de matriz africanas

foram exotizadas de forma imagética e distorcidas

durante essa década em filmes seminais como Zumbi

branco (1932).

No terceiro capítulo, “Bandidos aterrorizantes e

miseráveis menestréis: os anos 1940”, eu examino a

transição que os filmes de terror fazem ao exibir os

negros como símbolos perigosamente mortais do mal

(por exemplo, os malignos praticantes de vodu) para

mostrá-los como um povo digno de ser alvo de risadas e

ridicularizações. Explorando a presença e o uso de

negros como alívio cômico no terror, o capítulo foca nas

contribuições de atores como Willie “Sleep ’n’ Eat” Best e

Mantan Moreland e suas performances influenciadas

pelos shows de menestréis (por exemplo, O rei dos

zumbis [1941]). Em seguida, o capítulo se atenta à

qualidade crescente e poderosa dos “filmes negros” de

terror. Esses filmes revelam uma confiança em contos

moralizantes que definem a imoralidade como uma porta

ao mal sobrenatural. Os filmes de Spencer Williams (O

sangue de Jesus [1941]), por exemplo, são usados para

ilustrar como o monstruoso é definido quando criadores

(conscientes de raça) estão no controle.

O capítulo 4, “Invisibilidade negra, ciência branca e

uma noite com Ben: os anos 1950-1960”, conta a história

de como Hollywood mudou o foco de sua atenção dos

males sobrenaturais para os males tecnológicos. Tem

início a Era Atômica e, com ela, surgem temas

assustadores que dão conta de como a ciência e a

tecnologia se perdem quando a experimentação e a

descoberta não são supervisionadas. Uma vez que os

norte-americanos achavam que os laboratórios eram o

berço das coisas mais terríveis (como a bomba de fusão),

Hollywood considerou que esses espaços de realizações

intelectuais e inventivas estavam fora do alcance dos

negros (isto é, na imaginação da mídia, os negros não

poderiam ser eruditos analíticos). Como resultado, os

negros foram omitidos do gênero ou relegados aos

papéis coadjuvantes de lanches para insetos mutantes.

Monster from Green Hell (1957) é a epítome desse

modismo. Nesse capítulo também detalho a grande

significância cultural do clássico cult A noite dos mortos-

vivos (1968), do diretor George Romero, um filme que

falou direta e abertamente sobre os problemas sociais e

o clima racial dos Estados Unidos nos anos 1960.

Os negros voltam aos filmes de terror querendo

vingança (trocadilho intencional), conforme detalhado no

capítulo 5, “Grite, branquelo, grite — retribuição,

mulheres duronas e carnalidade: os anos 1970”. Nele, eu

aponto o retorno dos negros para o terror, tanto nos

“filmes negros” de terror quanto nos filmes de terror

“com negros”, por meio de um fluxo de filmes oferecidos,

sem nenhuma surpresa, durante a ascensão do

movimento Black Power. Os dois tipos de filmes foram

profundamente influenciados por esses tempos de

nacionalismo negro, bem como pela duradoura e gráfica

“guerra televisionada” do Vietnã e a violência nacional

(assassinatos e revoltas). Nesse capítulo, eu detalho

filmes que são notáveis por suas ideologias contrárias à

assimilação, temas de revolução e vingança, e

“resistência” heroica, assim como mulheres negras

resilientes que derrotam o monstro e permanecem vivas,

prontas para vencer outro dia. Eu também observo que o

vodu é retomado nesses filmes como uma arma

poderosa contra o racismo (Os gritos de Blácula [1973] e

A vingança dos mortos [1974]). Os filmes de terror da

década de 1970 também não escapam da rotulação

“blaxploitation” — a predominância de filmes financeira e

culturalmente exploradores que exibiam a negritude

durante aquela década. Aqui, filmes da era blaxploitation

frequentemente empregavam a noção de

empoderamento negro por meio da revolução violenta

(Bem-vindo de volta, irmão Charles [1975]), enquanto

apresentavam simultaneamente narrativas contra os

direitos humanos que eram alternadamente

heterossexistas e hom*ofóbicas, hiper-masculinas e

misóginas. Também é possível notar no capítulo que,

embora houvesse muitos filmes de terror contendo

negritude, essas produções foram derivadas de clássicos

— Blácula (1972), Blackenstein (1973), e Monstro sem

alma (1976), todos tomavam emprestado dos filmes de

Drácula, Frankenstein e O médico e o monstro.

O capítulo 6, “Nós sempre morremos primeiro —

invisibilidade, segregação racial econômica e o sacrifício

voluntário: os anos 1980”, revela um declínio dos temas

cinematográficos inspirados pelo movimento Black Power

que eram comuns nos anos 1970. Na década de 1980,

numa reversão notável, os negros iniciam uma relação

de apoio com brancos (monstruosos), na qual exibem um

sistema de lealdade e confiança que geralmente é

desproporcional e unilateral. Notavelmente, essa

lealdade é medida pelo sacrifício extremo do negro —

que entrega a própria vida (por exemplo, O iluminado

[1980]). Essa tendência de representação do

autossacrifício negro e devoção aos brancos aparece de

forma mais proeminente nos filmes de terror “com

negros”. Ou seja, a negritude é mais valiosa quando se

submete aos sistemas de valores e ideologias de uma

(estereotipicamente monolítica) branquitude. Nesse

capítulo, eu também detalho como a década de 1980

gentrifica e segrega sua branquitude — conduzindo os

monstros brancos e presas para os subúrbios, lugares

considerados inacessíveis para os negros. Esses lugares

incluem paisagens rurais ou suburbanas como a Elm

Street, Haddonville, Illinois e o Acampamento Crystal

Lake, representados em A hora do pesadelo (1984),

Halloween: a noite do terror (1978) e Sexta-feira 13

(1980), respectivamente. Finalmente, nesse capítulo, eu

aponto o retorno do “curta” de terror com Michael

Jackson (Thriller [1983]).

O capítulo 7, “Estamos de volta! A vingança e o

terreno urbano: os anos 1990”, saúda o retorno dos

“filmes negros” de terror, definidos pela reintrodução da

subjetividade negra autônoma e o reconhecimento de

personagens resilientes e empoderados — que

representam os novos filmes raciais. Esse capítulo

descreve como a negritude é, mais uma vez, exibida

como um todo completo, diverso e complexo, e,

portanto, vista em situações e papéis de terror que foram

amplamente elusivos aos negros ao longo das décadas. A

mais notável entre essas produções é Def by Temptation

(1990), que lembra as histórias morais de Spencer

Williams nos anos 1940. Os filmes negros de terror da

década de 1990 também ofereceram uma inversão única

dos papéis de maioria/ minoria racial. Se os brancos

eram sequer apresentados, a eles eram destinados os

papéis de coadjuvantes ou alívios cômicos

incompetentes. Durante os anos 1990, particularmente

em “filmes negros” de terror, a branquitude se tornou o

símbolo deficitário. Nesses filmes, há uma

autoconsciência narrativa que deixa evidente para o

público que a perturbação e a inversão dos tipos são

propositais — parte vingança, parte reparação forçada.

Isso fica mais óbvio no filme Contos macabros (1995), do

diretor Rusty Cundieff, no qual ele apresenta histórias

morais que dão conta da preservação e salvação do

“gueto” — enclaves urbanos negros. No fim das contas,

essa era exibe um período no qual a sobrevivência de

personagens negros e/ou o seu desaparecimento não

cresce nem diminui de acordo com a vontade e os

favores de não negros. Os filmes dessa época também

apresentam as batalhas entre o bem e o mal

acontecendo dentro dos confins dos centros urbanos

predominantemente negros e da classe baixa

trabalhadora. O interior das cidades é tão assustador nos

anos de 1990 que entidades estranhas de todos os tipos,

como o Predador em O predador 2: a caçada continua

(1990) e as crianças de Colheita maldita 3:

,

a colheita

urbana (1995), decidem fazer uma visita aos centros

urbanos.

Eu termino o livro com “Capturando alguns Zzzzzs —

os negroz e o terror no século XXI”. Aqui eu apresento

uma análise focando amplamente em “filmes negros” de

terror que são inspirados pela cultura hip-hop. Esse

capítulo detalha a (potencialmente) problemática

exaltação da blaxploitation em filmes de cineastas

negros, como Bones: o anjo das trevas (2001), dirigido

por Ernest Dickerson e estrelado pelo rapper e ator

Snoop Dogg. Esses “filmes negros” de terror do novo

milênio continuam a apresentar uma aliança espacial

com o gueto como na década de 1990. Contudo, nos

anos 2000, uma explicação racional para tal foco

geográfico é a credibilidade histórica e estética que

lugares do tipo prometem. Filmes que têm a geração hip-

hop como alvo prevalecem de forma quantitativa nesse

período (por exemplo, Bloodz vs. Wolvez [2006]) e são,

de forma bem literal, embalados por batidas do hip-hop

(Now Eat [2000]).

Não há falta de “filmes negros” de terror nesse

período, e alguns deles evidenciam grande imaginação e

criatividade, enquanto outros são banais graças à

proliferação de filmes underground de baixo orçamento

que miram no grande mercado em crescimento direto-

para-DVD (como Dream House [2006]). As possibilidades

de liberdade do meio comercial estabelecido e as

possibilidades alternativas de distribuição são

consideradas. Eu identifico empresas de produção de

filmes como a Maverick Entertainment como realizadoras

independentes e inovadoras da indústria, que estão

fazendo e distribuindo filmes negros de terror de

qualidade. Esse capítulo também apresenta uma

discussão final provocativa sobre a linha que entremeia

os capítulos anteriores, dando proeminência aos pontos

que trabalham para responder às difíceis perguntas: O

que o terror significa para a negritude? E o que a

negritude significa para o terror?

O filme de terror é fascinante, ainda que apenas pelo

fato de se vangloriar por chegar de fininho perto do tabu,

ao mesmo tempo que confunde nossas noções de bem e

mal, monstruoso e divino, sagrado e profano. É uma das

formas mais intrépidas de entretenimento em seu

escrutínio da nossa humanidade e do nosso mundo

social. Eu espero sinceramente que Horror Noire: A

Representação Negra no Cinema de Terror não seja

considerado a palavra final em relação à contribuição

negra aos filmes de terror. Pelo contrário, minha intenção

e esperança é iniciar um debate engajado, provocar

divergências incríveis e engatilhar investigações ainda

mais detalhadas e exatas.

* O livro Pensamento Feminista Negro, da socióloga Patricia Hill

Collins (Boitempo, 2019), fala a respeito das imagens de controle

como uma representação específica de gênero para pessoas negras

que se articula a partir de padrões estabelecidos no interior da

cultura ocidental branca eurocêntrica. As imagens de controle são

diferentes de estereótipos por serem manipuladas dentro dos

sistemas de poder e controlam o comportamento e os corpos de

mulheres negras, criando obstáculos intransponíveis nos processos

de subjetivação, autonomia e e exercício da cidadania destas

mulheres. [NE]

HORROR

NOIRE

PRÉ-1930

O NASCIMENTO DO BICHO-PAPÃO

NEGRO NO IMAGINÁRIO

Você só precisa procurar “negro” no

Dicionário Oxford da Língua Inglesa para

ver a gama de associações estabelecidas

no século XVI; a palavra é usada como

sinônimo para, entre outras coisas,

maligno, sinistro, cruel, triste etc. Ainda

mais revelador, “homem negro” podia

fazer referência tanto a um Preto quanto

ao Diabo. — LIVELY (14)1

Em meados de 1800, os homens brancos com ocupações

tão diversas quanto cientistas, fabricantes de óculos e

mágicos, começavam a explorar os limites tecnológicos

dos filmes e a usar suas habilidades de contar histórias.2

Na Europa, os cineastas provavam que qualquer coisa

que saísse da imaginação deles podia ser transposta

para os filmes. Isso incluía dar à luz (possivelmente) ao

primeiro filme de terror propriamente dito — um curta

mudo de dois minutos chamado O solar do diabo,

apresentado numa noite de Natal de 1896 no Théâtre

Robert-Houdin em Paris pelo mágico/ator de teatro

francês Georges Méliès:

Um grande morcego voa para dentro de um

castelo medieval. Circulando lentamente, ele

bate suas asas monstruosas e, de repente, se

transforma em Mefistófeles. Conjurando um

caldeirão, o demônio produz esqueletos,

fantasmas e bruxas do conteúdo borbulhante

antes que um dos cavaleiros vindos do

submundo erga um crucifixo e Satanás

desapareça em uma lufada de fumaça.3

Era a época dos filmes mudos (fim de 1800 até o final da

década de 1920), um período em que a imagem em

movimento ainda não podia ser unida a um sistema de

som sincronizado para a reprodução em massa e

exibição nos cinemas. Era também o período em que ser

um cineasta significava ter acesso ao equipamento

necessário (geralmente experimental, de invenção

própria) para capturar uma série de imagens paradas e

fazê-las se movimentar (por exemplo, os zootropos ou

“lanternas mágicas”) ou possuir a capacidade de

capturar imagens usando uma câmera de filme.4 Os

diretores criaram as chamadas “peças cinematográficas”

(photoplays), que em sua maioria duravam meros

minutos ou segundos inicialmente, e, dessa forma, seus

filmes foram apelidados de “curtas”. Os filmes,

inicialmente, eram assistidos por meio de máquinas

como o cinetoscópio, que acomodava um espectador por

vez. Contudo, o avanço na tecnologia de filmes evoluiu

rapidamente e a projeção de imagens em movimento

para grandes audiências pagantes foi alcançada em

1893. Embora mudos, não era incomum que os filmes

desse período fossem acompanhados por música

orquestral ao vivo e efeitos sonoros. “Intertítulos”,

imagens de textos escritos ou diálogos transcritos, eram

inseridos nos filmes para detalhar pontos da história

enquanto os atores pantominavam suas falas. Em 1926 o

primeiro filme com som pré-gravado e sincronizado foi

lançado.5 Em 1927, O cantor de jazz incluía música, sons

e, significativamente, diálogos. Daí em diante, os “filmes

sonoros” se estabeleceram.6

Nos primeiros anos do cinema, os negros eram

representados por brancos, que encenavam estereótipos

racistas usando a pintura blackface. Um dos primeiros

tratamentos conhecidos de negros naquilo que pode ser

considerado um filme de terror propriamente dito

(embora o termo “terror” não fosse amplamente usado

na época) ocorreu no filme francês L’Omnibus des toqués

blancs et noirs (1901).7 O filme foi feito pelo mágico e

ilusionista Georges Méliès, também conhecido por suas

performances no teatro e aproximadamente quinhentos

curtas que incluem temas sobrenaturais e macabros. O

curta em questão é repleto de figuras fantasmagóricas

descritas da seguinte forma no catálogo de Méliès:

Um ônibus puxado por um extraordinário cavalo

mecânico é puxado por quatro pretos. O cavalo

chuta e irrita os pretos, que ao caírem se

transformam em palhaços brancos. Eles

começam a se estapear, e a cada tapa se

transformam em negros novamente. Chutando

uns aos outros, eles se tornam brancos de novo.

De repente todos eles viram um só preto

grande. Quando ele se recusa a pagar sua

passagem, o condutor incendia o ônibus e o

preto explode em mil pedaços.8

Os “pretos” do filme foram representados por atores

brancos com os rostos pintados de preto, que,

aparentemente, foram encarregados de mostrar a

violência iminente ao se cruzar limites raciais, as tensões

ao redor do baile de máscaras racial e, finalmente, o fim

brutal do metafórico fardo do homem branco com a

destruição do negro.

O público norte-americano dificilmente ficou de fora

das primeiras experiências do cinema. Uma referência

inicial de negros associados a temas assustadores data

de 1897, quando o estúdio norte-americano Biograph

lançou um curta, provavelmente uma comédia, com o

título ofensivo de Hallowe’en in Coontown [Halloween na

Cidade

,

dos Pretos Malandros], relacionando, assim, os

negros ao feriado assustador.9 Hallowe’en se uniu a

vários outros filmes de “pretos malandros”, como The

Wooing and Wedding of a Coon [O cortejo e o casamento

com um preto malandro] (1907) ou Coontown

Suffragettes [As sufragistas da Cidade dos Pretos

Malandros] (1914), nos quais os negros, representados

por brancos com pintura blackface, eram ridicularizados

de forma cômica. O curta Minstrels Battling in a Room

[Menestréis duelando em uma sala] (c. 1897-1900)

situava-se em local mais complexo. Aqui, homens e

mulheres negros (representados por homens brancos em

blackface) estão dentro de alguma espécie de clube

noturno onde as coisas começam a ficar pesadas. Os

“negros” chegam até mesmo a se voltarem contra um

branco.10 O destino dos negros no filme por duelarem

com um homem branco é desconhecido — mas na ficção

da época existem sérias consequências para negros que

atacam brancos. O estado deteriorado do filme

impossibilita uma conclusão acertada.11 Na verdade,

muitos filmes anteriores à década de 1950 foram

perdidos ou danificados de forma irrecuperável. A

deterioração de um filme pode ser atribuída à maneira

como foi feito — com o uso de nitratos altamente

inflamáveis. G. William Jones, no livro Black Cinema

Treasures: Lost and Found, detalha o problema:

O nitrato era usado universalmente em filmes de

35 mm até a Segunda Guerra Mundial. A

composição química do nitrato é muito próxima

da composição química da pólvora, e isso

acelerou a transição para um estoque de acetato

não inflamável para que o nitrato fosse usado na

guerra. […] porque o nitrato estocado tem a

tendência de se destruir. Primeiramente, esses

filmes ficam cobertos por uma camada fina de

poeira amarelada à medida que as bordas

começam a se partir. Então, as imagens

começam a grudar no rolo seguinte, de forma

que desenrolar o filme causa ainda mais danos

[…]. Por fim, o filme se torna uma mistura de

massas grudentas e semissólidas em uma poça

de poeira. Estimase que quase 50% da herança

cinematográfica pré-1950 esteja perdida para

sempre — a maioria por causa da decomposição

do nitrato.12

Alguns filmes realmente sobreviveram. Por exemplo, em

1898 os diretores Edwin S. Porter e George S. Fleming,

trabalhando sob os auspícios da Edison Manufacturing

Company, filmaram Shooting Captured Insurgents. Uma

filmagem real de quatro soldados brancos executando

quatro homens negros. Ao fazer isso, a companhia de

Edison talvez tenha produzido um dos dois curtas mais

horríficos dos Estados Unidos. O segundo é o curta

documental An Execution by Hanging, de 1898. A

produtora do filme, Biograph, saudou An Execution, que

registrava o enforcamento de um negro em uma prisão

de Jacksonville, na Flórida, como o único enforcamento

capturado em câmeras ao vivo. Butters descreve as

cenas como “explícitas” e “assombrosas”:

o carrasco ajusta um capuz sobre a cabeça do

prisioneiro. A forca é colocada em seu pescoço.

Depois que o homem é enforcado, seu corpo

treme e sacode por causa da tensão. A

afirmação nostálgica acerca da inocência do

cinema mudo é quebrada por esse filme. A

morte de um afro-americano é vista em cena

claramente. Seu crime nunca é anunciado; sua

punição é tudo que o espectador entende.13

Negros “de verdade”, e não brancos com a cara pintada,

eram vistos frequentemente em filmes mudos e

etnográficos com cenas de pessoas levando a vida

enquanto um branco “aventureiro”/cineasta

documentava as atividades delas. Contudo, essas

representações tinham pouco de real, pois serviam para

elencar os negros como os Outros — curiosidades e

estranhezas tão marcadamente diferentes dos brancos

que até os seus hábitos mais mundanos precisavam ser

documentados e exibidos como se os negros fossem

animais em um zoológico.* A filmagem parece, em

determinados momentos, ter sido feita à paisana, sem o

conhecimento de sua “estrela” negra, ou, em outros

momentos, os personagens dos filmes parecem dar

continuidade a suas atividades conscientes, e apesar, da

câmera apontada para eles. Em 1895, curtas como

Native Woman Coaling a Ship at St. Thomas, Native

Woman Washing a Negro Baby in Nassau e Native

Woman Washing Clothes at St. Vincent apresentavam

negros em suas rotinas, conforme a seleção do diretor.

Musser alerta para o fato de que essas imagens não

apresentavam “um tipo de inocência não racista e

primitiva”, já que estão longe de ser documentais.14

Essas perspectivas de negros como estranhos e

primitivos se tornariam algo constante no terror ao longo

do século seguinte, especialmente em filmes que

retratavam os negros como selvagens, nativos perigosos

(como em Lua negra [1934]).

Frequentemente, os filmes focavam em uma pequena

gama de atividades negras, muitas das quais eram

preparadas pelos cineastas. Por exemplo, houve o filme

Watermelon Contest (1895), estrelando um grupo de

homens negros incitados a competir um com o outro

para ver quem acabava primeiro com um enorme pedaço

de melancia. Edison (1898) e o imigrante alemão

Sigmund Lubin (1903) produziram filmes com o nome de

Buck Dance. Lubin, ao descrever sua versão, afirmou que

o filme continha “um bando esfumaçado dançando por

causa de sua melancia favorita”.15 Estranhamente, os

filmes do início do século XX diziam muito sobre a forma

como os cineastas brancos eram obcecados por aquilo

que julgavam ser inerente aos negros — melancia e

galinhas (por exemplo, Watermelon Feast [1903] e Who

Said Chicken? [c. 1910]). Ao longo das décadas

seguintes, o terror iria se apropriar de tais estereótipos,

usando o tal amor dos negros por melancia e galinhas

como uma grande distração dos monstros que os

perseguiam. Para ilustrar, anos mais tarde, na comédia

de terror Os “anjos” no castelo misterioso (1940), o

personagem negro Scruno (Ernest “Sunshine Sammy”

Morrison) para de tremer de medo de um fantasma por

tempo suficiente para cantarolar louvores a uma

melancia, bem como comê-la.

O mundo negro, de acordo com os primeiros curtas,

era bem definido em classe, status e contribuição. Os

negros eram vistos sempre na rua, e não em casa. Seus

trabalhos, quando tinham, eram sempre braçais.

Imagens íntimas da família negra eram sempre elusivas.

Lubin lançou In Zululand (1915), descrito como “humor

cartunesco”, no qual mulheres negras se vestem de

fantasma com o intuito de assustar uma parente para

que ela não se casasse com “um crioulo que não vale

nada”.16 O filme Hoodoo Ann (1916), de Lloyd Ingraham,

também possui uma trama de casamento. Uma mulher,

Ann (Mae Marsh), convoca sua empregada, Preta Cindy

(Madame Sul-Te-Wan), a ajudá-la a se livrar de uma

maldição para que o casamento dela seja “o funeral do

vodu”.17 O público não recebia nenhuma dica de que

existiam intelectuais negros como W.E.B. Du Bois, Booker

T. Washington, Ida B. Wells, James Weldon Johnson e

Nannie Helen Burroughs. Nesses curtas não haviam

poetas, políticos, jornalistas, doutores em Harvard,

presidentes de grêmios estudantis ou ativistas dos

direitos humanos. Ainda assim, talvez, uma ausência de

referências aos negros teria sido melhor do que a

alternativa, evidenciada, por exemplo, pela

representação do clero negro em A nigg*r in the

Woodpile, de 1904.

A nigg*r in the Woodpile não foi imbuído com os

tropos do gênero de terror. Contudo, pode ser

considerado horripilante do mesmo jeito. No filme, um

diácono negro (interpretado por um ator branco com

pintura blackface) é retratado como um ladrão frequente

da lenha de um fazendeiro branco. Esperando acabar

com o roubo, o fazendeiro substitui um toco de lenha por

gravetos de dinamite. Conforme esperado, o diácono

surge para roubar a lenha e, sem saber, pega os

explosivos. O diácono é exibido em sua volta para casa,

quando se detém para cumprimentar a esposa (um ator

branco com o rosto pintado de preto, contribuindo

também para o detrimento da mulher), que está

preparando comida na cozinha, e então coloca

,

a “lenha”

no fogão. A casa explode ao redor deles, e o que resta é

o casal, chamuscado pelo fogo, cambaleando por seu lar

em ruínas. Então, o fazendeiro branco chega juntamente

com um ajudante branco. Eles seguram o diácono e o

levam. Talvez os fazendeiros planejassem levar o diácono

para que as autoridades responsáveis cuidassem do caso

(como se explodir a casa de alguém já não fosse uma

punição suficiente); contudo, o contexto real de 1904 nos

impossibilita imaginar tal conclusão. Nesse período,

havia linchamentos desenfreados, e os supremacistas

brancos militantes aterrorizavam os negros.

Por boa parte do início de 1900, as qualidades

genéricas do terror permaneceram inexploradas. O

conceito de filme de “terror” não entrou no léxico

popular até a década de 1930. Contudo, os elementos

mais genéricos do terror podem ser vistos desde o início:

a inclusão do fantástico, batalhas entre o bem e o mal,

perturbação do cotidiano e da racionalidade, e, claro, a

invocação do medo. O modo como os negros

asseguraram o seu lugar no gênero e a natureza dessas

representações requer uma exploração dos momentos

iniciais do cinema norte-americano, quando a noção da

negritude como algo monstruoso foi introduzida.

Embora tais representações de negritude tivessem

sido conceituadas primeiramente fora do gênero do

terror, essas imagens deram uma grande contribuição

para o gênero e continuam, até mesmo hoje, a figurar de

forma proeminente na noção cinematográfica americana

do que é mais horrífico em nossa sociedade. Elas

funcionam como lembranças-chave do pouco valor

atribuído à vida negra e poderiam ser interpretadas

como horrorizantes. Butters nota que as ações

representadas em filmes como A nigg*r in the Woodpile

podem ser facilmente relevadas por alguns: “Alguém

pode argumentar que as representações violentas de

afro-estadunidenses eram apenas parte da tradição de

humor pastelão que dominava as representações iniciais

nas telas. Comédia pastelão […] envolve humor cruel e

violência.”18 No entanto, o filme também explora as

ansiedades acerca dos negros e os estereótipos de

criminalidade negra para evocar os medos dos brancos

em relação à presença inquietante de “crioulos” entre

eles.19

O cineasta Lubin, conhecido pela sua série de filmes

com Sambo e Rastus, introduzidos por volta de 1909 e

repletos de estereótipos, uniu terror e pastelão com

atores negros de verdade para lançar um dos primeiros

“filmes negros” de terror. A comédia de terror The

Undertaker’s Daughter, dirigida por Willard Louis, é um

curta mudo estrelando John Edwards e Mattie Edwards.

De acordo com o material publicitário de Lubin, The

Undertaker’s Daughter contava a seguinte história:

Mattie Cook, a filha do coveiro, ama John Scott,

que não tem emprego, mas seu pai quer que ela

se case com Sime Sloan, que tem um emprego,

e Mattie precisa usar todo o seu poder de

persuasão para dobrar o pai, mas ela está à

altura do desafio. Ela se livra de Sime e de Bime

[outros pretendentes] ao prometer se casar com

um deles caso provem seu amor por ela. Um

deles precisa dormir em um dos caixões do pai e

outro deve ficar sentado perto dele a noite

inteira. [Com a ajuda de barulhos e de John, ela

se livra deles. ] Cheios de medo, eles correm

para uma reunião domiciliar presidida pelo pai,

que leva alguns tombos. Ele finalmente decide

que John é o mais indicado e pode ajudar a

tomar conta do negócio.20

As estrelas do filme, John e Mattie, que eram parte da

“companhia de estoque de negros da seção de comédia

da Companhia Lubin”, apareceriam também em dois

filmes do diretor negro Oscar Micheaux.21

D.W. GRIFFITH E O NASCIMENTO DE UMA

NAÇÃO: TORNANDO OS NEGROS

ASSUSTADORES

É o racista que cria o seu inferior.

— Fanon (93)22

D.W. (David Llewelyn Wark) Griffith nasceu em 1875 em La Grange,

Kentucky, filho de um soldado do Exército Confederado que se tornou

legislador estadual. Durante a Reconstrução, em 1885, enquanto a família

de Griffith passava por dificuldades financeiras significativas, o patriarca da

família morreu. Depois de abandonar a escola para ajudar no sustento da

família, Griffith acabou voltando sua atenção para o objetivo de se tornar um

autor de peças de teatro. Tanto o teatro quanto o cinema eram opções de

carreira aceitáveis para Griffith, e ele tentou escrever e atuar tanto para o

teatro quanto para as telas. Griffith era considerado um escritor sem muita

relevância, e seus roteiros eram frequentemente rejeitados. Em 1907,

depois de se mudar para a Califórnia, Griffith falhou em vender seus roteiros

para Edwin Porter, o famoso diretor da (Thomas) Edison Manufacturing. Em

1908, Griffith procurou Sigmund Lubin para pedir um emprego. A inscrição

de Griffith foi rejeitada. Griffith então foi para Nova York, conseguindo

finalmente um trabalho de atuação com a Biograph Company em 1908.

Pouco depois, Griffith recebeu a chance de dirigir na Biograph, e ao longo

dos cinco anos seguintes ele fez a incrível soma de 450 curtas onde

aprimorou suas habilidades de câmera e edição, incluindo técnicas como

close-ups e edição paralela. Em 1913, como um diretor produtivo e de

sucesso, Griffith saiu da Biograph para abrir o seu Reliance-Majestic Studios.

Foi por meio de seu estúdio que Griffith produziu O nascimento de uma

nação.

O nascimento de uma nação (1915), de D.W. Griffith,

não exibiu suas habilidades de escrita ou a falta delas. O

roteiro do filme foi baseado principalmente em dois livros

pró-supremacia branca e de temática terrorista escritos

por Thomas Dixon Jr., The Leopard’s Spots: A Romance of

the White Man’s Burden (1901) e The Clansman: An

Historical Romance of the Ku Klux Klan (1905). Dixon era

descrito de maneira favorável em uma revista como

“pregador, palestrante, escritor e cavalheiro sulista

conhecido há muito pela seriedade, podemos chamar de

fanatismo, com que ele lida com o […] problema

preto”.23

Griffith pagou Dixon alguns milhares de dólares, e

uma porção dos lucros, em troca de suas histórias e

opiniões. Em resposta, Dixon também passou a integrar

a promoção do filme. Foi Dixon que fez o filme ser

exibido na Casa Branca para o presidente Woodrow

Wilson, que comentou sobre o filme, em partes: “E a

minha tristeza é que, terrivelmente, é tudo verdade”.24

Juntos, Griffith e Dixon arrecadaram milhões com a

produção.

O NASCIMENTO DO BICHO-PAPÃO NEGRO

O filme O nascimento de uma nação conta a história de

duas famílias — os sulistas Camerons e os nortistas

Stonemans — durante a Guerra Civil e o período da

Reconstrução. O enredo do filme, com quase três horas,

é bem direto. A primeira parte conta a versão de Griffith

da história do fim da Guerra Civil e do assassinato do

presidente Abraham Lincoln. A segunda trata a respeito

de “raça e vingança”, com a união entre os sulistas

brancos, nortistas de bom coração, e os servos negros

fiéis.25

Os Camerons vivem na cidade de Piedmont e são

antigos donos de escravos. Trata-se de uma família

distinta, cheia de heróis de guerra e mulheres

apaixonadas e compassivas. Os membros da família

Stoneman são seus amigos da Pensilvânia, liderados pelo

patriarca da família, o deputado Austin Stoneman (Ralph

Lewis). Stoneman é um abolicionista que, apesar de um

político influente, também é retratado como uma figura

fraca e emasculada — é doente, não tem uma esposa,

manca por conta de um pé torto e é exibido como um

integracionista que foi ideologicamente enganado pelos

negros. A família Cameron possui três filhos que se

juntam ao Exército Confederado. Dois dos filhos de

Cameron são mortos na Guerra Civil. Um deles, Ben

(Henry Walthall), se torna um herói de guerra e é

apelidado de “o Coronelzinho”. O Coronelzinho (como ele

passa a ser chamado pelo resto do filme) é enviado a um

hospital no norte para se recuperar dos ferimentos, onde

conhece Elsie Stoneman (Lillian Gish) e se apaixona. A

família Stoneman possui dois filhos que se juntam à

União. Um é morto e o outro

,

se apaixona por Margaret

Cameron (Miriam Cooper), que ele conhece durante uma

visita à casa da família Cameron. Políticos progressistas

do norte, como Stoneman, são retratados como

descontentes em relação ao sul por suas tentativas de se

separar do resto do país. Stoneman até importa para

Piedmont um “mulato” chamado Silas Lynch (George

Siegmann) para ajudar no trabalho de integração.

De acordo com o historiador de cinema Ed Guerrero,

Nascimento foi o primeiro filme de longa duração feito

nos Estados Unidos a estabelecer o “padrão técnico e

narrativo para a indústria” enquanto continuava a

perpetuar a tendência uniforme em Hollywood de

desvalorizar os afro-estadunidenses como “bufões,

servos e um tipo de subordinados”.26 Os personagens

negros principais em Nascimento são representados por

brancos com pintura blackface. Eles incluem: Gus (Walter

Long), um soldado da União que é linchado pela Ku Klux

Klan por dar em cima de Flora “Irmãzinha” Cameron

(Mae Marsh), uma garotinha; Silas Lynch, um político

corrupto; Lydia (Mary Alden), uma “mulata” maldosa que

sequestra e amarra Elsie porque Lynch deseja a mulher

branca; e Mammy (Jennie Lee) e Tom (Thomas Wilson),

dois ex-escravizados que permanecem fiéis aos Cameron

e continuam a trabalhar como servos. Esses personagens

são unidos a vários outros, alguns interpretados por

atores negros de verdade, e retratam políticos corruptos,

ladrões, supostos estupradores, incendiadores,

trapaceiros e (pretensos) assassinos.

A definição dos negros e de negritude em O

nascimento de uma nação é extremamente

problemática. A introdução inicial dos espectadores à

negritude e a prontidão em associar a cultura negra com

uma monstruosidade surgem quando soldados negros da

União chegam na cidade de Piedmont como uma gangue

de ladrões, saqueando e levando a destruição, conforme

“entram na cidade como monstros”, atacando pessoas

brancas inocentes.27 Eles aparecem em contraste com os

soldados confederados brancos, que se encontram

sitiados e cansados da guerra, mas também são

honestos e estão decididos a proteger suas terras

(brancas) e famílias (brancas). Enquanto a violência da

Guerra Civil era aterrorizante, seu verdadeiro horror, de

acordo com o filme, surgiu depois, na forma de homens

negros livres e incontidos. Por exemplo, em uma cena, o

Coronelzinho está numa calçada. Os negros abrem

caminho de forma violenta e o Coronelzinho é forçado a

sair aos pulos da calçada para não se ferir. Sobre esse

espetáculo, Lynch afirma: “Esta calçada pertence a nós

tanto quanto pertence a você, coronel Cameron”.

Contudo, à medida que Griffith exibe a cena, não há

nenhuma esperança de que alguém julgue o

comportamento dos homens negros ou a reação de

Lynch como equitativos. De tal forma, Griffith retrata os

negros como lobos dominando uma ovelha.

Se os negros são os lobos no filme de Griffith, eles não

são avessos ao canibalismo. Em uma cena, quando

Mammy encontra o servo negro nortista da família

Stoneman, ela dá um chute no traseiro dele enquanto

diz: “Us pretu livri du norti é tudu doido”. Em outra cena,

muito mais violenta, quando o leal (e submisso) Tom se

recusa a se bandear com os soldados contrabandistas da

União, eles amarram Tom pelos braços numa árvore e o

chicoteiam, evocando um poderoso simbolismo de

linchamento. Quando um homem branco tenta resgatar

Tom, ele é baleado pelos negros.

Os negros também apreciam galinhas e bebida, como

Griffith retrata em uma cena chamada “A revolta no

Master Hall: o partido preto no controle da câmara dos

representantes estaduais”. A cena, primeiramente, tem o

objetivo de ser interpretada como tragicômica. Uma série

de homens negros (interpretados por atores negros) são

reunidos em uma legislatura; eles começam a se

comportar mal — um deles leva um pedaço de galinha

escondido, outro tira o sapato e coloca o pé sujo em cima

da mesa, outro bebe sorrateiramente de uma garrafa. Os

homens devem ser vistos como ineptos dignos de pena.

Isto é, até que aprovam uma legislação que autoriza o

casamento inter-racial. Com os homens brancos e

mulheres assistindo à votação do alto da seção branca

numa sacada (em um tipo de segregacionismo reverso

na representação de Griffith), os negros se viram para

olhar as mulheres brancas. A cena agora mostra os

negros menos interessados em carne de galinha e mais

animados com a carne das mulheres brancas.

Contudo, é na cena mais infame e chocante do filme,

“A colheita sombria”, que Griffith se esforça para

solidificar a ideia de que os negros são assustadores.

Gus, “o renegado”, como ele é chamado no filme, está

ansioso para tirar vantagem da sua recente liberdade e

da nova lei de casamento inter-racial. Ele se decide por

uma criança, a filha mais nova da família Cameron, a

“Irmãzinha”. A Irmãzinha é mostrada brincando sozinha

na floresta enquanto Gus a vigia. Por fim, ele se aproxima

e diz: “Sabe, eu sou um capitão agora e quero me

casar”, e toca no braço da garota. A perseguição começa

quando a Irmãzinha se desvencilha e corre em pânico.

Com Gus em seu encalço, a Irmãzinha adentra ainda

mais na floresta até que chega na beira de um precipício.

Enxergando Gus como um destino pior que a morte, a

Irmãzinha se joga. Pouco depois, em seu suspiro de

morte, a Irmãzinha revela para o Coronelzinho que Gus

fora o seu carrasco. Fica claro que Gus deve ser visto

como um negro predador sexual que ataca mulheres

brancas. No livro de Dixon, The Clansman, o estupro

realmente acontece, e não fica implícito como no filme,

com o predador sendo associado a um monstro: “as

garras negras da besta afundaram no pescoço macio e

branco”.28 O filme foi feito numa época em que o mero

olhar de um homem negro na direção de uma mulher

branca (“olho do estupro”) resultava em um linchamento.

O impacto dessas cenas racistas alojadas em um dos

filmes mais importantes dos Estados Unidos do ponto de

vista tecnológico é uma marca que não podemos apagar.

Até mesmo hoje representações negras são influenciadas

por aquelas criadas e popularizadas por Griffith (e Dixon).

A negritude foi efetivamente transformada, e o negro se

tornou uma das criaturas mais terríveis e temidas de

todas.

O ataque de Griffith contra a negritude não parou por

aí. Griffith continuou a usar o “mito da sexualidade

exacerbada do negro” e a ideia de que “todo negro

almeja uma mulher branca” por meio do personagem

Lynch.29 Quando Lynch faz mais do que tocar o braço de

uma branca, como Gus fez, ao ponto de sequestrar e

apalpar Elsie, não resta dúvida de que Griffith quis

indicar todos os negros (até mesmo os “mulatos”) como

estupradores perigosos. As ações de homens como Gus e

Lynch justificam a ascensão da Ku Klux Klan — “Irmãos,

esta bandeira tem a mancha vermelha do sangue de

uma mulher sulista, um sacrifício inestimável no altar de

uma civilização indignada” —, e o grupo de ódio não

desaponta quando lincha Gus e Lynch (fora de cena).

Bolge (1993) confirma que a construção que Griffith

fez do negro como uma fera foi proposital:

FIGURA 1.1 GUS ENCONTRA O SEU FIM PELAS MÃOS DA KKK EM O

NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO.

David W. Griffith Corp./Photofest

Os comentários de Lillian Gish na edição de

janeiro de 1937 da revista Stage atestam o fato

de que Griffith estava bem ciente do contraste e

que ele o usou para atiçar o público. Gish disse:

Um dia, enquanto ensaiávamos a cena em que o

homem de cor pega a menina do norte como um

gorila, meu cabelo, que era muito loiro, ficou

bem abaixo da minha cintura, e Griffith, vendo o

contraste entre as duas figuras, me deu o papel

de Elsie Stoneman.30

Apenas seis anos mais tarde, a organização pelos direitos

civis NAACP encarou o desafio de banir o filme. Dixon

driblou a NAACP e levou o filme até a Casa Branca para

exibi-lo ao presidente Wilson e sua família, assim como à

Suprema Corte e a membros do Congresso.31 Depois de

ver o filme, o presidente Wilson, um historiador, disse: “é

como se a história

,

tivesse sido escrita com um

relâmpago”.32 Com o apoio famoso do presidente, os

distribuidores cobraram uma entrada premium de 2

dólares para um público estimado em 3 milhões de

pessoas apenas em Nova York, ao longo do período de

onze meses e 6.266 exibições.33

Griffith não havia terminado de abusar

imageticamente dos negros. Em 1922 ele fez uma

comédia de horror com personagens negros com o título

Uma noite de terror, sobre uma casa mal-assombrada.

“Os personagens negros”, escreve Cripps, “eram

marcadamente bizarros. O personagem central, um

detetive improvável, era um ‘cafre, o terror negro da

gangue do contrabando’. Os outros papéis negros eram

interpretados por brancos com pintura blackface como os

lacaios dóceis de sempre, que passeavam pela

narrativa”.34 Peter Noble acrescenta isso à descrição

enquanto acusa Griffith:

Essa comédia é um exemplo digno de nota sobre

como um diretor imerso em preconceito contra

negros pode influenciar seu público. O

personagem negro em Uma noite de terror

[interpretado por um ator branco com o rosto

pintado] deu início a uma longa linha de

marionetes cinematográficos conhecidos, os

negros covardes cujos cabelos ficam brancos ou

somem quando encontram qualquer tipo de

perigo. Nós os conhecemos bem a esta altura;

eles têm medo do escuro, de trovoadas, de

armas de fogo, de animais, da polícia, e assim

por diante. […] Em O nascimento de uma nação

ele retratou o homem de cor com ódio, e sete

anos depois, em Uma noite de terror, ele o fez

com desdém.35

Apesar dos protestos contra os seus filmes, e de um

encontro desagradável com sua empregada negra — que

disse: “Me machucou, sr. David, ver o que você fez com o

meu povo” —, Griffith se recusou a reconhecer o dano

causado pelos seus filmes.36

GUS COMO O MONSTRO (DE FRANKENSTEIN)

Pegando uma frase emprestada de Carol Clover, autora

de Men, Women and Chain Saws: Gender in the Modern

Horror Film: “Mas onde, exatamente, está o terror

aqui?”.37 Para entender a racialização do negro como

terror em O nascimento de uma nação, é importante e

ilustrativo comparar a infame sequência “A colheita

sombria”, com Gus como o monstro que persegue a

garota branca e que resulta em sua morte, com uma

cena igualmente notável em um evidente filme de terror,

Frankenstein (1931), no qual o monstro mata uma garota

branca.38 Embora os filmes tenham surgido num

intervalo de quinze anos de diferença, que vai da era do

cinema mudo até a era do som, tal comparação é

apropriada, já que os dois filmes habilmente centram a

atenção do público em algo perigoso, acentuando e

significando a monstruosidade por meio da justaposição

de um triunvirato de pureza — branquitude, feminilidade

e infância. O que se torna central é a forma como esses

filmes tratam de maneira diferente os seus monstros e

como pedem que o público sinta algo por eles.

Em Frankenstein (não há negros nesse filme), um

jovem cientista médico, dr. Henry Frankenstein (Colin

Clive), recria um homem a partir de pedaços de corpos e

o anima com eletricidade. O dr. Frankenstein cria o

homem (daí em diante “o Monstro”) apesar dos protestos

de sua noiva, Elizabeth (Mae Clarke), e de seu antigo

professor, dr. Waldman (Edward Van Sloan). O culto e

iluminado dr. Frankenstein tem um ajudante, Fritz, a

quem falta tanto cultura quanto iluminação. Fritz (Dwight

Frye) é marcado como aberrante por meio de suas

deformidades (uma corcunda e cicatrizes faciais) e se

delicia de forma cruel ao torturar o Monstro (Boris

Karloff).

O Monstro está escondido em um porão no laboratório

de Frankenstein, mas não está a salvo de Fritz, que o

atormenta com uma tocha. Quando o medo do Monstro é

interpretado como fúria descontrolada, Frankenstein e

Waldman decidem que ele precisa ser restringido. O

Monstro então é confinado ao porão e acorrentado.

Enquanto está acorrentado, ele mais uma vez é

ameaçado por Fritz e o mata para se defender. Ao

descobrirem o assassinato, Frankenstein e Waldman

drogam o Monstro, e Waldman se prepara para

desmanchar a criatura. Quando Waldman está prestes a

dar início ao procedimento, o Monstro acorda e, em outro

momento de autopreservação, mata Waldman. O

Monstro escapa do confinamento do laboratório de

Frankenstein e sai para explorar o mundo. O Monstro

encontra Maria (Marilyn Harris), uma garotinha que está

brincando sozinha perto de um lago e o chama para

brincar com ela. A besta e a garota começam a brincar

de jogar flores no lago para vê-las flutuar. O Monstro,

pensando que todas as coisas bonitas flutuam, pega

Maria e a joga dentro do lago, descobrindo tarde demais

que havia cometido um erro mortal. A repreensão é

devastadora:

a Criatura não agiu por maldade. Ela erra em

lógica, mas não em sentimento. Suas ações são

a consequência natural de tentar descobrir como

deveria brincar com a menina. Ela queria tratá-

la tão delicadamente quanto havia tratado as

adoráveis flores da montanha. A menina morre,

e a criatura é condenada tanto pelo crime de ser

uma monstruosidade quanto por ser uma

assassina de crianças.39

O Monstro vai até a casa de Frankenstein e entra no

quarto de Elizabeth, onde ela fica assustada o suficiente

com sua aparência para gritar e desmaiar. Os gritos dela

fazem o Monstro fugir para o interior. Enquanto isso, o

pai camponês de Maria recupera o corpo dela e o leva

até a porta de Frankenstein, a quem ele culpa pela morte

da filha. O pai é seguido por uma turba intencionada a

destruir o Monstro. Nas cenas finais do filme, o Monstro é

cercado e encurralado em um velho moinho. O Monstro,

que está triste e perturbado com o entendimento em

relação ao que ele é, dirige sua raiva para Frankenstein.

O Monstro agarra o médico e o atira em direção a morte.

A multidão então incendeia o moinho, destruindo o

Monstro. O que tornou o Monstro tão único, e, dessa

forma, diferente dos “monstros” de O nascimento de

uma nação, como Gus e Lynch, foi a técnica narrativa de

exigir que a audiência simpatizasse com a fera e sua

difícil situação, pois “um monstro que odeia a própria

vida e contempla a existência com um olhar baixo exibe

paralelos perturbadores com humanos deprimidos”.40

Diferente do Monstro, Gus e Lynch estão longe de ser

personagens simpáticos. Seu dilema é a crença

arrogante de que tomar as coisas por meio da força,

assim como literalmente tomar uma mulher branca, está

ao alcance deles. Ainda pior, a “falha” de Gus e Lynch,

que serve para atrair a ira, é sua inabilidade de ver a

própria monstruosidade, ou negritude, como algo

problemático.

FIGURA 1.2 O MONSTRO E MARIA EM FRANKENSTEIN.

Universal/Photofest

A semelhança entre Gus, particularmente, e o Monstro

reside em seus corpos grotescos, que se tornam “pontos

de contradição”.41 O Monstro é uma atrocidade gigante

montada com partes de corpos. Sua carne tem cor de

cadáver e não possui vivacidade; ele ganhou vida por

meio de um choque elétrico, não tem nenhum sangue

pulsando em seu corpo morto-vivo e reanimado. E ainda

assim essa aberração da natureza não cria repulsa no

espectador, apenas pena. É o dr. Frankenstein, um tipo

de intelectual que, com seu complexo de Deus, deve ser

humilhado.

Gus se parece mais com um monstro. Seu uniforme é

sujo e rasgado. O próprio Gus tem a compleição escura e

às vezes parece mais rastejar do que andar de forma

ereta e orgulhosa como os homens da família Cameron

(ou até mesmo como o Monstro). Sua aparência

monstruosa é acentuada pelo uso de blackface. Como

resultado, os grandes olhos brancos de Gus parecem

selvagens e desvairados, sua pele tem um tom escuro

acinzentado e lamacento. Depois que a Irmãzinha se

mata em vez de “se casar” com Gus, ele assegura o seu

destino quando atira e mata um dos seus perseguidores

brancos. Embora o corpo do Monstro tenha a intenção de

ser igualmente problemático, seus olhos taciturnos lhe

dão uma marca de profundidade. O Monstro se torna

mais humano do que Gus jamais será, pois ele não mata

seus perseguidores

,

(a multidão de camponeses); em vez

disso, atormentado, ele mata seu criador — um símbolo

do homem e da ciência cometendo erros —, e assim

salva a humanidade de tal húbris.

Gus e o Monstro revelam horrores díspares, ainda que

ambos prometam “momentos particularmente intensos”

de nascimento, entrada, transformação e destruição.42

Ambos são retratados como crias de mentes

privilegiadas. O Monstro é criação do dr. Frankenstein, e

Gus e Lynch nasceram de um progressismo social que

deu errado. Tanto Frankenstein quanto Stoneman são

vistos como cientistas loucos embarcando em um

experimento social irracional e perigoso, ou, como

Butters coloca: “Dessa forma, assim como o dr.

Frankenstein cria o seu monstro sem entender

completamente o que está fazendo, Stoneman cria

Lynch”.43 A entrada de Gus, Lynch e do Monstro no

mundo revela que cada um deles, estejam cientes ou

não, possui uma dependência em relação ao seu mestre

(branco). O Monstro é infantil e vulnerável em sua

entrada. Ao contrário, durante a Reconstrução, Gus e

Lynch entram no mundo branco com seus poderes

incontidos e comportamentos sem limites. A

transformação em monstruosidade por parte do Monstro,

Gus e Lynch só acontece quando cada um deles está

completamente afastado de seus mestres. Mas apenas o

Monstro aprende lições importantes e se torna um novo

“homem” por causa delas. Mesmo que o Monstro tenha

cometido três assassinatos, tendo matado Fritz, o dr.

Waldeman e Maria, sua morte necessária é um ato de

misericórdia. De uma maneira importante, o Monstro não

é visto como monstruoso por conta da luxúria. Esse seria

o caso de Gus e Lynch, já que eles não confundem

garotinhas brancas com flores, mas as enxerga como

amantes em potencial. Como Williams nota, a marca

principal de um monstro é a sua diferença sexual — uma

aberração — em relação ao homem “normal”.44 Ainda

pior, Gus e Lynch não podem ser “normais”; em vez

disso, a tentativa deles de misturar raças é uma

transgressão sexual realçada como algo claramente

perigoso.

Não há, em Nascimento, uma tentativa de

responsabilizar Stoneman por sua criação. Na verdade,

quando Lynch olha de forma romântica para Elsie, a filha

de Stoneman, ele está condenado a ser destruído por

Stoneman, seu próprio criador. Ao fazer isso, Stoneman é

realocado dentro da branquitude, parecendo se libertar

de sua confiança errada nos negros, ou, até mesmo,

deixando seu estado de insanidade temporária. No fim,

não há negros em Nascimento dos quais sentir pena ou

com quem se identificar.

Ao tomar emprestados os livros de Dixon e Shelley,

tanto Nascimento quanto Frankenstein adotaram a

contribuição literária antiga do bom/virtuoso/iluminado

contra o mal/corrupto/escuro. Contudo, o alcance do

filme como mídia de massa, o apelo do cinema como

uma nova tecnologia e as imagens surpreendentes de

Nascimento conduziram as histórias racistas de Dixon a

novos patamares. Nascimento foi o primeiro filme a ser

exibido na Casa Branca. O filme tem sido creditado como

responsável por ciclos de ressurgimento do interesse

pela Ku Klux Klan.45 Já foi usado como peça de

propaganda e ferramenta de recrutamento de

movimentos de supremacia branca e grupos

semelhantes à Ku Klux Klan, os neo-confederados e os

neo-nazis.46 Nascimento foi homenageado pela

Biblioteca do Congresso com a sua inclusão no Registro

Nacional de Filmes (1992) e celebrado pelo Instituto

Americano de Cinema, que o colocou como o 44° filme

mais importante de todos os tempos. Em 2004, o popular

DJ e produtor musical afro-estadunidense DJ Spooky

começou uma turnê mundial para grandes públicos em

locais como o Lincoln Center (Nova York) e o Festival de

Viena, apresentando o seu “remix” do filme, que ele

batizou de O renascimento de uma nação do DJ Spooky. O

DJ Spooky colocou uma batida de hip-hop no filme e

inseriu gráficos coloridos.

Para que fique entendido, O nascimento de uma nação

não faz parte do gênero de terror. Ainda assim, o filme

inseriu e fixou na imaginação popular estadunidense um

personagem de terror por excelência para instigar o

medo. Ao apresentar Gus, assim como outros homens

negros, como malévolos, Nascimento tem a dúbia

distinção de introduzir o desprezível “macho brutal” no

cinema. O macho brutal é um desprezível homem negro,

ainda mais perigoso por seu foco implacável na maldade.

Não é possível ser racional com ele, pois ele é irracional.

O personagem é tão primitivo e básico que só pode ser

visto como animalesco. Donald Bogle traz uma famosa

discussão sobre o dano que Griffith causou ao apresentar

os homens negros como machos brutais: “Crioulos

sempre enormes e malvadões, supersexuais e selvagens,

violentos e loucos ao sonharem com carne branca.

Nenhum pecado é grande demais para o homem negro.

[…] Griffith investiu pesado na bestialidade de seus

vilões negros e usou isso para criar ódio”.47 E, de fato,

variações do tema continuaram a aparecer na mídia,

como o infame comercial político sobre as saídas da

prisão de Willie Horton (1988), no qual um negro

assassino e estuprador condenado é apresentado, e em

filmes como O mistério de Candyman (1992), no qual

homens negros exalando sexualidade mantêm mulheres

brancas como prisioneiras.

NEGROS ASSUMEM OS FILMES DE SUSTO

Em resposta ao Nascimento, com o objetivo de combater

os seus efeitos, filmes negros — ou seja, filmes

estrelando atores negros e apresentando histórias

negras, e (idealmente) feitos e distribuídos por negros —

começaram a aparecer “com força”48 imediatamente.

Cineastas negros anteciparam corretamente o poder das

representações de Griffith e não ficaram parados

enquanto sua raça e cultura eram maculadas em

imagens. Filmes negros foram produzidos em resposta ao

Nascimento. Por exemplo, George e Noble Johnson, por

meio da sua Lincoln Motion Picture Company, fundada no

verão de 1915, lançaram The Realization of a Negro’s

Ambition (1916) em um esforço para apresentar um

contraste positivo a representação dos negros em

Nascimento. Então veio a Frederick Douglass Film

Company, fundada em 1916 pelo dr. George Cannon e

pelo reverendo dr. W.S. Smith com o objetivo específico

de rebater os efeitos de O nascimento de uma nação. O

primeiro filme da empresa, The Colored American

Winning His Suit (1916), mostrava os afro-

estadunidenses como trabalhadores, e a habilidade que

possuíam de se ajudar era o tema dominante.

O aclamado escritor e cineasta Oscar Micheaux, por

meio da sua Micheaux Book and Film Company (1919),

lançou o filme Nos limites dos portões (1920). Portões é

mais memorável não apenas por sua tentativa de rebater

o épico de Griffith, mas por reimaginar a infame cena “A

colheita sombria”. Em Portões, uma mulher negra49 é

quem se vê perseguida por um homem branco que

deseja estuprá-la.

Um dos benefícios do aumento de histórias negras,

produzidas por negros ou não, foi a introdução de uma

gama de imagens negras diversas, apresentando

personagens complexos e multidimensionais, assim

como uma ampla variedade de narrativas, incluindo

filmes de susto. Por exemplo, a Unique Film Co. lançou

Shadowed by the Devil (1916), um “filme negro” de

terror com três rolos e um elenco totalmente negro. Devil

é um conto moral focado em três personagens — “o bom,

o mau e o feio”50 — e naquilo que significaria ser um

“bom homem [negro]”.51 O filme “contrasta as

características de três indivíduos — uma ‘princesa’

mimada, um homem possuído pelo diabo [precisamente],

e Everett, ‘um filho bom e trabalhador de pais pobres,

um jovem sério e quieto, um marido amoroso e […] pai

[que] mostra os traços de sua aprendizagem precoce’”.52

Por mais intrigante que o filme possa parecer, Devil veio

e foi tão rápido quanto a própria Unique, pois a empresa

lançou apenas mais um filme (que não era de terror)

antes de seu súbito desaparecimento. A escassez de

lançamentos da Unique não era uma coisa incomum, já

que “a vulnerabilidade econômica de companhias

cinematográficas,

,

fossem elas negras ou brancas, na era

dos filmes mudos significava que a maior parte delas só

tinha um ou dois filmes para mostrar”.53

Na verdade, as dificuldades econômicas encaradas

pelas companhias de cinema eram muito reais. Por

exemplo, Richard Norman, o proprietário branco da

Norman Film Manufacturing Company, detalhou, em uma

carta para Anita Bush, uma atriz negra que estrelou no

filme negro de susto The Crimson Skull (1921), os

desafios monetários e a escassez de recursos que ele

enfrentava. Bush pediu um salário maior pelo seu

trabalho, e, em resposta, Norman explicou suas

limitações financeiras: “como nosso filme vai passar

apenas em cinemas para pessoas negras, ele vai ter uma

distribuição em mais ou menos 120 cinemas; 85% dos

quais tem uma média de 250 assentos. Esses números

não se comparam com os 22 mil cinemas brancos nos

quais o nosso produto não terá espaço”.54 Bush não

recebeu o seu aumento de salário, mas assinou o

contrato com Norman para atuar em The Crimson Skull,

unindo-se ao seu antigo colega de teatro, o ator negro

Lawrence Chenault, no filme.

The Crimson Skull foi anunciado como “um filme de

mistério de faroeste” apresentando “o Caveira” e sua

gangue de “Terrores”, que, numa roupa preta com o

desenho de um esqueleto, brinca com as superstições ao

assombrar, aterrorizar e roubar suas vítimas. O filme

teve uma recepção tão boa em Baltimore, Maryland, no

Carey Theater, que foi “exibido por mais dois dias”.55

Assim como a Norman Film Manufacturing, a Ebony

Film Company (1915) não pertencia a negros. Assim

como algumas companhias brancas de cinema faziam, a

Ebony forneceu suas contribuições estereotípicas para as

representações da negritude em filmes como Money

Talks in Darktown (1916) e Shine Johnson and the

Rabbit’s Foot (1917). Embora fosse de propriedade

branca, a companhia era gerenciada por Luther J. Pollard,

o único funcionário negro, e mantinha um número

considerável de artistas negros. A Ebony Film Company

produziu vários filmes de susto, elevando seu catálogo a

uma impressionante coleção de duas dúzias de filmes. A

Ebony colocou negros no grande número de cinco curtas

de comédia de terror entre 1917 e 1918. Os cinco foram:

Devil for a Day (1917), Ghosts (1917), Mercy, The

Mummy Mumbled (1918), Spooks (1918) e Do The Dead

Talk? (1918).56

Os filmes foram exibidos para audiências brancas e

negras, ainda que fossem mais direcionados aos brancos,

como esta propaganda da empresa publicada em 1918

na revista Motion Picture World revela: “Pessoas de cor

são engraçadas. Se o povo de cor não fosse engraçado,

não existiriam as canções das plantações, nem banjos, a

dança do bolo,* sapateado, nenhum show de menestrel e

nem de vaudeville com pintura blackface. E eles são

engraçados no estúdio”.57

Em resposta aos lançamentos da Ebony, os

espectadores negros ficaram ofendidos, como escreveu a

“sra. J.H.” em uma carta ao editor publicada no jornal

Chicago Defender:

Eu considero meu dever, como parte da

respeitável classe de clientes do cinema,

protestar contra um certo tipo de filme que tem

sido e está sendo exibido nos cinemas deste

distrito. Eu me refiro aos filmes que vêm sendo

explorados pela Ebony Film Company, de acordo

com as propagandas, e que fornecem uma

amostra exagerada das ações desgraçadas dos

elementos mais baixos da raça. Foi com abjeta

humilhação que eu e muitos de meus amigos

assistimos às cenas de degradação exibidas no

cinema, e se o objetivo delas era causar riso, o

resultado não foi esse. Quando ações bestiais

dos degradados do nosso povo são ostentadas

diante dos nossos olhos como diversão, é

chegada a hora de protestar em nome da

decência comum.58

A imprensa negra foi igualmente contundente nas

críticas aos filmes da Ebony. O Chicago Defender

apontou: “quando você topar com a propaganda de um

desses tais filmes ‘só com gente de cor’, guarde o seu

dinheiro e economize tanto as suas moedas quanto o seu

respeito próprio”.59

Tal qual foi o teor geral dos filmes de susto — “pretos”

assustados arregalando os olhos em troca de risadas —

por quase duas décadas do século XX. Contudo, Oscar

Micheaux iria arrancar sorrisos e reinar supremo com

seus lançamentos de “filmes negros” de terror.

OSCAR MICHEAUX: MESTRE DO MACABRO

Oscar Devereaux Micheaux, filho de antigos

escravizados, nasceu em 1884 e foi criado no Kansas.

Com aproximadamente 26 anos de idade, em março de

1910, ele escreveu para o jornal negro semanal Chicago

Defender, descrevendo sua vida como um “residente,

pioneiro e dono de terras” no condado

predominantemente branco de Gregory, Dakota do Sul.

Enquanto cultivava (ele não abraçava a identidade de

“fazendeiro”), Micheaux começou a encher cadernos com

contos autobiográficos do personagem (pouco) ficcional

“Oscar Devereaux”, por fim transformando suas

anotações em seu primeiro livro autopublicado e

distribuído de maneira independente, The Conquest: The

Story of a Negro Pioneer. Este seria o primeiro dos seis

romances que ele escreveria.

A mudança de Micheaux para o cinema começou em

1918, quando George Johnson, da Lincoln Motion Picture

Company, fez contato com o escritor depois de ver um

anúncio no Chicago Defender sobre o seu livro The

Homesteader. A Lincoln estava interessada em adquirir

os direitos do livro a fim de adaptá-lo para as telas. Uma

enxurrada de comunicação entre eles resultou em

Johnson tentando “convencer Micheaux de que tinha

conhecimento suficiente do ‘ramo dos filmes’ e

prometendo que poderia transformar o livro em ‘um filme

de primeira classe’”.60 Contudo, Micheaux insistia que o

seu romance, de quinhentas páginas, merecia um longa-

metragem de seis rolos, e não apenas os dois ou três que

eram produzidos tipicamente pela Lincoln, comum para

os filmes negros do período. As negociações falharam, e

Micheaux determinou-se a produzir ele mesmo The

Homesteader em sua Micheaux Book and Film Company.

A companhia de Micheaux só iria produzir longas, um

reconhecimento de suas ambições em fazer filmes

longos.

Em 1919, com o filme mudo The Homesteader,

Micheaux se tornou o primeiro norte-americano negro a

fazer um longa-metragem. Micheaux continuou a

escrever e também trabalhou com o fim de adaptar seus

romances para a tela grande. O cineasta “escreveu a si

mesmo na história” ao tomar sua, agora famosa,

biografia para criar trabalhos que fornecessem um

ângulo sociopolítico sobre negritude que ainda não tinha

sido visto na cultura popular.61 Essas histórias se

tornaram a base de alguns de seus trabalhos mais

famosos, como os filmes mudos Nos limites dos portões

(1920), O símbolo do inconquistado (1920) e Corpo e

alma (1925). Micheaux era a epítome do cineasta

independente, que usava da bondade de sua rede de

amigos negros que o deixavam “filmar em suas salas e

disponibilizavam cadeiras para as exibições”.62 O

resultado foi uma carreira de mais de trinta anos em que

Micheaux produziu aproximadamente quarenta filmes.

Entre essas produções, havia pelo menos três filmes

mudos de susto que mais se assemelhavam ao gênero

terror de hoje. Micheaux não fazia comédias de terror.

Seus filmes tratavam sobre narrativa, um assunto muito

sério. Um dos filmes do tipo, um filme de susto

dramático, A Son of Satan (1924), quase não chegou a

ver a luz do dia por causa de algumas manobras escusas

de negócio por parte do próprio Micheaux.

As notáveis estudiosas de Micheaux, Pearl Bower e

Louise Spence, no livro Writing Himself into History:

Oscar Micheaux, His Silent Films, and His Audiences,

explicam que, para economizar dinheiro e maximizar os

lucros, o cineasta virou um distribuidor esperto. Ele não

submetia seus filmes, como era exigido, ao

licenciamento até que já estivessem agendados o filme e

a propaganda. A tática permitiu que Micheaux

economizasse tempo e recursos associados ao

asseguramento de uma licença, que eram gastos para

depois ele se ver obrigado a cortar alguma coisa a fim de

atender aos

,

requerimentos do quadro de censores. Em

vez disso, Micheaux tentou fazer a banca agir a seu

favor, de maneira rápida e sem confusão, ao explicar que

os cinemas estavam esperando pelo filme dele e que os

censores não precisavam se preocupar com o conteúdo

dos filmes, porque eles só seriam vistos pelo público

negro.63 Para persuadir a banca, “seu cabeçalho durante

esse período listava todos os filmes que ele tinha em

distribuição e descrevia sua firma como “Produtores e

Distribuidores de Filmes Negros de Alta Classe”.64

Quando a banca da Virginia ameaçou o lançamento de

A Son of Satan, Micheaux agendou o filme mesmo assim,

sem aprovação, no Attucks Theatre em Norfolk, e fez

circular propagandas e outros materiais promocionais

para o filme. Só então a banca teve notícias de

Micheaux, que vinha ignorando os pedidos para que

mudanças fossem feitas no filme. No fim, a estratégia foi

uma proeza descarada:

Sua resposta tardia evidencia como ele

manipulou o sistema para fazêlo trabalhar em

sua vantagem, enquanto evitava as

consequências desagradáveis de suas próprias

artimanhas. Estabelecendo a cena para um

melodrama, e fazendo o papel do trapaceiro, ele

apelou para uma nota de “contrição”, dizendo

que havia viajado pelo sul em vagões Jim Crow

infestados de cinzas durante todo o verão e que

estava “sempre cansado e distraído” e por isso

nunca conseguiu ficar bem o suficiente para

“parar e explicar os motivos”. Usando o

paternalismo da banca, ele alegou pobreza e os

lembrou que, afinal, os filmes só eram vistos

pelo público negro”.65

O estado aplicou uma multa de 25 dólares, a pena

mínima, e rejeitou as cenas de miscigenação por

“motivos de discrição”.66

Os sete rolos de A Son of Satan incluíam Lawrence

Chenault, famoso por The Crimson Skull, em seu elenco.

De acordo com as propagandas, o filme apresentava “um

poderoso elenco coadjuvante de cor” atuando em uma

adaptação de uma história de Micheaux, The Ghost of

Tolston’s Manor.67 O filme fala sobre um homem que, em

uma aposta, concorda em passar a noite em uma casa

mal-assombrada, e foi descrito como “uma história de

aventura de deixar os cabelos em pé, que se passa em

uma casa assombrada, onde o arrastar de correntes e

fantasmas ambulantes são tão comuns quanto papagaios

e filhotes de cachorro”.68

O filme, contudo, não escapou de controvérsias. A

produção de Micheaux encontrou o desdém de alguns

por causa de sua representação de negros bebendo,

apostando e jogando dados. A Comissão de Cinema do

Estado de Nova York rejeitou o filme, impedindo, dessa

forma, sua licença para tais representações, como afirma

a Comissão em sua carta para Micheaux:

O filme é repleto de cenas de bebedeiras e

baderna, e mostra homens mascarados ficando

bêbados. Mostra jogos de azar envolvendo

dinheiro, um homem enforcando sua esposa até

a morte, o assassinato do líder do bando

mascarado e o assassinato de um gato por

apedrejamento. Existem muitas cenas de crime.

O filme é tão caricato que, na opinião da

comissão, é “inumano” e “incitaria o crime”.69

O longa, de acordo com os padrões da época, era

particularmente recheado de estereótipos, exibindo

homens negros fazendo “badernas” de todos os tipos,

enquanto os homens brancos eram retratados como

membros selvagens da Klan. De tal forma, o filme

evidenciava como Micheaux podia ser “descaradamente

desafiador para negros e brancos nos Estados Unidos”.70

Ainda assim, A Son of Satan foi, em geral, bem recebido.

D. Ireland Thomas, do Chicago Defender, escreveu sobre

o filme:

alguns podem não gostar da produção, pois ela

exibe a nossa raça nas cores deles. Podem

protestar contra a linguagem empregada. Eu

mesmo não apoiaria esse aspecto do filme, mas

preciso admitir que é realista, sim, eu acho, até

demais. Devemos dar créditos a Oscar por nos

ter fornecido coisas reais […] eu não quero ver a

minha raça em botecos ou mesas de apostas.

Mas o que desejamos não dá dinheiro. Aquilo

que o público pede é o que faz o saco de

moedas tilintar.71

O próximo filme de susto de Micheaux, The Devil’s

Disciple (1925), tem Lawrence Chenault em seu elenco

mais uma vez. É descrito no New York Amsterdam News

como “intensamente cativante e dramático” ao contar a

história dos perigos da cidade grande, o Harlem, no caso,

para mulheres jovens. O perigo toma a forma de um

homem no filme, um discípulo de Satã, que seduz e

explora “mulheres das ruas”. Uma mulher acredita que

ela pode mudar o homem, mas em vez disso se torna

uma vítima da degradação. De acordo com o Pittsburgh

Courier, “o que se segue cria uma história tão cheia de

suspense inquietante e situações dramáticas que você

fica preso no êxtase do entretenimento do qual não

escapa até que o final passe pelos seus olhos”.72

Micheaux ainda não havia terminado de lançar coisas

assombrosas. The Conjure Woman (1926) foi baseado na

coletânea homônima de contos de Charles Chesnutt de

1899. O livro apresenta sete contos, todos situados em

Patesville, Carolina do Norte, centrados nos atos de

conjuramento — uma magia vodu73 — feitos por negros

(escravizados e livres) ao resistirem às crueldades

infligidas a eles por brancos racistas e violentos.

Micheaux escreveu para Chesnutt delineando suas ideias

para uma adaptação cinematográfica da primeira história

de The Conjure Woman:

Eu acho que você poderia desenvolver uma boa

sinopse da primeira história de The Conjure

Woman. Transformar o caso do homem e da

mulher em uma boa história de amor, deixar que

tenha, se possível, uma casa mal-assombrada,

sendo que as assombrações seriam segredos

revelados perto do final, e a heroína que foge

para lá escondida — qualquer coisa que choque

ou surpreenda, mas que tenha um bom final e

que forneça homens e mulheres como

protagonistas fortes (Oscar Micheaux para

Charles Waddell Chesnutt, 30 de outubro de

1921, Arquivos de Charles Waddell Chesnutt,

Sociedade Histórica de Western Reserve,

Cleveland, Ohio).74

Porém o filme, por motivos desconhecidos, não fez muito

barulho. O que se sabe é que a produção não foi muito

promovida e teve exibições limitadas.75

Os filmes de Micheaux têm sido interpretados como

“filmes raciais” e contos morais que tinham o duplo

objetivo de circular mensagens positivas de ascensão da

raça enquanto exibiam os negros como seres humanos

complexos — capazes de amar e bons, falhos e fracos,

maus e honestos. Micheaux também tinha um bom olho

para histórias cativantes. Seus filmes de susto eram

provocativos, suspenses psicológicos (não apenas filmes

assustadores de “encontrões no escuro”). Seu trabalho

abriria as portas para pessoas como o diretor/ator

Spencer Williams e seus “filmes negros” de terror com

temas morais dos anos 1940. Até então, contudo, a

participação negra no terror seria quase exclusivamente

desfigurada por descasos imagísticos em filmes de terror

“com negros”.

CONCLUSÃO

Foi contra o pano de fundo desse início do século XX,

quando W.E.B. Du Bois lamenta pelo negro que mede “a

própria alma pela fita métrica de um mundo que o olha

com divertido desdém e pena”, que os negros entraram

na produção de filmes.76 Eles buscaram oferecer

entretenimento a partir de seu próprio e vantajoso ponto

de vista da negritude enquanto combatiam as

representações desdenhosas prevalecentes que eram

circuladas por aqueles particularmente investidos em

preservar noções puras de brancura. Certamente, para

esses cineastas negros, o lucro em potencial também

não incomodava. Contudo, as mentiras de Griffith se

mostraram motivações fortes para que negros entrassem

na área — rapidamente e em grande número.

Companhias independentes de filmes negros e cinemas

negros começaram a aparecer. No fim da década de

1920, o número impressionante de setecentos cinemas

negros atendiam ao público negro (provando que a

“renascença” não foi apenas um fenômeno do Harlem).77

Ainda assim, a vida do cineasta negro estava longe de

ser fácil. Censura, distribuição, acesso a recursos

,

de velhos clássicos e

lançamentos bombásticos saídos de festivais. Eles

também adquiriam documentários. Era um ambiente que

de fato poderia capitalizar com a produção de uma

programação fresca e original. Felizmente para nós, Phil

e eu, Sam Zimmerman, ex-editor-chefe do popular site

de terror Shock Till You Drop, era agora o curador de

filmes da Shudder. Um admirador do meu trabalho e o

primeiro a me oferecer uma oportunidade de escrever

fora do ambiente de meu próprio site, Sam recebeu um

resumo completo do documentário e ele realmente

desejou que o projeto chegasse aos seus chefes. O

conceito original era um seriado em quatro partes com o

título Separate Scares. O objetivo cinematográfico tinha a

ver com o pensamento mais dinâmico de Phil, que

apontava para a ideia do público negro “se ver” nas

telas. Como esse público reagiria, se houvesse uma

reação? Além disso, as pessoas negras contando suas

histórias a partir das cadeiras do cinema permitiria que o

documentário — algo que aprendi com o feminismo

negro — realizasse um exame crítico e imperativo do

conhecimento adquirido por meio da vivência de pessoas

que participaram daquela história. Ademais, seria uma

brincadeira interessante com o humorado estereótipo de

que o público negro é bem vocal em salas de cinema,

especialmente ao assistir filmes de terror. Nós tínhamos

um vídeo promocional que, engenhosamente, abria com

o comediante Eddie Murphy fazendo uma piada sobre

filmes de casas mal-assombradas em seu especial de

comédia stand-up Delirious, de 1983, seguido da

projeção de imagens de personagens negros ao longo

dos mais de cem anos de história do gênero. Nós

estávamos prontos para registrar visualmente essa

história em quatro horas ou mais, traçando

cuidadosamente as décadas e seus melhores momentos

com o livro de Robin servindo de guia. Sam se tornou um

meio de campo entusiasmado entre nós e os titulares da

Shudder para essa produção em potencial. Assim,

esperamos e respondemos perguntas por e-mail à

medida que elas chegavam.

Então, a nonagésima cerimônia do Oscar foi ao ar no

dia 4 de março de 2018. Eu nunca prestei muita atenção

em cerimônias de premiação, mas Peele deixou uma

impressão tão forte de Corra! que conquistou quatro das

principais indicações ao Oscar, o que é extremamente

raro para qualquer coisa que sequer se aproxime do

gênero de terror. Isso foi o bastante para gerar um leve

interesse naquilo que, na minha cabeça, era um assunto

imprevisível. Um choque agradável atravessou meu

corpo quando anunciaram que Jordan Peele havia

ganhado o prêmio de melhor roteiro original. Ele subiu ao

palco e falou sobre as dificuldades que enfrentou para

realizar seu projeto e sua enorme pilha de inseguranças.

Peele enfatizou uma mensagem de perseverança. Eu

ainda não tenho certeza se ele já havia se dado conta do

impacto que o filme criado por ele causaria. Horas

depois, no atribulado dia útil seguinte, Phil e Kelly Ryan

(parceira da Stage 3 e produtora executiva de Horror

Noire) receberam um aviso da Shudder de que eles

estavam prontos para transformar Horror Noire em

realidade.

De uma série em quatro partes, o projeto passou a ser

um filme de setenta a noventa minutos. Juntamente com

essa grande mudança, Phil aproveitou a oportunidade de

se tornar editor-chefe da relançada revista Fangoria, o

que tornou impossível seu envolvimento diário no

projeto. Ele e Kelly conseguiram outra produtora com

anos de experiência na televisão, Danielle Burrows, para

ajudar a tapar os buracos dos aspectos técnicos da

produção de vídeo com os quais eu não estava

familiarizada. Phil deu um jeito de estar conosco sempre

que possível, lidando com os dois empregos de forma

admirável e profissional.

Eu era a pessoa, agora produtora e coautora, que

tinha conhecimento e paixão pelo conteúdo. Meu

trabalho era assegurar que entrevistaríamos as pessoas

certas, confirmar os temas acerca da história do terror

negro que iríamos abordar, desenvolver todos os pontos

de discussão e conduzir cada entrevista. Encontrar um

diretor foi um desafio, já que vários candidatos

talentosos se interessavam por essa história. Xavier

Burgin, graduado na Escola de Artes Cinematográficas da

Universidade da Carolina do Sul, era tão afiado em sua

comunicação e tão cuidadoso em seus trabalhos,

conceitos e visão, além de ser amigável, que todos nós

concordamos que ele era a pessoa certa no lugar certo

para juntar um grupo predominantemente formado por

pessoas negras, as quais eu vi trabalharem juntas

arduamente para dar a Horror Noire a textura visual de

que precisava para ganhar vida. Apesar de problemas

climáticos, físicos ou mentais após mais de oito horas de

filmagem por dia, lançando perguntas e pontos de

discussão para pessoas que eu assisti em alguns dos

meus filmes favoritos por décadas, eu me vi extasiada ao

fazer o trabalho. Levei os feedbacks de Phil e Kelly a

sério e os apliquei. Fico agradecida que eles tenham me

deixado tomar a dianteira enquanto gravávamos, assim

pude afiar minhas habilidades mais adormecidas. Eu

precisava daquele empurrão.

A própria Robin estava na Universidade A&M, em

College Station, a duas horas de distância de Austin,

Texas. Danielle e eu fizemos a viagem e tivemos uma

recepção calorosa por parte de Robin e de sua adorável

equipe para um dia de filmagem. Sua presença na tela

ajudou bastante a arredondar a história que queríamos

oferecer ao público. Como um bebê curioso observando

uma anciã sábia, uma nova explosão de energia nasceu

dessa filmagem, pois, assim como Tananarive Due

(autora, educadora e produtora executiva de Horror

Noire), as duas se aprofundaram muito na história do

terror negro, ao ponto de nós três podermos discutir o

assunto em detalhes. A gravação com Jordan Peele

fechou o círculo quando seu escritório se transformou em

um grande aceno visual, com o diretor sentado na

mesma cadeira em que seu protagonista foi hipnotizado.

Com uma luz mais quente para acentuar suas

características e tendências geeks de terror, Peele

passou uma mensagem sóbria a respeito de como o

terror deve manipular as expectativas da audiência em

relação à representatividade negra. Para quebrar essas

expectativas, sendo ao mesmo tempo sensível à época

em que vivemos, Peele evidenciou que o vácuo de Corra!

é um lugar que ele sempre soube que deveríamos

desconstruir e eliminar de nossas vidas. Mesmo sendo

difícil, ele estava ciente de que nós poderíamos ser mais

e fazer mais em um gênero que havia esquecido a voz

negra por tanto tempo.

Após a filmagem, meu maior obstáculo foi entender

como criar um roteiro a partir de inúmeras páginas de

transcrições e tecer uma história com os temas que Phil

e eu concordávamos ser sólidos e perfeitos para o

projeto. Depois de algumas deliberações, decidimos que

uma abordagem cronológica seria mais interessante

antes de seguir para a edição. Se já houve no mundo um

lugar confortável para ser uma pessoa introvertida

determinada a contar a história dos negros afro-

estadunidenses no cinema, esse lugar foi a sala de

edição, com os editores Scott Strobel e Horatiu Lemnei.

Eles ouviam, eram pacientes e estavam se divertindo

tanto quanto eu. Eu precisava das sugestões deles e

aceitei os pedidos que faziam, e acabei aprendendo

muito sobre o que “funciona” e o que “não funciona”

quando você está montando os quebra-cabeças de horas

de filmagens para formar uma história coerente. Phil

preencheu buracos nas filmagens uniformemente,

Danielle conseguiu novos recortes de imagens e eu

intuitivamente sabia quais filmes usar e onde encontrar

as cenas de que precisávamos. Passamos semanas

refinando corte atrás de corte com notas executivas e

novos pareceres enquanto as notícias do terror

avançavam após o barulho criado por Corra!.

Nem é preciso dizer que o produto final foi o resultado

de um esforço em equipe e uma experiência que nunca

me cansarei de debater. Minha única esperança é que o

público

,

(como

equipamentos, atores, pagamentos) e a necessidade de

um retorno do investimento eram problemas

significativos e frequentemente impossíveis de serem

resolvidos. Como resultado, cineastas não negros ainda

dominavam a indústria, e a visão deles acerca dos

negros e da cultura negra prevalecia. Parecia não haver

meios de deter as representações de negros como

figuras monstruosas ou as comédias de terror

racialmente ofensivas, nas quais os negros eram vítimas

de violências nas mãos dos brancos. Pior ainda, o negro

assustado de olhos arregalados estava só começando a

aparecer, chegando ao ápice na década seguinte. A

próxima década, de 1930, viu uma diminuição de

performances com pintura blackface, dando mais

oportunidades para atores negros “reais”. Contudo, os

papéis destinados aos negros, especialmente no gênero

do terror, que estava sendo formalizado nos anos 1930,

eram terrivelmente regressivos. A década também viu

um aumento da participação de mulheres negras: elas

não seriam mais interpretadas por homens brancos com

o rosto pintado, e assim mais papéis foram escritos para

elas, ainda que frequentemente interpretassem bruxas

vodus seminuas ou empregadas completamente vestidas

e praticantes de vodu.

Na década seguinte havia ainda mais problemas

representacionais para os negros surgindo no horizonte.

“Filmes da selva” — sobre as vidas não civilizadas de

negros que viviam em lugares como o continente

africano ou a ilha do Haiti — se tornaram populares nos

anos 1930. As contribuições desses filmes para o gênero

do terror foram profundas, e os tropos dessas produções

continuam populares até hoje. Negros retratados como

figuras selvagens, praticantes malvados de vodu falando

“uga-buga” enquanto se açoitam numa frenética dança

vodu cadenciada por música da selva (percussão)

rivalizavam com o grotesco de Gus e Lynch. Além disso,

os brancos ainda eram retratados como superiores e

iluminados… e ainda eram os protetores e salvadores

das mulheres, que continuavam a ser ameaçadas pelos

negros. Havia muito pouco para combater essas

imagens, já que 1930 foi mais uma década de filmes de

terror “com negros” do que de “filmes negros” de terror.

* Embora a autora naturalize uma hierarquia entre humanos (negros)

e animais em um zoológico, como se o absurdo da exibição fosse o

fato de ser experienciado por humanos, para um discurso

antirracista que vai na raiz do problema, é interessante pensar que a

lógica da mentalidade racista (diferenciação e hierarquização com

base no fenótipo) é correlata à lógica do especismo (diferenciação e

hierarquização com base na diferença de espécie, basicamente a

oposição animal “humano” e animal “não humano”). Dizer “como se

negros fossem animais” pontua uma necessidade de dissociar

negros de animais com veemência (devido ao histórico de

animalização dos negros, no discurso que associa negritude a

características não-humanas) tal que não pontua o fato de que os

“animais não-humanos” não deveriam ser violados, exibidos e

agredidos. Para as irmãs Aph e Syl Ko, grupos sociais marginalizados

tendem a focar que a diferença mórfica e “espiritual” deveria

pressupor uma diferença de tratamento do grupo privilegiado,

porque ignoram o fato de que por “humano” a mentalidade

eurocêntrica quer dizer “branco”, e os demais grupos marcados pela

diferença são “não-humanos” e, por extensão, lidos como “animais”.

Assim, elas defendem que a luta não deveria ser pra ser tratado

melhor que o animal, mas pelo fim da lógica hierarquizante. Ver: Ko,

Aph; Ko, Syl. Aphro-ism: essays on pop culture, feminism, black

veganism from two sisters. Nova Iorque: Lantern Books, 2017. [NE]

* Cakewalk no original, refere-se à dança dos escravos norte-

americanos de ritmo sincopado surgida a partir de uma tentativa de

imitação do minueto e das quadrilhas dos brancos europeus em

meados do século XIX. Mario Jorge Jacques conta, em seu livro

Glossário do Jazz (Biblioteca 24 horas, 2009), que o nome surgiu das

reuniões em certas fazendas que autorizavam a dança aos domingos

como diversão também para os brancos e que presenteavam com

um bolo os melhores dançarinos. A base musical era composta por

marchas sincopadas e que vieram a contribuir para a característica

rítmica do ragtime. [NE]

HORROR

NOIRE

1930

FEBRE DA SELVA, UM ROMANCE DE

HORROR

Vodu e zumbis. Coisa de criança, não é?

Filmes B. Bem, errado. A uma hora de

avião de Miami está o país caribenho do

Haiti, e esse país está sendo tomado

como refém por sacerdotes vodus que

podem, e transformam, pessoas em

zumbis. — BILL O’REILLY (20)1

Em 35 curtos anos (1895-1930), nos Estados Unidos, os

filmes se transformaram de passatempos caros e

experimentais de inventores em uma indústria comercial

completa — “Hollywood”. Na metade da década de 1930,

a produção de filmes era saudada como uma indústria

líder nos Estados Unidos, valendo 2 bilhões de dólares. A

média de frequentadores de cinemas cresceu

bruscamente, de 40 milhões em 1922 para 48 milhões

em 1925 e 110 milhões em 1930.1 A década de 1930

também foi quando o termo “filme de terror” finalmente

entrou para o vocabulário.2

Quase todas as companhias de cinema começaram a

produzir filmes de terror; contudo, a Universal pode ser

creditada pela inovação dessa “Era de Ouro” dos filmes

de terror com sua série de filmes de monstros hoje

considerados clássicos — Drácula (1931), Frankenstein

(1931), A múmia (1932) e O homem invisível (1933).3 Os

monstros da Universal receberam a companhia de outros

filmes populares de terror, como Os assassinatos da rua

Morgue (1932), e várias sequências, como A noiva de

Frankenstein (1935) e A filha de Drácula (1936). Graças,

em parte, aos esforços da Universal, a década de 1930

permanece como um dos períodos mais celebrados na

história do cinema. Infelizmente os negros ficaram

amplamente ausentes dos filmes de monstros da

Universal, com a rara exceção do ator negro Noble

Johnson, que fazia pontas como o servo “Janos, o Negro”

em Os assassinatos da rua Morgue, e como o empregado

“o Núbio” em A múmia. Um escritor do jornal negro

Pittsburgh Courier acreditava que a Universal tinha pouco

respeito pelo público negro durante esse período.4 Os

negros realmente estavam sendo desprezados pelo

cinema, mas esse desprezo não vinha apenas da

Universal.

Cineastas negros tinham poucas oportunidades de

informar a indústria cinematográfica nessa época. A

chegada do som, uma inovação tecnológica cara, e a

ocorrência da Grande Depressão, que causou um colapso

econômico nos mercados globais, foi uma mistura mortal

para os cineastas negros. Já com dificuldades financeiras,

muitos viram suas empresas falirem completamente.

Filmes negros passaram a ser roteirizados, produzidos e

distribuídos por brancos, que também detinham sua

propriedade, mas com atores negros (e, ainda que

raramente, brancos em blackface), sendo destinados

para um público branco. A representação de negros no

cinema, fosse no terror ou não, era notavelmente

estática. Realismo social frequentemente ficava em

segundo plano em favor de representações de negros

felizes servindo brancos, como em dramas como Noivado

na guerra (1935), Cantando saudades (1936) e … E o

vento levou (1939).

O terror não era diferente, encontrando até mesmo

um jeito de incluir alguma cantoria jovial (por exemplo,

Lua negra [1934]). Os negros não eram representados

nessa década como os “novos negros” progressistas

celebrados durante a era da Renascença do Harlem. Pelo

contrário, eram apresentados como figuras

subdesenvolvidas e infantis. Em vários casos, seu lar

ainda era uma plantação branca, embora o cenário da

plantação não fosse mais o sul pré-guerra, mas algum

tipo de selva caribenha amaldiçoada que ameaçava

engolir o espaço civilizado criado pelos brancos. Magia

vodu do mal figurava de forma proeminente, assim como

animais monstruosos, em especial o gorila, que também

tinha uma queda por loiras. Contra esse

,

emaranhado de

temas genéricos, uma constante era o romance, que

fazia questionar: seriam a floresta, o vodu ou até mesmo

o gorila, capazes de atrapalhar a busca por um amor

branco?

CONQUISTANDO O MUNDO NEGRO

O terror de 1930 tinha uma obsessão por histórias

“saídas da África”, nas quais os brancos “conquistavam”

a África. Era uma preocupação que poderia ser atribuída

às aventuras do início do século XX do presidente

Theodore Roosevelt (1901-1909). Roosevelt era um

historiador publicado (foi nomeado presidente da

Associação Histórica Americana); era um naturalista,

conservacionista e explorador (ele é creditado pela

descoberta de mais de mil quilômetros não mapeados do

rio Roosevelt); trabalhou com o Smithsonian, com o

Museu Nacional de História Natural (Washington, D.C.) e

com o Museu Americano de História Natural (Nova York).

Roosevelt pode ter sido o primeiro presidente

“midiático”, já que sua voz, em um discurso político, foi a

primeira a ser gravada para circulação em massa.

Roosevelt também permitiu que sua imagem fosse

gravada em uma coleção de clipes de filme mudos.

Existem vários escritos acadêmicos e de não ficção de

autoria de Roosevelt. Juntos, esses artefatos de mídia

fizeram de Roosevelt um dos líderes mais publicamente

acessíveis do início do século XX.

Como resultado da presença voluntária de Roosevelt

na mídia de massa, os norte-americanos tiveram uma

ampla cobertura das labutas de sua vida, incluindo suas

escapadas em safáris. Em 1909 ele visitou o então Congo

Belga em uma expedição, com o objetivo de adquirir

animais para museus norte-americanos. Ele e seu time

voltaram com um tesouro de 11 mil espécimes

(elefantes, hipopótamos, rinocerontes, insetos) para

preservação e/ou montaria. Na mente do público,

Roosevelt havia “conquistado” a África.

Roosevelt contribuiu com os próprios mitos por meio

de seus escritos sobre safáris e regularmente se

apresentava como uma figura gentil e racional. Escreveu

que quase sentia pena dos carregadores negros em suas

expedições, já que eles tinham apenas suas roupas, um

lençol e uma tenda; isto é, até conhecer Kikuyu, que

tinha apenas um pequeno lençol e nenhuma roupa ou

tenda. Foi então que Roosevelt acalmou sua culpa ao

proclamar “o quão mais bem tratados” eram seus

carregadores “pelo simples fato de estarem no safári de

um homem branco”.5 Tais experiências foram bem

documentadas graças ao grande compêndio

robustamente divulgado dos escritos, citações e escritos

de Roosevelt. O projeto do compêndio começou em 1928

e foi concluído em 1941, o que coincide com a grande

proliferação de filmes sobre norte-americanos dominando

a selva.

AMOR NA SELVA… COM MACACOS… QUE

NOJO!

Ocasionalmente um boato de algum tipo vira uma

história de primeira página, mas seria melhor que

os jornais fossem “avisados” da estratégia.

— The Encyclopedia of Exploitation (138)6

“Animalística, sexualidade ‘selvagem’.” Patricia Hill

Collins, em seu livro Black Sexual Politics, observa que

mulheres negras não conseguem se livrar de tais

estereótipos sexuais. Hill Collins escreve sobre

“percepções ocidentais de corpos africanos”, notando

que a “mistura de peles de animais, […] culto aos seios e

foco no traseiro” continuam sempre presentes.7 Hill

Collins nota que desde Sarah Baartman (apelidada

pejorativamente de “Vênus Hotentote”) até Josephine

Baker e as Destiny’s Child, a atração — ou, mais

precisamente, a comerciabilidade —— dos corpos dessas

mulheres negras tem sido ligada a figuras primitivas

hipersexuais, referidas de forma coloquial como

“aberrações”. De forma significativa, é a sexualidade da

mulher negra — e não o romance negro ou o amor — que

captura a imaginação e a atenção dos criadores de

imagens durante o ciclo do terror da década de 1930.

O filme de terror “com negros” Ingagi, de 1930, é

inteiramente dedicado à sexualidade animalesca de

mulheres negras. Situado no Congo, é dito que o filme foi

influenciado pelas viagens de Roosevelt pelo país. Ingagi

é um dos filmes de terror mais nauseantes, não por

causa dos tropos esperados de horror, como sangue e

violência (não há nada disso), mas por causa de seu

ataque nojento contra a sexualidade negra.

Ingagi conta a história de cientistas pesquisadores

brancos que viajam para as profundezas da selva

congolesa a fim de investigar os estranhos rituais de uma

tribo que tanto reverencia quanto teme os gorilas, ou

“ingagis”. Os congoleses oferecem suas mulheres

virgens para as feras. A história do filme é uma daquelas

que dão conta do iluminismo branco. Chocados com os

sacrifícios rituais dos nativos e incapazes de tolerar essa

prática por mais um momento sequer, os cientistas

trabalham para resgatar uma jovem vítima negra das

garras de uma besta-símia. Enquanto salvam a vida da

mulher negra e matam o animal, os homens, e,

consequentemente, a plateia do filme, são levados a crer

que a mulher não foi livrada apenas de ser espancada

e/ou devorada pelo animal. Em vez disso, ela foi poupada

de um encontro altamente erótico com a bestialidade.

Para encerrar o assunto, outra mulher seminua emerge

da selva no fim do filme segurando um bebê humano que

tem a pele coberta de pelos. O infante é descrito como

“uma criança estranha, mais símia do que humana”.

Ingagi não foi vendido como um filme de terror pelo

seu diretor William Campbell ou pelos produtores da

Congo Pictures, Ltd. Pelo contrário, foi promovido como

um verdadeiro e factual documentário. Ou seja, Campbell

afirmou que Ingagi foi simplesmente editado, mas que

era filmagem não adulterada e feita pelos membros da

exposição. Ele garantiu ao público que os membros da

expedição e as atividades da tribo eram bem reais, e que

nada fora ensaiado. Em materiais promocionais, frases

de efeito incentivavam os frequentadores de cinema a

acreditarem que os eventos representados em Ingagi

eram verdadeiros: “Você já ouviu falar sobre coisas

assim, mas não acreditou […] Mas este filme mostra a

realidade pela primeira vez”, e “Um milhão de emoções

[…] Uma gravação verdadeira de aventura africana!”, e

“Mitos e lendas da parte mais escura da África trazidas

para a realidade por meio do incrível trabalho das

câmeras!”. Rapidamente, o filme passou a ser

popularmente referido como “o filme de sexo com

gorila”, quebrou recordes de bilheteria e até inspirou

uma música chamada “My Ingagi”.8

Uma humana fazendo sexo com um gorila nunca

apareceu em cena. Em vez disso, o público foi mantido

literalmente no escuro à medida que o trabalho de

câmera e a baixa iluminação apenas sugeria a cópula

interespécies, impedindo a visão de atrizes brancas com

o rosto pintado de preto que retratavam algumas das

nativas.9 Contudo, a arte do pôster de divulgação

prometia bestialidade explícita (de forma figurativa e

literal), pois mostrava um gorila, em posição ereta,

sequestrando uma mulher negra careca com os seios

expostos. O gorila segura a mulher com os seus dois

“braços” e aperta um dos seios da negra entre os dedos.

De tal forma, Ingagi alude a uma “sexualidade masculina

negra e agressiva na forma do gorila” que caça mulheres

negras lascivas.10 Aqui, mulheres negras são envolvidas

em um esquema complexo de aberração, onde são

hipersexuais e disponíveis ao mesmo tempo, mas nem

um pouco femininas, bonitas ou atraentes (de acordo

com os padrões tradicionais do Ocidente). Materiais

promocionais também incluíam a pergunta: será que

Darwin estava certo? Logo, Ingagi sugeria uma ligação

direta entre a genética dos negros e as “bestas negras

supermasculinas”.11 O resultado foi um filme que

convidava o público a associar as práticas sexuais negras

com bestialidade e provocava nojo diante da habilidade

única dos negros de acasalar com um animal.* De tal

forma, o filme inteiro se utilizava de dicotomias binárias,

trabalhando de forma eficiente para separar os brancos

civilizados (humanos) dos negros selvagens (bestas),

distinguindo, assim, os brancos como exemplos

,

de

superioridade racial.

A controvérsia em relação à Ingagi não parou por aí.

De acordo com Andrew Erish, repórter do LA Times, que

escreveu uma longa matéria especial sobre o filme,

vários meses depois de seu lançamento as dúvidas sobre

sua autenticidade começaram a surgir. Ingagi incluía

cenas e sobras de filmagem de filmes mais antigos e

bem conhecidos como Heart of Africa (1915) (outro

“documentário” sobre safáris na África). Muitas das

cenas com gorilas em Ingagi foram filmadas em um

zoológico na Califórnia. Foi provado, por meio de um

depoimento juramentado assinado, que o ator Charles

Gemora interpretou o gorila usando uma fantasia.

Alguém reconheceu uma das mulheres “africanas” do

filme como uma atriz figurante recorrente em filmes

hollywoodianos. O jornal Los Angeles Examiner reportou

que “negros comuns das ruas” foram escalados como

homens tribais. Ainda assim, quando questionados, o

diretor do filme e outros envolvidos na produção

insistiram que Ingagi era autêntico, e as cidades

continuaram a exibir o filme dessa maneira. Três anos

depois, quando a estadia do filme nos cinemas acabou, e

depois que a companhia responsável pela produção do

filme alardeou lucros de mais de um milhão de dólares, a

Comissão Federal de Comércio (FTC) determinou que os

cineastas não poderiam mais divulgar o filme como uma

produção autêntica.12 Como parte das evidências, o FTC

notou que “ingagi” era uma palavra inventada.13

Em meio a toda essa controvérsia, ninguém pareceu

se importar com os ataques contra a sexualidade negra.

Apesar do estabelecimento de um código governante de

moral e decência na indústria do cinema, que incluía a

rejeição de nudez feminina, verdadeira ou implícita, se

estivessem a serviço de um interesse lascivo, os corpos

de mulheres negras não contavam. O corpo negro

“nativo”, nem moral e nem decente, “se tornou

instantaneamente um local de excitação sexual e

degradação racial sancionada”.14 Infelizmente, não

existiram campanhas para boicotar o filme, como

aconteceu no caso de O nascimento de uma nação. No

fim, Ingagi entrou para a história, de acordo com uma

resenha do jornal The New York Times, como “um dos

trotes mais ultrajantes já feitos”.15

Pouco depois de Ingagi, surgiu O passo do monstro

(1932). Esse filme de terror “com negros” é mundano

(principalmente quando comparado com Ingagi). A

ganância motiva uma dupla de empregadas domésticas

a se livrar de Ruth (Vera Reynolds), a filha de seu

empregador recentemente falecido. Ruth acabou de

herdar a fortuna do pai e a mansão, que, por acaso,

também tem um gorila no porão. As empregadas se

fantasiam de gorila, planejando matar Ruth e colocar a

culpa no animal. Contudo, no último minuto, Ruth é salva

por seu intrépido noivo, Ted (Rex Lease).

O passo do monstro exibe vários clichês de terror que

vinham sendo desenvolvidos ao longo dos anos —

animais assustadores, a mansão gótica e mal-

assombrada, a bela vítima branca, o salvador branco,

romance, e, de forma interessante, o negro engraçado. O

passo do monstro conta com a participação do famoso

(infame) ator Willie Best, que é apresentado com o nome

artístico obviamente ofensivo “Sleep ’n’ Eat” [dorme e

come], no papel de Exodus. No filme, Exodus é o

motorista e mordomo de Ted. Exodus é infantil,

indisciplinado e sempre se assusta, profunda e

comicamente, com tudo — relâmpagos, o escuro, casas

grandes, barulhos e até mesmo um tapete de urso. O

filme é uma sucessão de sustos levados a sério, exceto

quando Exodus aparece em cena. O filme até mesmo

termina de maneira cômica. Exodus e o gorila finalmente

ficam de frente um para o outro. Espera-se que seu

encontro com o animal credite a teoria darwiniana de

que o homem (negro) descende do macaco (como

também é teorizado em Ingagi): “Quer dizer que ele tem

parentesco comigo?! […] Bem, eu não sei dizer. Eu tinha

um avozinho que se parecia um pouco com ele. Mas que

não era tão ativo assim.”

De maneira significativa, Exodus também ilustra a

maneira tendenciosa como o público via o negro norte-

americano em relação àqueles de outras partes não

ocidentais do mundo. Quando se dava em ambientes

domésticos, a representação dominante dos negros

durante o período era cômica. Essa representação se

alinhava às representações seguras, alegres,

subservientes e dessexualizadas de filmes como … E o

vento levou, que remontavam a um período mais estável

e ordeiro da história americana. Contudo, quando os

negros (interpretados por atores afro-estadunidenses)

eram transplantados para locações estrangeiras, eles

eram representados como figuras perigosas, selvagens

hipersexuais que se mostravam uma ameaça

considerável para os brancos. Ingagi e vários outros

filmes de selva (como Tarzan, o filho da selva [1932] e

Lua negra [1934]) apoiam essa teoria.

O REI DO AMOR SÍMIO

A popularidade de Ingagi e o sucesso de bilheteria

provou que a fórmula de primitivos “escuros” somada a

uma superioridade “clara” continuaria a trabalhar bem e

de forma lucrativa. Foi o sucesso de Ingagi que

convenceu o estúdio RKO a autorizar o filme de terror

“com negros” King Kong (1933), no qual um macaco

gigante, Kong, se apaixona, persegue e sequestra uma

mulher branca.16

Se Ingagi fez com que o público considerasse os

costumes sexuais repulsivos das mulheres negras, então

King Kong estendeu o ataque metafórico aos homens

negros por meio das imagens de um grande gorila negro

perseguindo uma mulher branca. É um caso, como Snead

argumenta de maneira persuasiva, do “negro codificado”,

quando a negritude é representada implicitamente na

figura do macaco.17 Kong é “enegrecido”, ou racialmente

codificado, quando justaposto em relação à presença de

brancos no filme. Kong é a cor negra emergindo de uma

cultura primitiva mais “baixa”, onde ele é cercado por

nativos negros — ou mini-Kongs, quando se vestem como

macacos para adorar o grande Kong. A trilha sonora que

acompanha as cenas com Kong e os outros negros no

filme consiste de tambores, uma pista auditiva que é

típica dos filmes de selva e da aparição de negros

nativos.18 O filme também continua a confinar os

entendimentos acerca da negritude na primitividade, e

sua sexualidade na selvageria, acrescentando o medo de

grandes falos negros. Assim, King Kong adicionou mais

um motivo para o extermínio do Outro negro — seu corpo

é muito bem-dotado quando comparado ao homem

branco padrão. Kong é acorrentado e enviado para os

Estados Unidos (sua trajetória marítima diaspórica), onde

experimenta um pouco de escravidão antes de ser

executado por sair enlouquecido atrás de uma mulher

branca.

King Kong não se afastou muito do artifício narrativo

de um-filme-dentro-do-filme empregado em Ingagi — um

tipo de “colonização óptica”.19 Em Kong, um cineasta

norte-americano branco e sua equipe navegam até a Ilha

da Caveira, localizada em algum lugar do oceano Índico

(perto da Indonésia), para fazer um filme estrelado por

uma mulher loira e bonita, em contraste com o fundo de

primitivismo real da ilha intocada pela evolução.

Quando chegam à ilha, a equipe monta uma

expedição e encontra uma tribo composta de nativos

negros (não indonésios). Bogle (2005) afirma que o

elenco de Kong incluía “todo mundo que encontrassem”,

desde que não tivessem feições claras. O estúdio

procurava por atores figurantes com “feições escuras,

lábios grandes e cabelo crespo”.20 O uso de atores

negros para interpretar indonésios ilustra um impulso

racial típico de Hollywood, de relegar qualquer um com

pele escura ao papel de Outro.21 Os nativos, que são

vestidos com pedaços de pele de animais e carregam

lanças, têm o rosto pintado e usam perucas afro. O

“chefe nativo”, um papel pequeno, é interpretado pelo

ator Noble Johnson. A tribo (e isso vai soar muito, muito

familiar) oferece suas mulheres virgens, silenciosas,

submissas e seminuas como “noivas” para Kong, com o

objetivo de permanecer nas graças do gorila.22 A

representação das noivas

,

combinava de forma única o

feroz e o selvagem com uma servitude complacente.

Com a chegada da equipe branca, o chefe e sua tribo

notam a jovem e bela loira Ann Darrow (Fay Wray). Os

nativos imediatamente concluem que sua pele branca a

torna bem especial. A exclamação de júbilo do chefe,

“Olhem para a mulher dourada!” (frase traduzida pelo

capitão do navio que, por acaso, fala a língua “nativa”),

une o olhar masculino negro com o do gorila, que

também olha com adoração para Darrow assim que a vê.

Quando o aspirante a cineasta Carl Denham (Robert

Armstrong) responde “Sim, loiras estão em falta por

aqui”, o comentário do personagem funciona não apenas

para elevar a branquitude, mas também para dispensar a

possibilidade de que a beleza possa ser encontrada nas

mulheres negras. E então o chefe propõe uma troca

perturbadora: ele entregaria seis mulheres negras para

os norte-americanos em troca de Darrow. O plano é

sacrificar Darrow, que, teoriza o chefe e sua tribo, vai

agradar Kong muito mais. A oferta do chefe, claro, é

recusada. Como Greenberg elabora, esse confronto é

uma criação de mitos raciais da pior espécie:

De acordo com essa visão depravada de outras

terras e povos, uma das “nossas” mulheres deve

valer seis das mulheres deles. E embora os

homens “delas” sejam capazes das agressões

mais ferozes, um dos “nossos” consegue

aguentar e chicotear meia dúzia dos homens

deles em um combate limpo […] Kong, então, é

a epítome do sonho branco de homens negros

brutos, sem coração, estrangeiros

descerebrados, que se alimentam de violência e

rapinagem.23

Mais tarde, os nativos se esgueiram para dentro do navio

e sequestram Darrow, um evento que é descrito num

inglês ruim pelo cozinheiro chinês, Charlie (Victor Wong),

que diz: “Negros loucos estiveram aqui”. Quando Charlie

pede para ir para a terra — “Eu querer ir também!” —,

seu pedido é prontamente ignorado, e Charlie nunca sai

do barco e nem é visto novamente. Na verdade, essa é

uma briga apenas entre negros e brancos.

Depois do sequestro de Darrow pela tribo, os nativos a

entregam para o gigantesco Kong numa grande

cerimônia. Certamente é válido nos perguntarmos “o que

o monstro faria com aquela moça se ele conseguisse tê-

la […] dada a natureza obscura do seu desejo e aparato

genital”.24 Contudo, Ingagi deixou implícito que tudo é

possível e que resgatar Darrow das garras do animal

significa salvá-la do encontro mais inimaginável com

uma besta de 15 m de altura.25

O filme também afirma que, diferente de seus

encontros passados com mulheres negras, a reação de

Kong diante de Darrow é única porque ele não a devora,

mas se apaixona por ela e deseja tê-la por perto. Na

verdade, o profundo desejo de Kong por uma parceira

“humana” não é mostrado quando uma mulher negra é

oferecida a ele. Em vez disso, seu desejo sexual se torna

humano e humanizado de maneira mais completa

quando ele se interessa por Darrow. Sua afeição é

mostrada por meio de seu heroísmo protetor e de seus

afa*gos gentis no cabelo loiro dela — e cabelo, o filme

lembra ao público, não é algo que o macaco tenha visto

antes entre os habitantes negros da Ilha da Caveira.

Darrow é resgatada das garras do gorila por Driscoll.

Contudo, é a tribo que sofre as consequências quando

Kong perde a sua “noiva” branca. Ele fica furioso, destrói

a aldeia e mata vários nativos. Ele morde suas cabeças,

bate neles, os devora e pisoteia até a morte. Em uma

cena, deletada de várias cópias, ele trucida as crianças

da aldeia.26 Kong é capturado, escravizado pelos norte-

americanos e posto acorrentado em exibição num palco

em Nova York; ele, dessa forma, tem uma surpreendente

semelhança com os escravizados colocados despidos em

leilão, expostos para uma dissecação visual e fetichista.

Kong escapa dos seus captores e sai em busca de

Darrow. De forma parecida com o Monstro em

Frankenstein, Kong, o grande macaco preto, comete o

erro fatal de entrar no quarto de Darrow e levá-la para

aquele que será seu último momento juntos. O objetivo

narrativo implícito é o de manter a fera longe dos

aposentos das damas (brancas).27 Há pouco desacordo

em relação à afirmação de que Kong representa a

masculinidade e a dominância sexual, já que existem

“poucas imagens de dominância masculinas na arte

ocidental mais estranhas e inesquecíveis do que um

macaco gigante segurando [Darrow] como um prêmio no

topo do deco-falicismo delirante do recém-inaugurado

Empire State Building”.28 Comparando as infames

imagens de dominação exibidas por Gus e Silas Lynch em

O nascimento de uma nação com Kong, Young escreve:

“King Kong oferece uma versão dessa fantasia cultural

racista sobredeterminada” enquanto reforça “o ‘realismo’

histórico mais suave de O nascimento [de uma

nação]”.29 De forma pouco surpreendente, Kong é

baleado e morto, executado pelas forças militares,

terminando de uma vez por todas seus ataques de fúria

por Nova York atrás de uma mulher branca.

A história de amor entre o macaco primitivo e a bela

mulher branca continuaria a encantar cineastas e

plateias por várias décadas. Em 1976, John Guillermin

refez King Kong, anunciando inicialmente um homem

negro “encorpado” no papel de Kong.30 O nome de Ann

foi mudado para Dwan, e o propósito da expedição, de

uma filmagem, passou a ser a exploração de uma ilha do

Pacífico Sul ainda “não descoberta”, embora

completamente habitada, pela equipe de uma empresa

petrolífera. Muito do restante do filme permanece igual

ao original. Embora se trate de um lançamento pós-

Direitos Civis/movimento Black Power, há pouca

evidência de sensibilidade racial. A representação dos

ilhéus como negros primitivos permaneceu, assim como

sua noção de que seis mulheres negras equivalem a uma

mulher branca.

Em 2005, quando Peter Jackson realizou o terceiro

remake de King Kong por um grande estúdio, o

lançamento reavivou debates antigos acerca do grande

macaco negro como metáfora para a depravação negra,

em contraste com a superioridade e a desejabilidade

branca ocidental. O King Kong de Jackson é fiel ao filme

original de 1933. Contudo, Jackson trabalha para

reimaginar algumas cenas-chave que tivessem a ver com

negritude. Os nativos negros da Ilha da Caveira (muitos

dos quais são escurecidos com maquiagens e têm dentes

afiados) representam o horror no filme — eles são sujos,

assustadores, hostis e violentos. Hordas deles se lançam

contra a equipe de filmagem branca, espetando e

batendo em seus integrantes assim que eles chegam à

ilha. Os nativos são representados como monstros que,

inexplicavelmente, tremem e se sacodem e rosnam

enquanto reviram os olhos. Essa performance de

possessão permite ao telespectador enxergar melhor o

povo maldito, que se adorna com ossos e se enfeita com

amuletos feitos de caveiras.

FIGURA 2.1 AS PRÓXIMAS VÍTIMAS DE KONG EM KING KONG.

RKO Radio Pictures/Photophest

O outro princípio da representação de Jackson da

negritude é demonstrado por meio do autossacrifício do

personagem Ben Hayes (Evan Parke), um veterano da

Primeira Guerra Mundial que é o confiável e engenhoso,

segundo capitão do navio. O personagem é poupado de

dividir uma cena com os nativos fantasmagóricos e

enegrecidos, pois fica a bordo do navio para consertá-lo

enquanto os outros desembarcam. Quando os nativos

atacam, Hayes aparece na ilha, mas só depois que os

nativos fogem por causa dos tiros disparados pelo

capitão do navio. Hayes faz o papel de um pai protetor

para um adolescente branco chamado Jimmy, que é

parte da tripulação do navio. O laço entre Hayes e Jimmy

é tão profundo que Hayes se sacrifica quando a

expedição, da qual Jimmy participa, é atacada por Kong.

Na cena final de Hayes, na metade do filme, ele atrai

Kong para si, gritando “Olhe pra mim!” e alertando os

demais: “Fujam. Por trás das árvores. Tirem o Jimmy

daqui. Você precisa correr, Jimmy. Faça o que eu estou

mandando. Corra!”. Kong mata Hayes, e Jimmy vive para

ver outro dia.

Quando Kong é forçado

,

a se apresentar nos Estados

Unidos, sua revelação é precedida por nativos

enegrecidos e com perucas afro em um animado número

de canto e dança. A morte do personagem de Hayes

serve para remover o dilema constrangedor do negro

moderno em confronto com o negro primitivo no roteiro.

O Kong de Jackson recebeu Oscars de melhores efeitos

especiais e som, lucrando mais de 650 milhões de

dólares em ingressos e venda de DVDS, o que fez do filme

uma das produções de maior bilheteria distribuídas pela

Universal Pictures.

O LEGADO DO MACACO — ALÉM DOS ANOS

1930

Filmes de ficção científica como O planeta dos macacos

(1968) estenderam o tema da superioridade racial

branca em relação a espécies inferiores racialmente

codificadas como macacos. O planeta dos macacos, que

rendeu quatro continuações, um remake e duas séries de

TV (uma delas em animação), conta a história de um

grupo de astronautas norte-americanos que viaja pelo

espaço do ano 1972 para o ano 3978 e aterrissam em

um “mundo invertido” em que símios (gorilas,

orangotangos e chimpanzés) dominam humanos

primitivos e mudos. A raça aparece de maneira

proeminente em O planeta dos macacos, onde até os

macacos invocam um sistema de casta baseado em raça.

Os astronautas formam um grupo de três homens. O

coronel George Taylor (Charlton Heston), um loiro branco

de queixo quadrado que comanda a missão e lidera seus

dois companheiros enquanto tentam descobrir onde e

em que época eles estão. Landon (Robert Gunner)

também é um astronauta branco, mas seu jeito tímido e

sua abordagem humanística do mundo o transformam

em um subordinado de Taylor. Um terceiro homem,

Dodge (Jeff Burton), fecha o time. Negro, ele é saudado

como um grande cientista pelos seus colegas. Quando os

homens são atacados pelos macacos falantes e vestidos

que portam armas, Taylor é ferido, mas sobrevive.

Landon é lobotomizado, mas não é morto. Apenas Dodge

é morto. Um taxidermista o empalha e ele é colocado em

exibição num museu.

Uma quarta astronauta, uma jovem loira chamada

Stewart (Dianne Stewart), enfrenta um problema em seu

sistema de suporte vital durante a viagem e morre antes

do pouso da nave no planeta dos macacos. Com a

remoção da mulher branca logo no início, Stewart, uma

beleza branca ou “a carga mais preciosa”, como Taylor a

descreve, é poupada de um encontro com os macacos

que agora, nesse filme, possuem a habilidade de

examinar e invadir o corpo humano. Na continuação de

1970, De volta ao planeta dos macacos, a obsessão por

mulheres loiras mostra suas cores rapidamente. Quando

um soldado gorila (o mais negro e bruto dos símios no

planeta dos macacos) tropeça no corpo de uma mulher

branca platinada, ele fica tão enamorado dela que se

detém para alisar suas mechas sedosas e alvas.

A conquista do planeta dos macacos (1972), uma

alegoria das relações raciais e opressão nos Estados

Unidos, é o único filme da série que pode ser associado

mais de perto com o horror: “Veja a tela explodir ao ver o

homem enfrentar o espetáculo mais horrível na história

da ficção científica”.31 Tal tipo de promoção indicava que

Conquista não seria uma ficção científica para toda a

família como os filmes anteriores haviam sido

anunciados. A história do filme, uma prequela situada em

1991, mostra como os macacos, por meio de uma

revolução armada, conseguiram dominar a Terra.

Inspirados pelas revoltas de Watts em 1965, narrativas

negras permeiam o filme. MacDonald (Hari Rhodes), o

assistente negro do governador, é mostrado como uma

figura simpática e heroica ao suportar e erguer a voz

contra uma série de injúrias raciais. Em uma cena,

MacDonald é acusado por um policial branco de amar

macacos, ao que um outro policial responde: “Faz

sentido”. O público é convidado a ver os policiais como

racistas. MacDonald também é obrigado a aturar um

leilão de escravos símios onde um chimpanzé é descrito

como estando “no ápice da juventude e em perfeitas

condições físicas” e como “familiar, obediente e dócil”,

com ofertas que começavam em oitocentos dólares. Essa

inversão dos macacos se tornando mais humanos (com

os humanos se tornando mais selvagens) é acentuada no

filme quando os macacos são ligados à história de

políticas raciais nos Estados Unidos:

MACDONALD: Como você pretende ganhar essa

liberdade?

CAESAR (Chimpanzé): Da única forma que nos

resta — revolução. … Você, acima de todos,

deveria entender. Não podemos ser livres até

que tenhamos poder. […]

MACDONALD: A violência prolonga o ódio. O ódio

prolonga a violência. Com que direito você

derrama sangue?

CAESAR: Com o direito do escravo de punir seus

perseguidores.

MACDONALD: Caesar. Eu, um descendente de

escravos, peço que você mostre humanidade.

Nas cenas finais do filme em que os macacos se revoltam

contra a escravidão, eles aparecem armados com M16s,

e os cineastas adotam propositalmente um esquema de

cores vermelho, preto e verde para aumentar o

sentimento de desconforto (essas também são as cores

associadas ao movimento Pan-Africano). Em entrevistas,

os cineastas observaram que estavam cientes de que

não poderiam fazer um filme que estrelasse o líder das

revoltas de Watts, mas era viável retratar um macaco

como líder revolucionário.32 Houveram afirmações de

que o público negro se identificou com a mensagem

pouco sutil do filme, e uma revista informou que era

possível ouvir negros gritando “É isso aí!” enquanto os

macacos lutavam contra os “branquelos”.33

Na década de 1930, e ao longo do século XX, os filmes

continuaram com sua obsessão pela figura de homens

brancos em terras estrangeiras conquistando lugares

“sombrios” e seus habitantes “escuros”. A preservação

da feminilidade branca continuaria a ser um tema

central, assim como a mensagem de que negros eram

primitivos em seu desenvolvimento e de menor valor. A

união dessas duas mensagens, a pureza da mulher

branca e o animalismo dos negros, tem se provado tão

implacavelmente popular que, em 2008, a estrela do

basquete LeBron James posou como o perigoso Kong ao

lado da modelo branca Giselle no papel de Ann Darrow

na capa de abril da revista de moda Vogue. Ao reencenar

a cena do famoso filme de terror, James e Giselle

aproximaram um pouco mais do mundo real a ligação

entre homens negros como macacos lascivos e a mulher

branca como sua presa.

DO HAITI VEM A CONSTRUÇÃO DE MITOS

Mas no Haiti há os ligeiros, os mortos e, então, os

Zumbis.

— Hurston (179)34

O Haiti, com aproximadamente 27.750 km2, compreende

a parte ocidental da ilha de Hispaniola. Embora pequeno,

ao longo dos últimos quatro séculos, o país tem tido uma

grande presença na história, situando-se no centro de

um cabo de guerra disputado por um grande número de

ocupantes estrangeiros. Hoje, o Haiti conta com menos

de cem anos de independência. Tendo (por pouco)

sobrevivido a um ciclo explorador de invasões e

subjugação, e, recentemente, sendo vítima de um

terremoto catastrófico, o custo para o Haiti tem sido alto,

daí a impressão de se tratar da “nação mais pobre no

hemisfério ocidental”.35

Os problemas do Haiti começaram em 1492, quando

Cristóvão Colombo “descobriu” a ilha e a batizou de

Hispaniola, enquanto reivindicava a terra e seus

habitantes, os taino aruaques, para a Espanha. A

Espanha levou para a ilha armas sofisticadas e doenças,

contra as quais os aruaques não podiam lutar. Uma

geração mais tarde, por volta de 1517, com a dizimação

dos aruaques, escravizados da África Ocidental, de

países como o Benin (antigo Daomé), foram levados para

lá para trabalhar no cultivo de cana e na produção de

açúcar. Os escravizados levaram com eles uma

variedade de práticas religiosas que eram rejeitadas

pelos europeus. Impossibilitados de praticar abertamente

a sua fé, os escravizados de Hispaniola hibridaram suas

crenças e celebraram suas próprias tradições no interior

da religião dos escravizadores — especialmente o

catolicismo, que oferecia uma estrutura muito similar.

Essa ocultação de

,

religiões originárias não era uma

prática incomum. O dr. Bellegarde-Smith, um estudioso

de história haitiana e de vodu nascido no Haiti, explica a

história:

O vodu é relacionado a outras tradições

africanas transplantadas, como a santeria, que

teve lugar em Cuba, e o candomblé no Brasil.

Em todos esses lugares o catolicismo era a

religião oficial dos colonizadores. Escravos e

pessoas comuns escondiam os espíritos que

conheciam dentro da veneração a santos

católicos. Até hoje muitos haitianos combinam

práticas vodu com devoção católica.36

Durante o fim dos anos 1600, a ilha foi novamente vítima

de violência quando os franceses tomaram conta de uma

porção mais ao norte e saquearam as plantações de

tabaco, dando início a um conflito entre França e

Espanha. Em 1697, os dois países europeus decidiram

dividir o Haiti, e a França ficou com o terço ocidental do

país, nomeando-a de Saint-Domingue (que mais tarde

seria o Haiti).

Em 1793 aconteceu uma das revoltas de escravizados

mais significativas — a Revolução Haitiana —, que

finalmente levou à abolição da escravidão. O líder da

revolução, o escravizado nascido haitiano Toussaint

L’Ouverture, “um voduísta, ou seja, um praticante de

vodu” rezou ou “convocou os espíritos” com o fim de

libertar o Haiti.37 Os espíritos aparentemente

responderam com algum tipo de graça, já que

L’Ouverture e seu exército escorraçaram inclusive os

ingleses, que também tentavam ganhar espaço na ilha.

L’Ouverture, ao se tornar o novo líder do Haiti, criou uma

constituição e trabalhou para consertar a economia

explorada da ilha em favor de seus habitantes. Por

aproximadamente cinco anos (1798-1802), o Haiti

experimentou uma liberdade e governo próprio que

nunca tivera por três séculos.

A independência do Haiti foi mais uma vez ameaçada

quando L’Ouverture tentou livrar completamente o país

do controle europeu, uma condição que encontrou

resistência por parte da plantocracia europeia que

restava na ilha, com a ajuda de 30 mil soldados

franceses. Para impedir qualquer resistência, L’Ouverture

foi preso contra a sua vontade e morreu de pneumonia,

quando teve atendimento médico negado. Em seu lugar,

o escravizado nascido africano Jean-Jacques Dessalines

assumiu o posto, liderando os haitianos a uma vitória

sobre os franceses e rasgando a faixa branca da tricolore

francesa num famoso ato para declarar o país como uma

república negra, e (mais uma vez) pronunciar o Haiti

independente em 1804. A França tentaria tomar a ilha

novamente em 1825, o que resultou num tratado em que

a França reconheceria o Haiti como um país

independente, mas ao custo de 90 milhões de francos

por ano para o empobrecido país.

Enquanto isso, alguns dos 10 mil haitianos e

escravizados, assim como colonizadores brancos

franceses, fugiram do caos, indo para Nova Orleans,

Louisiana (atraídos pelas plantações similares),

causando, dessa forma, um impacto dramático no

cenário cultural da cidade. Essa migração se provou

importante para a construção de mitos sobre o Caribe,

que veio a ser visto como um “lugar fatal e promíscuo”,

cujos produtos culturais “viajavam por bem ou por mal

pelo mundo, mudando em cada lugar onde chegavam”.38

Na verdade, nos Estados Unidos o vodou se tornou

voodoo (embora alguns tenham rejeitado essa grafia por

considerá-la vulgar). Até mesmo um filme de terror, The

Love Wanga (1936), explicou que a religião do Haiti veio

a “ser conhecida para o homem branco como VOODOO”

[ênfase minha].39

Os Estados Unidos se recusaram a reconhecer a

independência do Haiti até 1862.40 A ascensão do Haiti

no mundo foi complicada também por vários golpes de

Estado, alimentados por interesses externos.

Em 1915, o presidente norte-americano Woodrow

Wilson ordenou uma outra ocupação no Haiti. Por

dezenove anos, entre 1915 e 1934, os Estados Unidos

possuíram o Haiti, uma apreensão preventiva motivada

durante a Primeira Guerra Mundial por receio de que a

Alemanha pudesse desejar a ilha para sua própria

vantagem militar. A ocupação militar do Haiti, liderada

pela Marinha, tomou a forma de uma ditadura, marcada

por extrema violência, onde toda forma de dissidência

política era respondida com derramamento de sangue. A

violência também foi pontuada por um racismo

profundamente entranhado por parte dos militares norte-

americanos: “O soldado da Marinha de alta patente

Smedley Butler se referiu aos líderes da resistência

popular como ‘macacos depilados, sem nenhum tipo de

inteligência, apenas uns crioulinho [sic]’”.41 Em 1932,

durante o governo Roosevelt, foi anunciado que o tempo

da Marinha no Haiti havia chegado ao fim, quando

ocorreram partidas em massa escalonadas. O último

marinheiro foi embora em 1934, acenando adeus para

um país deixado em frangalhos sociais, políticos e

econômicos.

É provável que não seja coincidência que a partida da

Marinha tenha começado em 1932, coincidindo com o

lançamento do primeiro filme norte-americano de terror

inspirado no vodu, Zumbi branco (1932), que teve o Haiti

como cenário. Na verdade, os marinheiros trouxeram

histórias fantásticas sobre os modos supostamente

estranhos do povo do Haiti, incluindo o uso de magia

“negra” (feitiços mortais e envenenamentos).

NO INÍCIO, ZUMBI BRANCO

Representações do vodu no cinema existem há tanto

tempo quanto a própria mídia.42 Frequentemente, se

houvesse uma selva, algum tipo de representação de

feitiço ritual era jogado no meio para aumentar o

sentimento de perigo numa terra selvagem, completado

com a presença de cobras, nativas parcialmente nuas

dançando ao redor de círculos de fogo e, claro, uma trilha

sonora arrepiante associada aos negros — tambores.

Rhodes identifica alguns tratamentos iniciais do vodu na

história do cinema, começando com o filme Voodoo Fires

(1913), que prometia a união clichê de rituais malignos e

chamas. A companhia de cinema de Sigmund Lubin

também entrou na moda de elencar o vodu como algo

vulgar em Ghost of Twisted Oak (1915). O filme

Unconquered (1917) mostrou o vodu ligado a rituais de

sacrifício humano.43 O filme The Witching Eyes (1929),

um “filme negro” de terror produzido, escrito e dirigido

por brancos, foi uma adição inicial na moda popular de

mostrar como o vodu podia ser usado para perturbar

assuntos do coração.

Há muito o que ser dito sobre o que estava presente

nesses filmes, incluindo o tratamento exploratório dos

negros e das religiões negras. Ainda assim, o mais

notável entre essas produções iniciais sobre vodu é

aquilo que está ausente delas — zumbis. Na verdade, o

vodu era mostrado como algum tipo de religião pagã

cujas únicas propriedades envolviam rituais em

celebração a deuses negros e magia negra. Contudo, o

cinema de vodu teve uma mudança dramática em 1932

com o filme Zumbi branco, que focava em zumbismo e

na habilidade de ressuscitar os mortos para que eles

seguissem as ordens de alguém.

Zumbi branco pode ser creditado como o precursor do

prolífico subgênero dos filmes de zumbi (exemplos: A

noite dos mortos-vivos [1968] e A maldição dos mortos-

vivos [1988]). Contudo, a principal influência do filme e

do gênero subsequente é o relato de viagem A ilha da

magia (1929), de William Seabrook, que trata sobre a

criação de zumbis no Haiti. Enquanto monstros como

Frankenstein ou Drácula tinham uma origem literária, os

zumbis, supostamente, eram oriundos da não ficção;

descrições de vodu e zumbis eram encontradas em

relatos em primeira mão escritos por europeus e norte-

americanos. O livro de Seabrook é, de longe, o mais

citado e conhecido. Escrito durante a ocupação da

Marinha americana no Haiti, A ilha da magia servia para

descrever o país como um lugar extremamente difícil,

com haitianos e norte-americanos em conflito uns contra

os outros em grande parte por causa da falta de

civilidade e refinamento dos haitianos (até mesmo a elite

educada era tida como inepta). Os marinheiros eram

considerados racistas, mas a animosidade deles em

relação aos

,

negros era ignorada e considerada

compreensível, dada a perversidade da terra.

O livro de Seabrook é baseado em sua estadia de dois

anos com uma sacerdotisa vodu. Escrito em um tom

dramático e sensacionalista, e acompanhado por

ilustrações caricaturais claramente racistas de Alexander

King, Seabrook descreveu na obra seus testemunhos de

rituais vodu:

sob a luz vermelha das tochas que faziam a lua

empalidecer, saltando, gritando, corpos negros

retorcidos, enlouquecidos por sangue, por sexo,

por deus, bêbados, rodopiavam e dançavam a

saturnália sombria deles, suas cabeças jogadas

para trás de forma estranha, como se os

pescoços estivessem quebrados, dentes brancos

e glóbulos oculares brilhantes.44

Seabrook se esforçou para dar credibilidade ao seu

trabalho citando fontes como o The Museum Journal

(1917), da Universidade da Pensilvânia, que davam conta

da selvageria do vodu haitiano, relatando como os

haitianos mordiam a cabeça de cobras, como eram

ensinados a “odiar os brancos” durante os rituais vodus e

como comiam “uma cabra sem chifres”, isto é, uma

criança humana, “crua ou parcialmente cozida”.45

Seabrook até mesmo afirma apresentar fórmulas

secretas para trazer os mortos de volta, receitas que

foram encontradas no corpo de um “bocor”, um

feiticeiro:

Invocar os mortos. Vá até um cemitério numa

sexta-feira à meianoite, em algum lugar onde

tenha ocorrido tiroteios. Vá até a sepultura de

um homem, leve uma vela branca com você,

uma folha de acácia selvagem e uma arma

carregada. Assim que chegar, faça este apelo:

“Exsurgent mortui et ad me veniunt. Eu exijo

que você, morto, venha a mim”. Depois de dizer

essas palavras, você vai ouvir um barulho de

tempestade; não se assuste e dispare o primeiro

tiro. O morto vai aparecer na sua frente; você

não deve correr, mas dar três passos para trás

lentamente, dizendo três vezes estas palavras:

“Eu te asperjo com incenso e mirra como a

tumba perfumada de Astaroth”. Mandar um

espírito embora depois de o ter invocado. Pegue

um punhado de terra e jogue na direção dos

quatro cantos da Terra, dizendo: “Volte para o

lugar de onde veio, da terra você foi criado e

para a terra retornará. Amém”.46

Seabrook continuaria a escrever mais livros de não ficção

sobre suas observações de primeira mão sobre a

adoração ao diabo na África, sua incursão no canibalismo

(e o gosto de vitela) e seu estudo das práticas de

bruxaria pelo mundo.

Zumbi branco fez pouco para desmentir as histórias

sobre o Haiti que Seabrook havia apresentado; em vez

disso, o filme usou o livro como base. O filme de terror

“com negros”, que também fala sobre trapaças e amor,

conta a história de Charles Beaumont (Robert Frazer), um

empresário branco e rico que mora no Haiti e conhece

um casal branco — Neil (John Harron) e Madeline (Madge

Bellamy) — de Nova York. O casal planeja se casar, e

Beaumont os convence a fazer a cerimônia em sua

propriedade, localizada numa área florestal remota no

Haiti. Os motivos de Beaumont, claro, não são puros, já

que ele se apaixona pela loira Madeline e espera atrair o

casal para sua casa, onde ele sequestrará Madeline,

mantendo-a na ilha para o seu bel-prazer. Beaumont

consegue a assistência de Murder Legendre (Bela

Lugosi), o plantador de cana branco que dominou os

poderes do vodu e controla uma horda de zumbis que

cumprem seus desejos sombrios. Quando Murder vê

Madeline, ele também a deseja, iniciando aí um cabo de

guerra pela única mulher (branca) da ilha (mulheres

negras são amplamente ausentes do filme). Murder e

Beaumont zumbificam Madeline e tentam forçá-la a

matar Neil; então Murder transforma Beaumont em um

zumbi também.

Zumbi branco é notável pela sua introdução do

monstro zumbi, que não havia sido visto em filmes

anteriormente. Daí, como o título do filme promete, o

foco é em zumbis brancos escravizados por Murder. Na

plantação de cana de açúcar de Murder, negros e

brancos trabalham um ao lado do outro em condições

perigosas, e Murder explica: “Eles trabalham com

lealdade, não ligam para as longas horas”. Essa premissa

relembra o capítulo de Seabrook intitulado “Homens

mortos trabalhando nas plantações de açúcar”, que

apresentam zumbis de forma semelhante como

um cadáver humano desalmado, ainda morto,

mas tirado da cova e dotado com um semblante

de vida pela feitiçaria […] e então faça dele um

servo ou escravo, ocasionalmente para cometer

um crime, mas frequentemente usado como um

burro de carga na habitação ou na fazenda,

onde realiza tarefas pesadas, e em quem você

pode bater como numa besta idiota caso

demonstre preguiça.47

É uma fantasia de docilidade pós-escravidão —

escravizados eternos trabalhando sob o sol e em

condições mortais para sempre e sem reclamações.

Murder tem vários desses brutos, mas se orgulha de

possuir cinco zumbis franceses brancos, todos inimigos

formidáveis antes que ele tirasse suas almas. Há um

capitão, um ladrão, o ministro do Interior da ilha e um

gigantesco carrasco, que, Murder explica, “quase me

executou”. O quinto zumbi é o maior troféu de Murder,

alguém que ele descreve como o seu “antigo mestre” —

um poderoso feiticeiro branco que Murder precisou

torturar durante muito tempo antes que ele revelasse

seus segredos vodu.

O verdadeiro terror desse filme, contudo, assim como

muitos filmes de terror antes e depois — de King Kong

até o mais recente O mistério de Candyman (1992) —, é

a ameaça feita contra uma mulher branca. Madeline se

junta a Ann Darrow de Kong como a arquetípica vítima

feminina. As duas mulheres enfrentam medos similares,

incluindo aí interações com o Outro. Para Madeline, seu

encontro com o Outro vem daqueles que habitam o Haiti,

e a ameaça que ela enfrenta é parecida com a de Darrow

— um tipo de escravidão branca por meio da

prostituição. No fim, assim como todos os monstros,

Murder e Beaumont pagam pela traição lasciva com suas

vidas, deixando que Madeline finalmente se una a Neil.

Rhodes escreve: “todos os homens — zumbis, noivos,

traidor — querem possuir sexualmente as mulheres”.48

Em relação ao desejo, o filme foi citado em 29 de julho

de 1932, numa resenha do jornal New York Times, por

usar zumbis como monstros porque “eles são bons

empregados. Podem acompanhar loiras sem ficar tendo

ideias na cabeça, o que é uma boa ajuda nos dias loucos

de hoje.”49

No mundo invertido do Haiti, os homens brancos

podem se tornar praticantes malignos de vodu, mulheres

brancas seduzidas podem ser levadas até a beira da

morte, e brancos poderosos podem ser transformados

em escravizados. Foi o impacto do Haiti na branquitude

que gerou o horror. Em uma frase de divulgação

relacionada ao filme, é afirmado que o Haiti sempre foi

perverso, mas que o fato não merecia atenção até se

voltar contra os brancos: “Eles sabiam que esse tipo de

coisa estava acontecendo entre os negros, mas quando

essa bruxaria foi praticada contra uma garota branca […]

tudo foi para o inferno”.50 Embora seja um filme de terror

que atribui principalmente aos brancos os tropos do

terror, Zumbi branco é uma acusação contra a negritude.

O público ouve que a ilha é “cheia de bobagens e

superstições”, e que é habitada por nativos adeptos de

um estranho “culto da morte”, que “usam ossos

humanos em suas cerimônias”. Essas práticas foram

“trazidas até aqui da África”, a suposta fonte do mal. A

pouca representação de negros no filme não os poupa da

estereotipação, pois mesmo assim são descritos como

figuras monstruosas, como quando Neil pensa que

Madeline está “nas mãos dos nativos” e proclama que

ela estaria “melhor morta do que assim!”.

FIGURA 2.2 UM ZUMBI COM MURDER EM ZUMBI BRANCO.

United Artists/Photofest

Na verdade, com o Haiti de cenário, é surpreendente

quão poucos personagens negros aparecem em Zumbi.

As mulheres negras são praticamente excluídas do filme,

enquanto homens negros se encontram mais presentes,

mas não em papéis centrais. Ainda assim, algumas

representações negras são dignas de

,

nota, oferecendo

uma das primeiras representações eficazes de negros no

gênero. O filme apresenta uma cena de funeral em que a

câmera se detém por um momento em um grupo de

negros (não zumbis) carregadores de caixão. Os homens

não falam (como é esperado deles), mas são

memoráveis. Eles chamam a atenção — bem-vestidos e

reluzentes desde os penteados benfeitos até os ternos.

Eles são pomposos por causa daquilo que não está

representado ali; eles não são “malandros” ou

deficitários de nenhuma forma, apenas apropriadamente

elegantes.51

Contudo, a representação mais notável de negros em

Zumbi branco acontece nos primeiros minutos do filme,

em uma pequena participação do ator negro Clarence

Muse (não creditado) como um “Motorista de Carroça”. O

personagem de Muse (o Motorista) é encarregado de

levar Neil e Madeline até a mansão de Beaumont.

Quando o motorista encontra um grande grupo de

homens e mulheres negros escavando a estrada, e,

assim, bloqueando o caminho da carruagem, ele explica

de forma sucinta o motivo de os haitianos enterrarem

seus mortos na estrada: “É um funeral, mademoiselle.

Eles temem os homens que roubam corpos. Então,

enterram os corpos no meio da estrada, onde pessoas

passam o tempo todo”. Aqui, a influência de A ilha da

magia sobre o filme fica aparente mais uma vez, já que

Seabrook escreve o seguinte acerca de rituais na beira

da estrada: “por qual motivo, tão frequentemente, se vê

uma tumba ou cova tão perto de uma estrada

movimentada ou trilha, onde pessoas estão sempre

passando? Isso acontece para dar toda a segurança

possível ao pobre morto infeliz”.52 Em outra cena,

conforme o Motorista conduz Neil e Madeline para mais

perto do destino deles, ele vê alguns zumbis brancos. Em

resposta, o Motorista grita “Zumbis!” e trota os cavalos

em máxima velocidade para se distanciar dos monstros.

Assustado, Neil pergunta: “Por que você está dirigindo

desse jeito, seu idiota? Poderíamos ter morrido!”. O

motorista fornece um solilóquio em timbre tão medido

que mais se assemelha a uma palestra de professor:

“Pior do que isso, monsieur. Poderíamos ter sido pegos.

[…] Eles não são homens, monsieur. São corpos mortos

[…] Zumbis. Os mortos-vivos. Cadáveres removidos de

suas sepulturas, que são obrigados a trabalhar nos

moinhos de açúcar e nos campos durante a noite.” O

Motorista deixa o casal na mansão de Beaumont. Ele,

novamente, vê os monstros e alerta “Olhe, aí vem eles!”,

e então sai de cena (e deixa o filme). Ele não é o típico e

estereotipado pretinho—assustado—ai—meus—pezinhos

—pretos—valham-me—agora, mas ele vai embora

rapidamente por conta do perigo que se aproxima.53

A representação de Muse do Motorista, ainda que

pequena, contradiz muito do que Hollywood apresentava

em relação à negritude. Três anos depois de Zumbi

branco, parecia que a indústria havia aprendido um

pouco, como observou Robert Stebbins no jornal New

Theatre em julho de 1935:

A atividade do negro nos filmes de Hollywood é

limitada ao papel do empregado preguiçoso […]

ou um carroceiro que parece ridículo […]. Ele

também é […] um vilão enlouquecido pelo vodu

e determinado a exterminar a raça branca em

Lua negra, ou, na melhor das hipóteses, um bom

prisioneiro entoando o espiritual onipresente na

casa da morte enquanto o herói é preparado

para dar os derradeiros passos em sua “última

milha”.54

O próprio Muse pode ser implicado nessa acusação

contra a representação dos negros no cinema, já que sua

participação no filme de terror “com negros” Lua negra

(1934) apresentava uma queda no progresso

representacional.

Lua negra é centrado em Juanita (Dorothy Burgess),

uma mulher branca que é enviada de sua casa em San

Christopher para os Estados Unidos por seu tio, o dr.

Raymond Perez (Arnold Korff), um dono de plantação, e

por seu capataz, Macklin (Lumsden Hare). Os dois

homens brancos estão “sozinhos” em San Christopher,

cercados por mais de 2 mil “nativos” que são descritos,

em sua maioria, como “bandidos” do Haiti. Os nativos

levaram o vodu com eles para San Christopher, o que

inclui adoração ao sangue e sacrifícios humanos em

honra aos seus “deuses negros”. Juanita não consegue

abandonar sua conexão com a ilha e até começa a tocar

“tambores nativos” em seu tempo livre. É revelado que,

quando criança, depois que os nativos mataram seus

pais, Juanita teve uma cuidadora negra que,

secretamente, a envolveu com o vodu, enchendo-a “com

o som dos tambores e a visão do sangue”. Daí, o terror

nesse filme está na ideia de que o vodu pode se

esgueirar das florestas e entrar numa casa branca e em

uma mulher branca a qualquer momento.

Com saudades de casa, Juanita volta para San

Christopher com sua filha Nancy (Cora Sue Collins) (e seu

marido é esperado um pouco mais tarde). Ela é recebida

por uma horda de nativos, que a enchem de flores e

precisam apanhar do tio para se afastarem, o mesmo tio

que tem uma reputação por açoitar e matar os nativos.

Ainda assim, ao longo do filme, os nativos é que são

mostrados como figuras que possuem prazer em matar

— Macklin, Anna (a babá branca de Nancy, interpretada

por Eleanor Wesselhoeft) e um homem negro, que, sob

ordens, chama o marido de Juanita para salvá-la do

perigo, são todos mortos, assim como uma mulher negra

que é oferecida como sacrifício humano. Fica evidente

desde cedo que Juanita está maculada demais pelos

nativos para ser salva. Ela batuca, entra em transe e

dança de forma sensual em rituais vodu (cercada por

aproximadamente quinhentos afro-estadunidenses

fantasiados de nativos).55 Juanita abandona sua filha

para fugir no meio da noite e ficar com os nativos, uma

transgressão que é encarada com a mais pura repulsa

por parte do tio, que, por sua vez, a abandona. Juanita

fica tão imersa — tão “enegrecida” pelo seu contato com

os nativos negros e com o vodu negro — que ela tenta

matar o marido e a filha. Por esses pecados, Juanita é

morta pelo seu marido salvador.

Aqui, novamente, a representação dos efeitos do Haiti

sobre uma mulher branca está calcada em registros

iniciais “reais” sobre o Caribe. Joan Dayan (175, 178), em

Haiti, History and the Gods, escreve que o tema de

mulheres brancas abraçando a negritude era algo

recorrente em muitos escritos de historiadores coloniais

sobre o Caribe. Dayan escreve que esses tomos

históricos afirmavam que: “As assimilações graduais que

os brancos faziam dos traços negros não eram vistas

como imitação, mas infecção”. Enquanto os negros

tentavam assimilar a cultura branca, quando os brancos

se apropriavam da cultura negra, eles eram descritos

como se tivessem “contraído uma doença, demonstrando

pouca força de vontade ou pouca fibra moral para resistir

à atração contagiosa da vida largada, pouca roupa e fala

lânguida. […] Calor insuportável e negros demais

contribuíam para a poluição inevitável da civilidade e da

graça”.56

FIGURA 2.3 A MARCA DA SOMBRA DE UM HOMEM NEGRO EM LUA NEGRA.

Columbia Pictures/Photofest

Lua negra, então, se torna mais um conto de horror

sobre o abominável enegrecimento de uma mulher

branca; também é um alerta violento e austero contra a

integração.

O “problema” negro no filme não termina com a morte

de Juanita. Logo após, entra Clarence Muse como

“Lunch”, o dono de uma escuna oriundo de Augusta,

Geórgia. Lunch leva pessoas de San Christopher para o

Haiti, entretendo-as com música enquanto velejam. É por

meio de Lunch que tanto os negros caribenhos quanto os

negros norte-americanos são marcados como figuras

deficitárias num sistema hierarquizante. Lunch se refere

aos negros da ilha como “perseguidores de macacos”,

explicando que os macacos gostam de cocos, assim

como os nativos, que perseguem os macacos para roubar

as frutas. Também por intermédio de Lunch é revelado

que os nativos precisam ser vigiados por olhos atentos e

repreendidos, pois eles preferem dormir em vez de

trabalhar. Na verdade, no fim do filme, os brancos fogem

dos nativos sedentos por sangue porque

,

alguns dormem

durante o ataque, permitindo que Lunch leve os brancos

até um lugar seguro. Mas Lunch também é um preto

engraçado e um estereótipo do negro subserviente. Ele

se alterna entre arregalar os olhos de medo e ser

extremamente fiel e se sacrificar pelos brancos. As cenas

retratam oposições óbvias de negros contra negros,

sendo os afro-estadunidenses ligeiramente superiores

aos negros de San Christopher, “o lugar de violência sem

fim, batizado em homenagem ao santo padroeiro das

causas perdidas”.57

Muse era emocionalmente dividido por causa de suas

representações de personagens do tipo e ocupou-se em

falar e escrever sobre isso com frequência (por exemplo,

sua autopublicação The Dilemma of the Negro Actor,

1934). Em um ensaio intitulado de maneira fúnebre como

“When a Negro Sings a Song”, Muse escreve sobre o

dilema que os negros enfrentavam nos poucos papéis

cômicos e de cantoria que lhes eram oferecidos nos

filmes de Hollywood: “Existem dois públicos que

precisam ser confrontados nos Estados Unidos — o negro

e o branco. O público branco definitivamente deseja

besteiras, canções e danças do homem negro, enquanto

o público negro deseja ver e ouvir os verdadeiros

elementos da vida negra sendo exemplificados”.58 A

dignidade que Muse trouxe para a sua atuação ficava

mais aparente em filmes negros e nos roteiros que

escrevia, revelando ainda mais a tensão existente entre

filmes negros e filmes brancos.

Ignorando as indicações de Muse de “respeito próprio

e autoconsciência negra”, ele ainda foi questionado por

suas performances mais problemáticas.59 Bogle

descrevia os papéis de Muse como retratos de “servos

humanizados”, longe da performance cômica de Stepin

Fetchit ou de um negro completamente subserviente,

mas problemáticos do mesmo jeito.60 Contudo, Muse

também é conhecido por ter emprestado profundidade e

complexidade às suas performances, que também eram

distintas pela relativa ausência de estereótipos (dado o

período).

Por exemplo, em 1941, Muse teve um papel

coadjuvante substancial como Evans, o mordomo, no

filme de terror “com negros” O fantasma invisível.

Trabalhando mais uma vez com Bela Lugosi, que

interpretava o dr. Kessler, o Evans de Muse também

gerencia a propriedade de Kessler, o que inclui

supervisionar seus empregados brancos (cozinheiros,

jardineiros etc.). À medida que assassinatos começam a

acontecer no solar de Kessler, Evans vai sendo

apresentado como uma figura inteligente e informada, e

participa de uma entrevista civilizada com as

autoridades, que esperam que ele possa contribuir com a

investigação. Evans se torna uma peça central na

resolução do mistério, chegando, por fim, a ajudar na

prisão do verdadeiro culpado, Kessler.

Ainda assim, esses papéis mais complexos destinados

aos negros não eram o bastante para afastar o cinema

de lugares negros como o Haiti. Os negros se tornariam

eternamente associados ao vodu, magia negra e zumbis

no gênero do terror.

SE TE AMAR É ERRADO, EU NÃO QUERO

ESTAR CERTO

Filmes como King Kong e Zumbi branco eram, na

verdade, histórias de amor. Graças às ameaças de

nativos e um gorila, Ann apreciou ainda mais o seu

verdadeiro amor e salvador em King Kong, Jack Driscoll

(Bruce Cabot). Da mesma forma, se Madeline tinha

dúvidas em relação a se casar com Neil, tudo foi

resolvido quando ela viu suas outras opções, homens

brancos maculados pelo vodu. A múmia (1932) também

se apropriou do amor, da identidade racial mestiça e da

regra de uma gota de sangue, mas não havia nenhum

mulato trágico aqui. Nesse filme, Helen (Zita Johann) é

meio egípcia/meio inglesa, mas se mostra alheia aos

países africanos, incluindo o local de nascimento de sua

mãe no Egito. Para Helen, que observa as pirâmides de

dentro de um clube inglês, o país parece “belo”, ainda

que seja um local “desagradável”. Seu pai, o governador

do Sudão, a deixou no Egito para retornar àquele país

“bestial e quente”. De repente, Helen é mesmerizada,

caindo no feitiço de Ardeth Bey/Imhotep (Boris Karloff),

um sacerdote egípcio ressuscitado de 3.700 anos que

havia sido mumificado e enterrado vivo pelo pecado de

abusar da magia numa tentativa de lançar um feitiço

para trazer sua amada de volta à vida. Imhotep

reconhece que Helen “tem o nosso sangue” e lhe revela,

por meio da magia, que ela fora a sua amada em outra

vida. Na verdade, o sangue tem grande importância no

mundo de Imhotep. Quando o Núbio (Noble Johnson), o

servo de um “mestre” branco, também se vê sob o

feitiço de Imhotep, sua suscetibilidade à magia é

baseada em seu sangue negro: “O Núbio! O sangue

antigo. Você o transformou em seu escravo.” O Núbio se

transforma no escravo de Imhotep, assim como os núbios

haviam sido no antigo Egito, como é mostrado em um

flashback. Os brancos precisam resgatar Helen do

desesperado Imhotep. Mas eles estão fazendo bem mais

do que simplesmente a salvarem de um monstro; eles a

estão resgatando de um “outro étnico atrasado e

oprimido” por enxergar Helen como uma mulher branca

o suficiente.61 Helen também é capaz de fugir dos mitos

egípcios, cheios de superstições e politeísmo, quando

seu amor, Frank (David Manners), que disserta

enfaticamente sobre o valor do pensamento científico, a

salva.

Mulheres brancas não estavam procurando o amor

nos lugares errados, mas parecia que as mulheres negras

faziam isso o tempo todo. Ingagi era um lembrete

grotesco de como isso podia acontecer. O pior erro que

uma mulher negra podia cometer, contudo, era escolher

um homem branco como pretendente. Se ter alguma

coisa com um macaco era implausível, então, tentar

conquistar um homem branco era errado… mortalmente

errado.

No filme de terror “com negros” The Love Wanga

(1936), o cenário é a Paradise Island, próxima à costa do

Haiti.62 Lá vive Klili Gordon (Fredi Washington), uma dona

de plantação birracial (negra/branca) que está

apaixonada por Adam Maynard (Philip Brandon), um

homem branco dono de uma plantação vizinha. Nessa

“história real” em que “os nomes foram trocados”, o

problema é que, embora Adam conserve uma relação de

amizade muito próxima a Klili, ele não consegue amá-la,

pois, conforme explica: “não é possível transpor a

barreira de sangue que nos separa”. Embora tenha a tez

branca como a de Adam, o fenótipo de Klili indica que

nunca será branca o suficiente porque em algum lugar

de sua linhagem sanguínea existe uma ancestralidade

africana. Logo, ela está manchada pela regra da única

gota, segundo a qual apenas um pouco de sangue negro

marca alguém como negro de forma instantânea e

eterna. Quando Adam escolhe (de forma previsível) Eve

(Marie Paxton), uma branca pura, para ser sua noiva, Klili

fica enraivecida de ciúmes. Ela aproxima o seu braço do

braço de Eve proclama: “Eu também sou branca. Tão

branca quanto ela!”. A tragédia do sangue e da cor da

pele é o típico estereótipo do mulato trágico, em que sua

proximidade com a branquitude torna Klili bela ao

mesmo tempo que sua situação irreconciliável a torna

um perigo para si mesma e para os outros, e por fim a

enlouquece.63 Klili recorre ao vodu, usando um feitiço

para deixar Eve à beira da morte (da qual ela é

milagrosamente salva). Klili então é motivada a erguer

treze zumbis, homens negros mortos-vivos, que

sequestram Eve e a colocam em um transe para que Klili

possa matá-la.64 Aqui, os zumbis são levemente

reimaginados em relação ao que foi visto anteriormente.

Eles ainda são recipientes vazios e reanimados sob o

controle de alguém. Contudo, The Love Wanga remove os

discursos coloniais e de ocupação da memória do público

em favor daquilo que Dayan descreve como um novo

idioma que desmantela a culpabilidade dos Estados

Unidos em relação ao trabalho forçado.65 A nova

construção coloca os negros no centro da servitude

forçada e no cerne da morte, uma vez que os massacres

realizados pelos brancos não são expostos.

Contudo, o filme é mais notável pela sua atenção à

identidade racial. Fredi Washington,

,

uma atriz negra cuja

tez é menos pigmentada e olhos verdes, sempre era

escalada para os papéis de mulata trágica, e seu papel

mais notável foi como Peola, uma mulher “que se

passava por branca”, em Imitação da vida (1934). The

Love Wanga continuava a brincar com as cores ao

escalar o ator branco Sheldon Leonard como LeStrange,

o cuidador negro da plantação de bananas de Adam.

Leonard foi uma escolha estranha para interpretar um

negro; contudo, essa escolha pode ter sido uma

precaução por parte dos realizadores, já que Washington

teve problemas com a censura em um filme que não era

de terror intitulado O imperador Jones (1933), também

situado no Haiti. Em Jones Washington beija o ator negro

Paul Robeson, o que os censores temiam ser algo muito

parecido com uma mulher branca beijando um homem

negro.66 Para remediar o problema, Washington foi

instruída a usar maquiagem mais escura a fim de

“parecer mais negra”. Em Wanga, a maquiagem não era

uma boa solução para o dilema racial, pois Klili deveria

se parecer “tão branca quanto” Eve. Talvez fosse melhor

que uma mulher que parecia ser branca fosse vista em

um abraço com um ator branco em vez de um ator

negro. Em Wanga, então, é o diálogo, e não a aparência,

que deve marcar LeStrange (um nome bem apropriado)

como negro. Ele se refere a Adam como “meu mestre” e

há esta proclamação:

LESTRANGE PARA KLILI: Você é negra. Você pertence a

nós. A mim.

KLILI: Eu te odeio, escória preta!

Assim como Klili, é impossível não associar a negritude

de LeStrange como causa de sua proximidade com o mal.

Ele é tão adepto do vodu, e tão perverso, quanto Klili.

LeStrange rouba o cadáver de uma mulher negra, veste

as roupas de Klili no corpo e o pendura em uma árvore

como parte de uma maldição vodu contra Klili por ela ter

rejeitado o seu amor. O grande amor de Klili por Adam é

mostrado como impossível, o que não causa surpresa, já

que ela e seus gostos se tornam parte do mito batido que

dá conta de que mulheres “mulatas”* gostam das

melhores coisas: “Existem vários relatos europeus sobre

a mulher mulata, em especial sobre seus gostos

requintados, amor pelas coisas finas e apreço especial

por rendas, linho, seda e ouro”.67 Obviamente, gostar e

ter são coisas diferentes, e Klili nunca terá Adam. Por

causa de tudo que ela fez, Klili se torna uma mulher

caçada. No fim, quando a maldição vodu de LeStrange

não mata Klili rápido o suficiente, LeStrange a estrangula

com suas próprias mãos.

Com exceção de seu tratamento da identidade racial,

The Love Wanga tomou o mesmo caminho de outros

filmes de terror que incluíam alguma atenção para com a

negritude. Praticantes negros de vodu estão por todos os

cantos de Paradise Island, trabalhando sem parar em

seus ofícios em um lugar onde o povo é, de acordo com o

filme, preguiçoso e primitivo. Existem muitos bocores

(feiticeiros), loas (espíritos) e zumbis, e o filme explica a

existência deles da seguinte forma: “os corpos sem vida

de negros assassinados, reanimados pelos bocores com

propósitos malignos”. Todos, bons ou maus, parecem

saber como fabricar um ouanga (wanga) ou

encantamento, que pode ser usado tanto para despertar

o amor quanto para causar a morte. Quando não estão

envolvidos com algum tipo de magia, os negros da ilha

passam a maior parte do tempo jogando dados,

apostando e dançando. The Love Wanga, é claro, não

nega aos negros uma batida para que dancem, e o

sempre presente batuque do tambor vodu, ou “rada”,

pode ser ouvido. O tambor é descrito em termos sensuais

— apresentando uma batida “latejante” e “pulsante” —

enquanto a câmera se demora no peito desnudo e

musculoso de um homem negro batendo no instrumento

com força.

The Love Wanga foi refeito em 1939 com um elenco

todo negro no “filme negro” de terror The Devil’s

Daughter. Escrito por George Terwilliger e dirigido por

Arthur Leonard, o filme foi roteirizado, dirigido e

produzido por brancos, mas mirava em um público negro.

As cenas iniciais do filme servem para estabelecer

como os negros caribenhos são diferentes. É possível ver,

em uma longa sequência, um grupo enorme de

trabalhadores malvestidos de uma plantação de bananas

cantando e dançando em uma clareira. O lugar também

serve para jogos de azar e brigas de galo. É mostrado

que os trabalhadores acreditam no vodu como uma

magia maligna que pode ser manipulada para todos os

tipos de fins imorais.

O filme conta a história de duas meias-irmãs

jamaicanas. A primeira é Isabelle (Nina Mae McKinney),

cuja mãe era uma haitiana praticante de vodu. Isabelle

tem cuidado da plantação da família com o amor e o

apoio de seus empregados negros e “crioulos”. A

segunda irmã é Sylvia (Ida James), que deixou a Jamaica

anos atrás em busca de uma educação superior nos

Estados Unidos e se tornou uma mulher refinada no

Harlem (o período de tempo coincide com a renascença

do Harlem). Quando o pai das irmãs morre, ele deixa a

plantação e a riqueza que vem com a propriedade para a

educada Sylvia, enquanto a mais grosseira Isabelle não

fica com nada. Sylvia volta para a Jamaica para cuidar da

herança e consegue a ajuda de um feitor chamado

Ramsey, que afirma estar apaixonado por ela, mas faz

isso apenas para roubar seu dinheiro. Ramsey é

interpretado pelo ator branco Jack Carter. Embora o ator

branco tenha “enegrecido” seu dialeto em The Love

Wanga, Carter não faz o mesmo aqui. Em vez disso, sua

raça nem é mencionada no filme. A codificação de cores

também pode ter contado até certo ponto com uma

escolha de elenco politicamente esperta, pois Ramsey se

mostra um homem mentiroso e traidor. Dois outros

personagens masculinos negros se revelam como tais:

John (Emmett Wallace), que ama Sylvia e no fim ganha o

seu amor, e Percy (Hamtree Harrington), o mordomo de

Sylvia no Harlem, que acredita que os negros jamaicanos

são inferiores e, com efeitos cômicos, aprende que eles

podem ser duas-caras quando o fazem acreditar que

guardaram a alma dele em um porco (que é comido

posteriormente).

O foco do filme, contudo, está nas diferenças entre as

duas irmãs, que na verdade servem para problematizar

as comparações entre os Estados Unidos e a Jamaica,

trazendo alguma profundidade para as representações.

Isabelle é mostrada como a irmã rude e desordeira que

faz o árduo trabalho de cuidar da plantação enquanto

suspira por John, que não tem interesse nela. Sylvia é

representada como uma mulher que se transformou

numa burguesa, passeando pela plantação em um

vestido chique e conduzida por um motorista. A diferença

entre as irmãs é alinhada com o urbano e os modos da

cidade grande em contraste com o rural sem

sofisticação. Contudo, até esse contraste é reformulado

por meio de um alerta sobre os perigos de abandonar a

casa, se tornar burguês e perder contato com o seu

próprio povo. Sylvia e Percy, duas figuras do Harlem, são

expostos como pessoas ingênuas por causa de sua

separação geográfica e cultural com o “lar”. Enquanto o

trabalho na plantação é visto como rudimentar e

desprovido de elegância, ser culto e conhecedor de livros

é tido como inútil.

Isabelle cria um plano para ter a plantação de volta —

ela explora as superstições vigentes ao lembrar Sylvia e

John de que sua mãe era haitiana, deixando implícito que

ela poderia praticar vodu. Isabelle instrui seus

trabalhadores, muitos dos quais são praticantes de vodu,

a baterem seus tambores na floresta com mais vigor do

que nunca, fazendo com que Sylvia note que o som dos

tambores soa ainda mais “ameaçador” do que em sua

juventude. Sylvia acredita que se tornou a vítima de um

ritual vodu quando Isabelle a droga e finge que vai

prepará-la para um sacrifício. O filme apresenta uma

longa cerimônia obeah (magia negra) presidida por

Isabelle, que faz encantamentos. É revelado que Isabelle

estava fingindo ter poderes — se ela realmente fosse

mágica, ela não precisaria ter recorrido às drogas. John

corre para resgatar Sylvia, enquanto o assunto de

mistura sanguínea

,

ame o filme tanto quanto eu amei ajudar a lhe

dar vida. A recepção do público e da crítica excederam

minhas expectativas, e fico empolgada em saber que o

trabalho foi tão assertivo para as pessoas negras em

especial, no sentido de dar a entender que somos mais

do que vítimas com apenas cinco minutos na tela,

petulantes e grosseiros, servindo apenas para elevar a

taxa de sobrevivência dos protagonistas brancos. Nossa

presença em um gênero cuja intenção é causar medo

nos mostra como somos percebidos e o que vivenciamos

em nosso dia a dia no mundo. No entanto, mais do que

isso, Horror Noire corajosamente prediz para onde nos

encaminhamos quando se coloca o terror nas mãos de

artistas negros. Como isso impactará o gênero no futuro?

Essa história ainda está sendo contada. Para aqueles

entre nós investidos nesse progresso, estes são tempos

verdadeiramente animadores, em que tenho a honra de

poder participar ativamente. Horror Noire, tanto o

documentário quanto o livro, estão recebendo o

reconhecimento que merecem por serem tão essenciais

em nossa exploração e favorecimento do gênero de

terror. E já estava na hora.

ASHLEE BLACKWELL

Junho de 2019

ASHLEE BLACKWELL é mestre em artes pela Temple University, coprodutora

do documentário Horror Noire e pesquisadora do cinema de gênero.

Apaixonada por narrativas de terror desde os sete anos de idade, quando

assistiu a um dos filmes da franquia A Hora do Pesadelo, Blackwell se

dedicou a estudar os papéis femininos nas narrativas de terror. Ela mantém

o site Graveyard Shift Sisters, que também serve como um recurso

educacional e um jornal crítico que narra a história e o presente trabalho das

mulheres negras no horror para desfazer a marginalização de sua voz

criativa dentro desse espaço. Atualmente reside na Filadélfia com uma

coleção cada vez maior de livros e filmes.

HORROR

NOIRE

PRÓLOGO

EM BUSCA DO SENTIMENTO DE

EQUILÍBRIO

PERGUNTA: Por que não há pretos nos filmes de

terror?

RESPOSTA: Porque, quando a voz cavernosa diz

“CORRA!”, a gente faz isso.

E o filme vai acabar… diferente do que acontece com a frágil garotinha

branca que acende uma vela apressadamente e desce bem devagar os

degraus escuros para ver de onde vem aquela voz… Verdade ou não, essa

piada era uma justificativa improvisada para ajudar a explicar a ausência de

negros em filmes de terror feitos antes da década de 1970, um gênero

cinematográfico que tem sido popular entre a população afro-estadunidense

desde sempre.

Ainda que os negros componham apenas 13% da

população,* as pesquisas mostram que os negros são

responsáveis por mais de 25% da bilheteria total. E isso

apesar do fato de os negros, em determinadas épocas,

terem sido raramente vistos em filmes de qualquer

gênero, e, se aparecemos na tela, as imagens

representadas não serem motivo de orgulho.

Muito se tem pesquisado e escrito sobre a história dos

negros no cinema, mas até agora a nossa presença — ou

ausência — nos filmes de terror tem sido relegada a um

único capítulo ou a várias notas de rodapé. Este livro é

uma análise completa e profunda das imagens,

influências e impactos sociais dos negros nos filmes de

terror desde 1890 até o presente.

Fazendo um giro de 180 graus em relação ao seu livro

anterior, African American Viewers and the Black

Situation Comedy: Situating Racial Humor, a professora e

acadêmica premiada Robin Means Coleman compilou

uma gama impressionante de filmes e sua coleção de

vítimas de pele mais pigmentada que deram seu sangue,

se não um pouco mais que isso, aos enredos e histórias

dessas produções com temas sombrios. Este livro é um

estudo indispensável da participação negra no gênero de

terror que não só tem a acrescentar à riqueza da

pesquisa cinematográfica, mas também acentua e

celebra o papel que os negros desempenharam

historicamente nessa arena lucrativa do audiovisual.

Talvez, em nome de uma consciência, nós

devêssemos considerar as diferenças intrínsecas do

impacto social dos horrores “na tela” em oposição aos

horrores “da vida real”. Os filmes são ferramentas

poderosas para manipular fatos, informações e imagens

que frequentemente afetam as percepções, crenças e

atitudes mentais direcionadas ao tema apresentado.

Representações iniciais dos negros em filmes como A

nigg*r in the Woodpile (1904),* uma comédia, na

verdade continham elementos do que poderia ser

considerado horror leve, nesse caso tanto em seu título

racista quanto na sua representação cinematográfica dos

negros, que, na verdade, foram encenadas por atores

brancos usando pintura blackface. Como comédia, o

filme não tinha a intenção de assustar ou aterrorizar no

sentido clássico, mas tentava alertar os brancos contra

uma raça em particular que eles precisavam temer.

Ainda mais desprezível foram os vários horrores “da

vida real” inspirados pelo notório filme O nascimento de

uma nação (1915) de D.W. Griffith. Enquanto os brancos

tentavam escapar dos perigos fictícios representados na

tela por uma turba voraz de negros que se levantava

para pegá-los em uma Amerikkka pós-escravidão, fora do

cinema os negros estavam sendo mortos de verdade,

vítimas de horrores verídicos ao serem linchados,

baleados, arrastados, estuprados, espancados, castrados

e queimados por grupos da supremacia branca e outros

racistas entusiasmados que “entraram de cabeça” e

compraram a mensagem incitadora de ódio do filme. São

coisas diferentes ficar animado ou horrorizado por algum

ato horrível que aconteceu com outra pessoa na tela do

cinema, ciente de que o ator depois lava o sangue falso e

vai para casa, e realmente sentir a dor e experimentar o

evento horrível e perturbador na vida real, com sangue

de verdade e sem nenhum diretor para gritar “corta!”.

Talvez o aspecto mais danoso relacionado ao espectro

limitado de papéis representados por atores negros nos

filmes de horror iniciais seja a falta de imagens positivas

para proporcionar um sentimento de equilíbrio. Ver um

personagem negro arregalar os olhos e empalidecer ao

se deparar com um fantasma não teria sido tão ruim se o

seu papel seguinte ou anterior tivesse sido como um

médico, advogado ou empresário de sucesso. Contudo,

os filmes hollywoodianos da época relegavam aos negros

os personagens subservientes, como mordomos,

empregadas e motoristas, ou que apareciam na tela só

para representarem malandros e bufões estereotípicos.

O famoso ator Willie Best pôde tremer o queixo

diversas vezes em uma série de filmes de terror,

incluindo O castelo sinistro (1940) e Veleiro fantasma

(1942). Outras figuras engraçadas constantes como

Eddie Anderson e Mantan Moreland também ficaram

conhecidas pela habilidade de arregalar os olhos e

tremer os joelhos nas horas de pânico e medo em filmes

como A volta do fantasma (1941) e A vingança dos

zumbis (1943), respectivamente.

Para uma gama mais ampla de imagens na tela, o

público podia sempre contar com filmes de elenco

totalmente negro sendo produzidos especificamente para

um mercado negro ansioso para se ver representado

dessa forma emocionante, poderosa e relativamente

nova de mídia de entretenimento. Os “filmes raciais”,

como foram chamados, eram majoritariamente

produzidos por companhias pertencentes a brancos que

chegavam à conclusão de que havia dinheiro a ser feito,

mas várias companhias cinematográficas negras

surgiram para preencher o buraco também. O popular

ator Spencer Williams Jr. escreveu e dirigiu vários filmes

estrelados por negros na década de 1940, incluindo o

conto de horror Son of Ingagi (1940), no qual uma

cientista pesquisadora mantém uma criatura da selva

africana em seu porão até que ela escapa para perseguir

os habitantes da casa. Com o filme Vodoo Devil Drums

(1944), do produtor Jed Buell, os frequentadores de

cinema viram pela primeira vez “A Dança Virgem da

Morte!” e “O Altar das Caveiras!”. Diferentemente dos

filmes protagonizados por brancos, onde os negros eram

usados majoritariamente como alívio

,

é trazido à tona: Isabelle não é

haitiana “o suficiente” para praticar o vodu de forma

efetiva. Isabelle e Sylvia fazem as pazes. Sylvia entrega a

plantação para Isabelle, pois compreende seu não

pertencimento: “Eu não pertenço a este lugar”.

Chloe, Love is Calling You (1934) é um filme de terror

“com negros” racialmente intrigante, ainda que

controverso, já que aborda não só o mulato trágico mas

também a violência racial da era Jim Crow. É uma história

em que uma negra pobre, velha e praticante de vodu,

Mandy (Georgette Harvey), procura vingança pelo

linchamento de seu marido, Sam. Mandy é a “mamãe”

de uma filha jovem adulta, Chloe (Olive Borden, uma

atriz branca), que parece branca e sofre incômodos por

parte de negros e brancos em virtude de seu sangue

impuro. Chloe tem dois pretendentes. O primeiro é Jim,

um homem “de cor” (interpretado pelo ator branco Philip

Ober) apaixonado e sofredor que tem uma gota de

sangue negro nas veias e não é amado pela jovem. O

segundo é Wade (Reed Howes), um homem branco que

acabou de chegar na cidade para cuidar de uma

plantação de coníferas na região e, de início, toma Chloe

por branca. As preocupações com a censura foram

evitadas ao escalar atores brancos para os três papéis, já

que uma mulher branca não seria mostrada nos braços

de um homem negro.

Chloe ama Wade desesperadamente, mas foge dele

por causa de seu segredo racial. Por sonhar em estar

com brancos, Jim a acusa de dar ouvidos ao seu “sangue

branco falando”. Chloe então apresenta a história

clássica da mulata trágica na qual ela é atormentada por

se ver aprisionada na negritude, ainda que seu corpo

denuncie pouco essa questão. A população negra afirma

ver a negritude em Chloe, como fica evidenciado na cena

em que um homem negro tenta atacar Chloe, dizendo:

“Bem amarelinha, é assim que eu gosto da minha carne”.

E o mesmo acontece quando duas mulheres brancas

olham para ela, comentando: “Ela é tão escura”.

A surpresa aqui é que Mandy trocou seu bebê negro

morto por Chloe num ato de vingança contra o pai

branco de Chloe, o Coronel, que ordenou o linchamento

de Sam. Na parte de Mandy, todos enxergam Chloe como

negra e a tratam assim. A lição em relação ao

preconceito racial é apresentada, ainda que de maneira

falha. Quando se confirma que Chloe é realmente branca,

ela (como Tarzan) exibe a superioridade inata da

branquitude.* Nessa história nos moldes de Cinderela,

Chloe não tem dificuldade nenhuma em se estabelecer

no (rico) mundo dos brancos. Recentemente empossada

da branquitude, a jovem pede que ninguém a chame de

“Chloe” novamente, proclamando com confiança: “Eu me

chamo Betty Ann”. Ela se movimenta com naturalidade

por sua mansão, usa vestidos brancos luxuosos e

entretém a elite branca com facilidade. Sua nova casa é

a epítome da ostentação, colossal e cheia de

ornamentos. Parece apropriado, então, que essa Casa

Grande, de frente para a plantação, seja o local de uma

resistência negra. Casas assim, como suas “escadarias

monumentais”, um “labirinto de portas, salões e quartos

gigantescos”, e servos domésticos uniformizados

pairando “silenciosamente em suas tarefas”, eram

símbolos cruéis de histórias e mitos da servidão.68

Mandy quer punir tanto o Coronel quanto Chloe pelas

traições sacrificando Chloe em um ritual vodu. Há

tambores retumbantes de vodu, fogo e dança nativa.

Mandy se veste como o espírito vodu Barão Samedi. Mas

tudo dá errado… para os negros. Jim tenta resgatar Chloe

das garras de Mandy, mas é mortalmente ferido,

deixando-a para ser salva por Wade. Chloe, como Betty

Ann, e Wade finalmente encontram o amor como um

puro casal branco.

Chloe, assim como The Love Wanga e The Devil’s

Daughter, não provoca sustos de verdade. Contudo, os

três filmes encaram de frente o assunto das políticas

raciais. Chloe, em particular, se destaca por sua atenção

à violência racial. Filmes dessa época eram criticados por

falharem ao lidar com racismos do tipo, como revelado

na coluna “Camera Eye” (1933) do jornal The Harlem

Liberator: “Dificilmente ouvimos uma palavra sobre

linchamentos, trabalho forçado, arrendamento rural ou

presidiários acorrentados trabalhando. E quando são

debatidos, esses assuntos são vistos de relance”.69

Contudo, Chloe dá uma rara atenção ao linchamento. O

vodu de Mandy “realmente fala” quando ela volta para

Louisiana, o estado onde Sam encontrou o seu fim. “Óia

lá. Óia lá. A véia árvore do enforcado. Onde us branquelo

mataro o meu Sam e os cachorro rasgaram ele em

pedaço. Tô aqui, Sammy. A sua Mandy vortô pra

amaldiçoá o Coronel e os branco.” A morte de Sam no

filme, ordenada pelo dono da plantação, o Coronel, não é

contestada, mas descartada: “Eu demiti Sam. Não

lembro o motivo”. É possível ler o relato do Coronel sobre

o fim de Sam de diferentes maneiras. Sua frieza serve

para implicá-lo em um racismo que considera a vida

negra como algo sem importância. Ou a leitura pode ser

literal, dada a época, na qual a vida negra não tinha

valor. O Coronel explica que Sam, ao ser demitido, bateu

nele. Por esse motivo, o Coronel explica de forma direta:

“Sam foi linchado”. É nessa injustiça que Mandy se foca

durante todo o filme: “Não vai demorar muito, Sam… Eu

vou fazer o meu vodu. O trovão vai rugir e vai chover

raio. E o diabo vai andar na sepultura de um branco.”

Contudo, o filme não se aprofunda mais na questão

acerca do tratamento dos negros na era Jim Crow. Mandy

é mostrada como louca, e assim sua obsessão pelo

linchamento de Sam fica mais fácil de ser ignorada. No

fim do filme, o Coronel exige a prisão imediata de Mandy,

que está fugindo da cena do crime, dizendo: “Não

queremos linchar ninguém”. A frase “não queremos

linchar ninguém” insinua que, se Mandy continuar a

correr, então os brancos da comunidade vão ter que se

incomodar com o linchamento dela também.

O outro personagem negro central, aquele que mina

até mesmo a ilusão de um momento revolucionário no

filme, é o servo doméstico do Coronel, Ben (Richard

Huey). Uma típica representação do negro subserviente,

Ben é um servo feliz e grato, leal ao seu empregador

branco, que chega até mesmo a espionar Mandy e outros

negros da plantação para contar ao Coronel tudo o que

eles fazem. É Ben que revela ao Coronel que Mandy

voltou para Louisiana com o fim de “colocar um vodu no

senhor”. Ben chega a invadir a cabana de Mandy, junto

com o Coronel e Wade, para revirar os pertences dela.

Com os olhos arregalados e cheio de medo, Ben revira a

“bolsa de vodu” de Mandy, encontrando roupas de bebê

que foram usadas pela filha do Coronel, a qual todos

pensavam que havia se afogado. Por fim, quando um

médico procura confirmar que o bebê negro de Mandy

tinha morrido, e não a filha branca do Coronel, ele leva

Ben em sua companhia para exumar o bebê em busca de

uma evidência conclusiva. O doutor, triunfante, reporta:

“O cabelo é crespo”.

CONCLUSÃO

O amor estava no ar na década de 1930, mas estamos

falando do gênero do terror, e a estrada para a paixão,

de forma esperada, era cheia de curvas mortais.

Macacos, vodu, nativos e zumbis tinham o costume de

atrapalhar assuntos do coração. Parte do terror residia no

fato de que essas monstruosidades se intrometiam em

assuntos de corações brancos. Personagens monstruosos

como Kong, Murder, e até mesmo a Múmia, sabiam como

estragar uma noite de amor para Ann, Madeline e Helen,

respectivamente, ainda que tentassem ganhar a afeição

dessas garotas de pele menos pigmentada. Isso era algo

assustador e sério, já que o público médio (branco)

“consideraria extremamente abjeto o aprisionamento de

cristãos brancos por nativos de pele escura. E ainda pior,

pois, como as vítimas de feitiçaria vodu costumavam ser

mulheres nessas narrativas iniciais e amplamente

racistas […] isso atacava a paranoia racial

profundamente arraigada”.70 Que sorte a nossa haver os

cavaleiros brancos que cavalgavam para salvar o dia e

resgatar suas amadas da vilania, não? A lição aqui é que,

,

ao ser vítima de algum tipo de intruso maligno de pele

mais pigmentada, a pureza racial e sexual era desafiada,

mas, por fim, restaurada.

De fato, não há amor maior para um homem (ou

gorila) do que o amor de uma mulher branca pura. Mas ai

daquela que negociar com o mal e distribuir a maldade

— não existe pecado maior. Envolvidas nessas relações

sórdidas, estavam as Klilis, Mandys e Juanitas. Essas três

mulheres amaldiçoadas foram longe demais para

continuar vivas. De maneira interessante, embora as três

tenham utilizado a espada metafórica do vodu em vida,

nenhuma delas foi morta por ela. Em vez disso, homens

decidiram o destino dessas mulheres. Klili foi

estrangulada por um homem (miscigenado), Mandy foi

perseguida pelos homens brancos e a bala nas costas de

Juanita foi disparada por um homem branco. Essas

mulheres, com seus corações negros, estavam ainda

mais obscurecidas por conta de sua relação com o vodu.

Contudo, os mais acentuados desdém e desprezo foram

reservados para Juanita, uma mulher branca que, por

vontade própria, se submeteu e se aliou ao mundo dos

negros.

Certamente alguns poderiam dizer que o terror

precisa estar situado em algum ponto, e nesses filmes é

uma eventualidade que ele se encontre entre pessoas

negras e em locais majoritariamente negros. Contudo,

nos filmes desse período, o foco não recai tanto no terror

(ou no amor), mas na representação dos negros como

figuras pavorosamente horríveis, o que configura uma

diferença fundamental. Esses não são filmes de terror

modernos em que os monstros simplesmente surgem

para retalhar e torturar pessoas; mas são filmes em que

não basta localizar o terror no monstro (por exemplo, um

gorila): o monstro também precisa ser enegrecido. Além

disso, se esse monstro… enegrecido… tem relações

sexuais com uma nativa negra, o efeito é maior do que

aquele causado por um simples “Bu!”; quando isso

acontece, o assunto passa a ser a natureza nojenta dos

negros. A maldade negra sendo jogada de um lado para

o outro, os negros obedientes, as mamães pretas, os

malandros, todos são utilizados como estofo para a

ridicularização racial e para assegurar a supremacia

branca. Esse é o verdadeiro terror desses filmes.

De modo representativo, ao longo dos anos seguintes,

as coisas não ficariam mais fáceis para os negros. A

longo prazo, por exemplo, o Haiti e a zumbificação

seriam ainda mais explorados na cultura popular. Na

imprensa, os haitianos continuariam a ser retratados

como figuras perversas e contaminadas por meio de

bordões que davam conta de que o “povo dos barcos”

(em busca de liberdade política e econômica) estava

chegando, levando não só vodu para os Estados Unidos,

mas também doenças (tuberculose e AIDS).71 O terror

continuava a implicar os negros em zumbificação,

acrescentando também um pouco de satanismo (Coração

satânico [1987]) e canibalismo (Zumbiz [2005]).

Na década seguinte, os anos 1940, o progresso

continua a ser lento para os negros em filmes de terror.

Na verdade, o gênero estava regredindo ao escalar

negros como bufões e alívios cômicos, além de dar ainda

mais destaque para a performance do malandro em

filmes de susto como The Body Disappears (1941),

estrelando Sleep ’n’ Eat, e O rei dos zumbis (1941), com

Mantan Moreland. Vislumbres de esperança surgiram

para os negros com o retorno de um diretor negro,

Spencer Williams. Os “filmes negros” de terror de

Williams tinham monstros, o diabo, e uma boa dose de

lição de moral para acompanhá-los. Mas, primeiro,

teríamos que enfrentar outro filme de macaco: Son of

Ingagi (1940), um filme meio-macaco, meio-humano de

Williams.

* Para uma mentalidade supremacista branca, tudo o que destoa da

norma (homem branco heterossexual cisgênero, cristão e classe

média) são animalizados, mas o racismo anti-negro vitimiza este

grupo com mais violência simbólica explícita como a “habilidade de

acasalar com o animal”. Para Aph e Syl Ko, a categoria de animal foi

uma invenção colonial que tem sido imposta a humanos e a animais:

aos primeiros porque justifica serem tratados como os segundos; os

segundos porque é naturalizado que sejam violados. Ao investigarem

as noções de “humano” e “humanidade” elas compreenderam que a

categoria “animal” opera como ferramenta de opressão em relação

a grupos racializados, pois animalizar humanos (racializados) é uma

forma de justificar a exploração, violação e exposição — bem como o

“nojo” proveniente da “bestialidade” essencializada. Ver: Ko, Aph;

Ko, Syl. Aphro-ism: essays on pop culture, feminism, black veganism

from two sisters. Nova Iorque: Lantern Books, 2017. [NE]

* O termo é pejorativo. A palavra mulus, no latim, faz referência a

“mulo”, o animal híbrido, estéril e produto do cruzamento do cavalo

com a jumenta, ou da égua com o jumento. Por influência espanhola,

o termo passou a designar um mulo jovem, e foi pela analogia com a

origem mestiça do animal que a palavra ganhou tom pejorativo para

pessoas negras com a pigmentação mais clara. [NE]

* Conforme diz Grada Kilomba em Memórias da Plantação (Cobogó,

2019): “No mundo conceitual branco, o sujeito Negro é identificado

como o objeto ‘ruim’, incorporando os aspectos que a sociedade

branca tem reprimido e transformando em tabu, isto é,

agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por

coincidir com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o

sujo, mas desejável – permitindo à branquitude olhar para si como

moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa,

em controle total e livre da inquietude que sua história causa”. [NE]

HORROR

NOIRE

1940

BANDIDOS ATERRORIZANTES E

MISERÁVEIS MENESTRÉIS

Ao montar esta horrível orgia Que paralisa

no escuro de medo, Os filmes cometem

um erro; Eles erram a mira..

— JAFFRAY (174)1

O terror ganhou forma rapidamente, e vários realizadores

pegaram alegremente o bonde do terror, fosse se

especializando no gênero ou diversificando seu portfólio

ao acrescentarem filmes de terror no conjunto de suas

obras. Esse grande interesse logo resultou em uma

abundância de filmes desse tipo, e o público, que antes

formava filas para sentir o gostinho do medo, começou a

ser bombardeado por uma grande oferta (geralmente

rudimentar e banal); por isso, o público de terror

começou a escassear.

À medida que os filmes de terror da década de 1940

encontravam bilheterias cada vez mais anêmicas, a

indústria do cinema respondeu ao decréscimo na venda

dos ingressos com um sistema pareado de produção e

distribuição de filmes. Havia os filmes A, com grande

apoio financeiro, e os “filmes B”, como os filmes de

terror, com orçamentos e promoções menores.1 Os dois

tipos de filme, A e B, às vezes eram vendidos de uma vez

só, assim, quando o público fizesse fila para um “filme de

qualidade A”, como o vencedor do Oscar A grande ilusão

(1949), as pessoas também teriam a opção de ver um

filme de terror como alguns dos inúmeros filmes B de

múmia que entravam em circulação: A mão da múmia

(1940), A tumba da múmia (1942), A sombra da múmia

(1944) ou A praga da múmia (1945). Frequentemente

dois filmes B eram exibidos para que os clientes

pudessem, talvez, aproveitar uma tarde de monstros.

Mesmo com uma tática de marketing esperta de exibir

dois filmes de uma vez só, os filmes de terror

continuaram a ter dificuldades. Talvez as atrocidades da

Segunda Guerra Mundial, cuja parte mais repulsiva

mirava em civis, como o Holocausto e as bombas

atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki, fossem

bem mais assustadoras e inescapáveis.2

O terror mal começara a ganhar fôlego e já estava

sendo ameaçado. Os monstros do famoso estúdio

Universal se tornaram embaraçosamente derivativos,

com a dupla de comediantes Bud Abbott e Lou Costello

“esbarrando” nos monstros em muitos dos seus filmes de

comédia pastelão. O RKO, o estúdio que produziu King

Kong (1933), sob a direção de Val Lewton, ofereceu uma

safra mais original de filmes, como Sangue de pantera

,

(1942). Sangue de pantera foi uma inovação rara o

gênero na época, pois muito do terror dos anos 1940 se

baseava no estilo homem-vestido-de-macaco, como O

gorila matador (1940) da Monogram Pictures.

Enquanto o gênero de horror estava começando a se

desfazer, o tratamento representacional dos negros nos

filmes, especialmente em filmes de terror “com negros”,

não melhorou. Após cinquenta anos de participação no

gênero, os negros ainda eram relegados a papéis de

figuras primitivas, nativos das selvas ou empregados de

brancos. A mudança mais dramática em relação à

representação de negros nos filmes de terror durante a

década de 1940 apenas agravou os problemas, pois os

menestréis do fim do século XIX e início do século XX

foram ressuscitados para criar comédias de terror nas

quais os negros eram apresentados como tolos

profundamente assustados — figuras absurdas e cômicas

cujos defeitos intelectuais (como a fala errada),

inferioridade cultural (como correr atrás de galinhas) e

tiques físicos (como arregalar os olhos) provocavam riso

e escárnio. Diferente do nativo e do servo, que

geralmente eram escalados como meros figurantes em

filmes de terror e se moviam silenciosamente nas cenas,

os papéis de negros assustados e cômicos (como vieram

a ser conhecidos) eram papéis coadjuvantes substanciais

e centrais aos enredos. O gênero só olhou para os negros

quando o terror se juntou ao humor, com atores cômicos

como Mantan Moreland e Willie “Sleep ’n’ Eat” Best

sendo convocados para fazer suas “melhores”

performances de malandros tolos.

De maneira mais significativa, o “terror negro” voltou

nessa década, e, graças ao cineasta Spencer Williams Jr.,

o gênero do terror viu algumas das suas histórias mais

intrigantes, caracterizações únicas e tratamento

aprofundado da vida e cultura negras. Os filmes de

Williams focavam na batalha entre o bem e o mal,

embebidos em religiosidade negra, e suas histórias eram

centradas em mulheres. Os filmes de Williams

questionavam como os cineastas negros, excluídos de

Hollywood e com orçamento apertado, poderiam trazer

algo tão inspirador para o gênero. Em resumo, este era o

dilema em relação à participação dos negros em filmes

de terror da década: representações proeminentes e

horrendas, ou representações promissoras e de alcance

limitado.

BRIGA DE MONSTROS

Os filmes de terror “com negros” lançados ao longo da

década evidenciam o quão ruim as coisas estavam para

os negros. A morta-viva (1943) é um filme situado no

Caribe, na ilha de St. Sebastian pós-colonização, em uma

plantação de açúcar e numa selva ao redor.3 Para os

negros no filme, St. Sebastian é uma ilha construída pela

morte por causa de sua antiga história de amor com a

escravidão. O filme começa de forma pejorativa com

uma mulher branca, Betsy (Frances Dee), ignorando de

maneira casual e acrítica as atrocidades da escravidão

enquanto conversa com um homem negro descendente

de escravizados:

COCHEIRO (CLINTON ROSEMON, NÃO CREDITADO): O barco

enorme trouxe há muito tempo os pais e mães

de todos nós, acorrentados no porão de um

navio.

BETSY: Eles trouxeram vocês para um belo lugar,

não é?

COCHEIRO: Se você diz, senhorita, se você diz…

Embora o filme se esforce para mostrar que a história da

escravidão e seus efeitos continuam a afetar os negros e

sua existência na ilha, essa cena em particular funciona

para ilustrar como os cineastas não conseguiam deixar

de diluir as mensagens do tipo com alguma fantasia pós-

colonial de exotismo e beleza primitiva. St. Sebastian

pode chorar por causa do sangue negro derramado

(como Ti-Misery, o calcês selvagem de um navio

negreiro, faz simbolicamente durante a trama), mas o

filme trabalha duro para convencer o público de que o

Caribe, ainda assim, é um ótimo lugar onde tirar férias.

Humphries explica a cena da incompreensão de Betsy da

seguinte maneira: Betsy “só enxerga a beleza ao redor

dela, a beleza que é construída pelo discurso colonial

para o benefício daqueles que vivem dos frutos do

trabalho escravo. […] Seria difícil representar e sumarizar

a cegueira social e econômica de maneira mais

persuasiva”.4 O modo como Betsy enxerga St. Sebastian

pela primeira vez é reminiscente de Zumbi branco

(1932), quando o casal apaixonado, Neil e Madeline, se

surpreende pelo fato de o Haiti não ser o local

paradisíaco que eles esperavam para o seu casamento. A

habilidade de Betsy (de Neil e Madeline) de estar entre

tantos negros sem conhecê-los fornece entendimentos

surpreendentes sobre a repressão de culturas e histórias.

A morta-viva apresenta vários negros praticantes de

vodu que passam um tempo considerável “assustando”

os brancos com batuques de tambores e fazendo rituais.

Essa restrição dos negros ao estereótipo significa que o

filme mais se interessa em focar nos “problemas

psicológicos do povo branco” em vez de demonstrar

qualquer consideração, ou engajamento, em relação aos

personagens negros.5

Em A morta-viva existe, de forma esperada, um zumbi

entre os negros — Carre-Four6 (Darby Jones). Ele

caminha silenciosamente e de forma agourenta, nunca

representando uma ameaça até receber a ordem de

invadir uma casa em uma plantação branca para

sequestrar uma mulher branca. Obviamente, ele não

realiza a última parte da missão, já que homens negros

podem apenas olhar (o que talvez já seja ameaçador o

suficiente), mas jamais tocar. Carre-Four não é o único

zumbi da ilha; também há Jessica, uma mulher branca

que pode ou não ser uma zumbi. Há muito para se saber

acerca de Jessica enquanto os protagonistas brancos

lutam para reclamar a alma dela e os homens brancos

lutam pelo seu amor. Contudo, a história de Carre-Four

não merece ser explorada, e ninguém está interessado

em salvar sua alma.7 Também há Alma (Theresa Harris),

que mantém a tradição de seus ancestrais escravizados

de guardar luto quando uma criança negra nasce, mas

que fica “feliz em um funeral”. No filme, as lágrimas de

Alma (que não são vistas) são alinhadas e suplantadas

pelas lágrimas de Ti-Misery, o calcês transformado em

um irrigador da plantação, que parece chorar quando a

água do equipamento flui. No filme, a história da

escravidão na ilha é representada por Ti-Misery. O filme

nega aos vivos uma chance de recontar completamente

essa história de escravidão. Em vez disso, Ti-Misery, pelo

uso do simbolismo, filtra e carrega as histórias de

escravidão dos negros vivos de St. Sebastian. Fechando o

estranho grupo, que é visto pelos “olhares confusos dos

protagonistas brancos”,8 há um cantor onisciente de

Calypso representado por Lancelot Pinard, também

conhecido como Sir Lancelot. Lancelot contribui com o

filme armando fofocas, inventando histórias e também

com um aviso sombrio sobre o destino das pessoas em

uma de suas músicas de Calypso.

O que fica evidente nesse filme é que a negritude é

tão infecciosa que coloca os brancos em risco,

especialmente as mulheres brancas, que são

enfraquecidas pelo seu encontro com a negritude. No

filme, duas mulheres brancas se tornam vítimas da

cultura negra. A primeira fica obcecada por mitos e pelo

poder do vodu e, por isso, transforma uma outra branca

indefesa em zumbi. O crítico de cinema do New York

Times, Bosley Crowther fez pouco caso de A morta-viva,

afirmando delicadamente que o filme “acaba com todo o

respeito que alguém pode ter por fantasmas

ambulantes”.9

Dois anos depois, em 1945, a RKO (sem Val Lewton) fez

uma continuação de A morta-viva, com o título de

Zumbis na Broadway. Esse filme de terror tomou um

rumo cômico, assim como vários filmes feitos durante a

década de 1940, ao focar nas palhaçadas de Jerry Miles

(Wally Brown) e Mike Strager (Alan Carney), que são

parceiros como Abbott e Costello. O filme fala sobre os

esforços de Jerry e Mike a fim de encontrar um zumbi de

verdade para a abertura de um clube em Nova York

chamado A Tenda do Zumbi. A dupla viaja para San

Sebastian e são recebidos na ilha por uma canção de Sir

,

Lancelot que interpreta um Calypso que resume o

destino vindouro deles por meio de uma rima alegre. O

ator Darby Jones também está de volta no papel do

zumbi silencioso e discreto, embora seu nome tenha sido

mudado para Kolaaga e ele tenha ganhado um novo

mestre na forma do dr. Paul Renault, interpretado por

Bela Lugosi. A presença de Lugosi oferece um pouco de

humor intertextual para os fãs de terror quando ele diz

“Você já me viu criar um zumbi [antes]”, fazendo uma

homenagem ao seu papel no primeiro filme de zumbis,

Zumbi branco (1932). Kolaaga é representado de

maneira séria, sem efeitos cômicos. É explicado que

Kolaaga, “tomado” por Renault, está sendo forçado a

sequestrar vítimas para zumbificação, além de realizar

serviços domésticos na assustadora mansão de seu

mestre. No filme, Kolaag realmente captura uma mulher

branca e a entrega a Renault, que opta por não

transformá-la em zumbi após ver sua beleza. E mais:

nesse filme Kolaag é ainda mais empoderado, pois ele se

volta contra o seu mestre, recusando-se a matar pessoas

sob as ordens dele, e, em vez disso, acaba matando

Renault (com uma pá). O filme mostra os nativos como

primitivos seminus e faz referência aos tambores vodu

com suas “batidas mortais” que enlouquecem os

brancos; os “nativos das montanhas” também dançam

ao redor do fogo com lanças. O humor do filme é

performado em sua maior parte por Jerry e Mike, que

chega até mesmo a aparecer em cena usando pintura

blackface (enganando os nativos, que pensam que ele é

negro).

FIGURA 3.1 APENAS A SOMBRA DE UM HOMEM NEGRO PODE ENTRAR NO

QUARTO BRANCO EM A MORTA-VIVA.

RKO/Photofest

O filme de terror “com negros” Pongo, o gorila branco

(1945) ganhou destaque pelo emprego de mais de uma

dúzia de atores negros numa época em que os papéis

diminuíam por causa das restrições orçamentárias dos

filmes B. Aqui, a maior parte dos negros escalados é de

figurantes — parcialmente vestidos e sem falas. Eles

guiam um time de cientistas brancos pelo “continente

escuro” e por uma terra “não explorada pelo homem

branco” em busca de um grande achado antropológico,

um valioso gorila branco, ou “pongo”, que se acredita ser

o elo perdido. Um violento gorila negro — que ataca

pongo, mas perde a luta e paga com a sua vida — não é

desejado, sendo devolvido para a floresta pelos homens

brancos quando é capturado por acidente. Quando os

nativos fazem algum barulho, isso ocorre apenas por

breves momentos, como quando eles bajulam as roupas

europeias ou quando gritam no momento em que pongo

os esmaga até a morte. Apenas um sortudo adulto

nativo, Mumbo Jumbo (Joel Fluellen), consegue falar

“bwana” e se oferece para ser o Porteiro #1”.10 No filme,

Mumbo Jumbo, assim como Carre-Four, também tem a

oportunidade de encostar numa mulher branca, mas não

o faz. E assim como Carre-Four e Kolaag, pouco se sabe

sobre Mumbo Jumbo enquanto ele se junta ao batalhão

dos muitos negros que são tratados como objetos (de

trabalho), e não como sujeitos, nesses filmes.

Considerar Pongo, o gorila branco como um filme B é

um ato de generosidade. O filme é barato e se apoia em

uma boa quantidade de filmagens antigas de animais

bebendo água para esconder um roteiro mal escrito e

problemático. Contudo, Pongo parecia um filme A e digno

de prêmios perto de seu doppelgänger O gorila branco

(1945). A maior parte de O gorila branco é uma mistura

bagunçada de filmagens arquivadas e cenas de um

curta-metragem mudo de 1915 chamado Perils of the

Jungle. Esse filme caótico é basicamente um filme de

guerra racial entre um gorila negro, Nbonga, que faz de

um raro gorila branco, Konga, um “pária” na floresta por

ser diferente.11 Os dois brigam ao longo do filme, onde o

gorila negro representa o “monstro com o peito cheio de

ódio”, o instigador. De maneira previsível, o filme

acontecia em algum “país ruim” da África, no qual os

nativos “odiavam o homem branco” e onde os brancos

temiam os batuques dos tambores nativos. Quando o

gorila branco é morto por um contrabandista branco, ele

é altamente elogiado, como gorila negro, Nbonga,

lamentando pelo nobre e caído guerreiro branco que só

estava lutando por sua raça em “uma batalha pela

supremacia da selva”:12

Você sabe que eu fiquei meio triste de ter que

matar aquele gorila branco. Ele parecia quase

humano. […] Sua morte pareceu lançar um

feitiço de solidão na floresta […] um tributo

silencioso ao seu fim […]; Eu quase posso vê-lo

[o gorila negro] ao descobrir o pária branco

deitado como se estivesse dormindo. Seus

esforços para fazê-lo lutar. E então a mudança

[…]. Sua surpresa ao olhar para a figura imóvel.

Um tipo de emoção humana o avassala. Então, a

lenta conclusão de que o pária está morto. E o

instinto animal retorna, o instinto de enterrar e

esconder os restos daquele que caiu pelas mãos

dos exploradores da selva. Um gesto de perdão

assim como um canto de morto para o pária da

sua raça — o gorila branco.

No fim o público fica sabendo mais sobre o gorila branco

do que sobre Carre-Four, Kolaag e Mumbo Jumbo juntos.

REFORMANDO HOLLYWOOD, REINVENTANDO

A IMAGEM NEGRA

Preparando-se para uma nova década cinematográfica,

em dezembro de 1939, Spencer Williams e uma lista

enorme de estrelas do terror negro, incluindo Clarence

Muse (Lua negra, Zumbi branco, O fantasma invisível),

Laura Bowman (Drums o’ Vodoo, Son of Ingagi) e Earl

Morris (Son of Ingagi), se encontraram para discutir como

fazer frente aos “tipos derrogatórios e estigmas”

infligidos aos personagens negros em filmes de todos os

gêneros.13 Cineastas independentes, negros ou não,

haviam desaparecido completamente na época; logo, a

grande parte das representações vinha de Hollywood.

Pedir mudanças, contudo, era uma proposta arriscada,

pois Hollywood era a principal empregadora e a indústria

já havia mostrado que podia e iria trabalhar ao redor de

uma presença negra, como Williams “sabia que falariam

de um lugar de fraqueza, das fileiras dos filmes B, de

papéis prevalentemente servis”.14 Muitos artistas negros

já estavam se mantendo calados “sobre a insatisfação e

raiva que sentiam pela falta de papéis decentes. Assim

como as estrelas brancas, eles sabiam que falar mal da

indústria não lhes daria nada além de uma passagem de

volta para o local de onde haviam saído”.15 A outra

alternativa era seguir adiante com o trabalho em

Hollywood, atuando como agentes de mudança onde e

quando pudessem.

Muitos negros optaram por falar sobre o tratamento

que recebiam em Hollywood. Em 28 de dezembro de

1940, o ator Clarence Muse tornou pública a sua

esperança de um novo ano que traria uma melhora no

tratamento da imagem dos negros:

DE ALGUMA FORMA, EM ALGUM LUGAR, PRECISAMOS TER UM

GRANDE FILME NEGRO. ESSA é uma resolução séria

[…]. Uma grande história negra, grande o

suficiente, boa o suficiente para ser lançada por

uma grande empresa como qualquer outro filme

[…]. Inspirador, ousado, cativante e verdadeiro

para com a vida negra em todos os seus

elementos […]. Eu decidi fazer o meu melhor

para encorajar isso […]. E se isso acontecer […].

Que Ano-Novo mais feliz!16

Ainda assim, o tratamento dos negros dentro e fora do

gênero terror era problemático, e depois de muita

deliberação a NAACP tentou encurralar Hollywood —

escritores, produtores, diretores, publicitários, diretores

de elenco e similares —, fazendo com que fosse assinado

um plano que melhoraria a posição dos negros na

indústria. Depois de uma resistência significativa em

Hollywood, que até então havia se recusado a ouvir, em

1942 a organização dos direitos civis finalmente

conseguiu uma reunião com produtores de cinema e

executivos de estúdios, e os incitou a liberalizar os

papéis oferecidos às pessoas negras.17 Contudo, os

negros eram culpados pelos seus próprios problemas; um

representante do estúdio Columbia Pictures disse:

“enquanto pessoas de cor […] aceitarem representar

papéis subservientes ou de bufões […] a venderem a

dignidade de sua

,

raça”, as representações

continuariam.18

Com a ausência daquilo que Cripps chamou de

“estética negra”, era difícil identificar o que constituía

uma melhoria de imagem.19 A indústria cinematográfica

tinha o seu “Código”, que os exortava a avaliar se as

imagens que produziam eram moralmente apropriadas

ou exploradoras. O Código era claro em relação ao que

se julgava estar fora dos limites; coisas como beijos

apaixonados, palavrões, perversões sexuais e

miscigenação. Imaginar um “Código” desse tipo para a

imagética racial era difícil, embora as melhores mentes

continuassem tentando desenvolver uma técnica para

lidar com Hollywood. Lawrence Dunbar Reddick foi um

dos mais conhecidos e respeitados entre as pessoas que

trabalharam para criar um plano de ação. Reddick

recebeu um doutorado da Universidade de Chicago em

1939, e naquele mesmo ano assumiu uma posição de

curador no (atual) Centro Schomberg de Pesquisa da

Cultura Negra, que é parte da Biblioteca Pública de Nova

York. Durante seu tempo lá (1939-1948), ele escreveu e

apresentou suas ideias acerca do tratamento dos negros

em todas as mídias, como livros didáticos, rádio, mídia

impressa e cinema. Em 1944 ele publicou suas ideias

sobre como lidar com Hollywood em um longo ensaio

acadêmico no Journal of Negro Education. Reddick

sugeriu que as instituições de censura, como o escritório

Hays, que administrava o Código, deveriam se esforçar

para “incluir o tratamento do negro no cinema” como

parte das regras.20 Além disso, para proteger o interesse

dos atores, Reddick propunha que “atores negros,

especialmente, deveriam ser apoiados quando

recusassem papéis de empregadas e servos”. Ele ainda

pediu ao Escritório de Informações de Guerra para banir

termos racistas como “crioulo”, “escurinho”, “pretinho”,

“fumaça”, “zambo” e “malandro” dos filmes com base no

fato de que tal linguagem poderia ser explorada pelos

inimigos dos Estados Unidos.21 Reddick continuou a

circular suas ideias acerca da reforma. A NAACP continuou

a pedir reuniões, nem sempre com sucesso. Aqueles em

Hollywood que tinham a mente mais aberta fizeram as

mudanças que julgaram apropriadas. Contudo, o

progresso no cinema era lento. O ator negro Spencer

Williams Jr. tomou para si a obrigação de efetuar

mudanças ao seguir adiante com o seu próprio plano de

oferecer representações dos negros feitas por negros.

MAQUIANDO O FILME DE MACACO

A primeira contribuição de Williams para a causa veio em

1940 com um “filme negro” de terror dirigido e estrelado

por ele. Contudo, o título do filme — Son of Ingagi (1940)

— era vergonhoso. O público de terror já tinha ouvido

falar sobre os míticos “ingagis” antes. Em 1930, o diretor

William Campbell apresentou um filme de terror “com

negros” infame e controverso chamado Ingagi, sobre

primatas, ou “ingagis”, e as mulheres congolesas que

carregavam seus filhos. Ingagi originalmente foi

apresentado como um documentário real e verdadeiro

que reportava as práticas estranhas e bestiais praticadas

pelas mulheres negras da selva. Ingagi terminava com

uma mulher negra acariciando um bebê meio-humano e

meio-macaco.

Estaria Williams imaginando Son of Ingagi como uma

continuação? Por que Williams indicaria uma conexão

com o filme antigo usando um título tão similar? Os dois

filmes não têm ligações; contudo, Son of Ingagi, dirigido

pelo diretor branco Richard Kahn, tem algumas

correlações com o filme original. Son of Ingagi conta a

história de um cientista que viaja para a África e volta

com um símio “meio-humano, meio-fera”, como a

criatura é descrita no pôster de divulgação do filme.

Além disso, o filme também força sutilmente a noção de

acasalamento entre espécies; afinal, de onde

exatamente vieram as crias de símio-humano? Por sorte,

as similaridades acabam por aí, com Son of Ingagi

tomando um caminho novo ao focar em negros da classe

média.

A primeira contribuição imagética significativa do

filme reside na escolha da figura que resgata ingagi: uma

cientista negra — dra. Helen Jackson (Laura Bowman),

uma pesquisadora rica, brilhante e de mais idade, que

exibe grande conhecimento em química, antropologia e

comportamento animal. Por meio da dra. Jackson, a

imagem do homem branco em um safári é recodificada,

embora a natureza exploratória de tais missões não seja

fácil de ignorar mesmo com a presença de um corpo

negro feminino. A dra. Jackson é vizinha e amiga de um

casal recém-casado em ascensão, Robert e Eleanor

Lindsay (Alfred Grant, Daisy Bufford), que estão

celebrando suas núpcias com amigos igualmente

ambiciosos. Aqui, mais uma vez, William quebra uma

barreira, mostrando os noivos negros e seu casamento.22

O filme inclui um número musical dos amigos de Lindsay,

representados pelo quinteto real Four Toppers. O filme

também inclui a representação do “proeminente” e

competente advogado sr. Bradshaw (Earl Morris), e o sr.

Nelson, um detetive interpretado por Williams.

FIGURA 3.2 A DRA. JACKSON SE PREPARA PARA ENCONTRAR O SEU FIM NAS

MÃOS DO INGAGI.

Sack Amusem*nt Enterprises/Photofest

FIGURA 3.3 SPENCER WILLIAMS JR. (DE CHAPÉU).

CBS/Photofest

Na noite do casamento de Robert e Eleanor, a fábrica

onde Robert trabalha é completamente incendiada,

deixando-o sem emprego e imaginando como poderia

sobreviver. A dra. Jackson coloca o jovem casal debaixo

das suas asas, legando a eles sua casa e suas posses.

Quando a cientista é morta após um encontro com o

símio enfurecido, o animal escapa do confinamento e

passa a vagar às escondidas pela casa, e assim assusta

os Lindsays, que haviam se mudado para a casa da dra.

Jackson. Eles então ligam para a polícia e pedem que o

caso seja investigado. O casal não sabia, mas a dra.

Jackson tinha 20 mil dólares escondidos em casa, além

do macaco assassino. Embora o gorila em Son ande ereto

e use calças e uma túnica, o filme não explora a conexão

símio-humano, lidando com o monstro apenas como uma

besta destruidora. Graças a “um grande elenco de cor” e

à locação do filme em uma comunidade negra, os

salvadores dos Lindsays não são homens brancos que

chegam cavalgando para derrotar a besta selvagem,

como era visto em tantos filmes de gorilas com temas

coloniais. Em vez disso, a comunidade negra se junta

para ajudar os Lindsays.

O detetive Nelson (Williams) chega para resolver o

mistério dos assassinatos ocorridos na casa, que agora

incluem a morte do advogado, Bradshaw, que, durante

uma visita, é estrangulado secretamente pelo gorila.

Contudo, o símio se mostra tão elusivo quanto

enganador — quando Nelson termina de fazer um

sanduíche para si mesmo, o símio o rouba enquanto

Nelson está virado de costas, o que surpreende o

detetive. Assim sendo, Williams traz um pouco de humor

para sua performance, revelando algumas de suas

habilidades cômicas que usaria no (controverso e

pastelão) papel televisivo de Andrew “Andy” Hogg Brown

na sitcom The Amos ’n’ Andy Show (1951-1953).

Contudo, Williams não é nenhum idiota no filme. Ele é

mostrado como uma figura ao mesmo tempo séria e

engraçada. Notavelmente, com Nelson em sono

profundo, Eleanor fica alerta tentando escutar

movimentos e é ela quem descobre o gorila — embora

desmaie e tenha que ser resgatada por Robert, pois

Nelson é nocauteado pelo animal. Nelson se redime no

fim ao recuperar a riqueza escondida e entregar aos

Lindsays para que possam seguir suas vidas alegremente

e viver juntos o sonho norte-americano.

Son poderia ser encarado como um filme “B” que seria

lançado junto com outro — baixo orçamento e destinado

ao público negro, duas características mortais para as

bilheterias. Contudo, o filme teve sucesso ao dar o

primeiro passo para a recuperação dos filmes raciais e da

representação dos negros neles. O esforço tinha a ver

com a missão pessoal de Williams de mudar o

tratamento dos negros nos filmes de entretenimento.

LUTANDO CONTRA HOLLYWOOD, O

DIABO NÃO PODE ME DERROTAR

Bem, deixe-me ver, havia um cinema negro

antes, Spencer

,

Williams se apresentou lá e fez

filmes relevantes. E havia público para isso. […]

Era uma cultura — cultura de cinema, cultura

negra — onde filmes sérios e relevantes eram

feitos.

— Charles Burnett, cineasta23

Natural da Louisiana, Spencer Williams Jr. entrou de

cabeça no mundo do entretenimento já adulto, depois

dos trinta anos de idade, após um tempo no Exército e

trabalhando no circuito de teatros, primeiramente como

ajudante e então fazendo pontas cômicas, também

contribuindo com alguns materiais cômicos para as

apresentações. Ele teve o seu início naqueles filmes

raciais cujo conteúdo era mirado em negros, mas feitos

por não negros. Williams apareceu em vários gêneros,

incluindo curtas musicais como Brown Gravy (1929),

faroestes como Harlem on the Prairie (1937) e dramas

criminais como Bad Boy (1939). Ele também foi um

escritor/roteirista creditado em filmes como a comédia

curta The Lady Fare (1929), Harlem Rides the Range e

Son of Ingagi, filmes nos quais ele também atuou.

Em 1983, quatorze anos depois da morte de Williams

em 1969, alguns de seus filmes foram encontrados e

recuperados em um galpão em Tyler, Texas (a duas horas

de distância de Dallas), pelo arquivista de filmes e vídeos

G. William Jones da Universidade Metodista Meridional,

em Dallas. Williams tinha um relacionamento especial

com a cidade de Dallas, tendo filmado e trabalhado por

lá em parceria com a Sack Amusem*nt Enterprise, que

lhe fornecia apoio em financiamento, distribuição e

produção. A Sack permitiu que Williams fizesse filmes

fora do sistema de Hollywood, que afinal o teria excluído,

enquanto detinha o controle criativo de seu produto.

A década de 1940 pertenceu a Williams. Ele dirigiu

doze filmes, todos eles entre 1941 e 1949.

Notavelmente, ele escreveu, produziu (com sua

companhia Amegro) e dirigiu O sangue de Jesus, um

“filme negro” de terror, em 1941. O filme, que marca a

estreia de Williams na direção, tem sido saudado com “o

filme racial mais popular já produzido”.24 O sangue

nunca foi vendido como um filme de terror, mas fugia de

classificações genéricas, sendo às vezes classificado

como fantasia e em outras como um drama religioso.

Contudo, se Sobchack estiver correto quando afirma que

o filme de terror lida com “o caos moral, a perturbação

da ordem natural”, especialmente a ordem divina, e

“ameaça a harmonia do lar”, então O sangue de Jesus é

um filme de terror quintessencial.25 O filme é

profundamente inspirado pela religiosidade cristã e é

centrado no tema do livre-arbítrio — escolher um

caminho de retidão ou de pecado. A ameaça ao lar é

introduzida quando a “Irmã” Martha (Catherine

Caviness), uma frequentadora da igreja e temente a

Deus, que vive numa pequena cidade rural, não

consegue persuadir seu marido Razz (Spencer Williams)

a ir à igreja nem para testemunhar o batismo dela. Razz

é considerado um pecador porque ele prefere caçar a ir à

igreja, e, em uma cena cômica, ele caça na fazenda do

vizinho, levando dois porcos como prêmio. O caos se

instaura quando Martha, ao voltar de seu batizado e

enquanto reza em seu quarto, é acidentalmente baleada

quando o rifle de Razz cai no chão. O rifle dispara, a bala

atravessa a parede do quarto e atinge Martha e sua

imagem de Jesus (branco). Ela é mortalmente ferida,

deixando Razz devastado. Mas esse é um filme de terror,

e a perturbação da ordem natural é esperada. Razz se vê

orando sinceramente por Martha, que está morta, mas

que ainda não foi endereçada ao Céu ou ao Inferno. De

maneira interessante, é Martha, e não Razz, quem tem a

sua fé desafiada. Aqui, mais uma vez, Williams se

distingue ao colocar uma mulher negra, assim como

fizera em Son com a dra. Jackson e Eleanor, no centro da

narrativa. Martha traz ainda mais profundidade na

representação da mulher. Ela é a antítese de Razz, um

marido relapso que cairia facilmente nas garras do diabo.

Logo, Martha é quem deve ficar vulnerável para se ter

certeza de que ela é uma mulher justa, e não hipócrita.

Já morta, Martha é recebida por um anjo que a leva

até a Encruzilhada, a junção entre o Inferno e/ou o Sião.

Martha, com muita certeza, escolhe o Sião, mas o Diabo

(James B. Jones, de chifre, capa e tudo) intervém,

enviando um “falso profeta”, o sedutor Judas Green

(Frank H. McClennan) como uma “tentação” para seduzir

a certinha Martha a testemunhar um lado da vida que ela

nunca viu. Ele dirige a atenção dela de Sião para a visão

de uma cidade iluminada e cheia de pessoas e música

alegre. Judas se torna o “bête noire da burguesia negra”,

pois sua fala ligeira e suave, assim como sua conexão

com o urbano, o tornam excessivamente mau.26 O

terreno de Judas é marcadamente diferente da vida rural,

sem glamour e cheia da poeira que é familiar para

Martha; logo, ele é capaz de atraí-la com roupas

elegantes ao mesmo tempo que a conduz pelo caminho

do Inferno, repleto de bandas musicais e casais

dançando em salões. Ao definir piedade e pecado dessa

forma, o filme não tenta esconder nada; é uma visão

direta da religião, “todas as superfícies” de seu

tratamento do bem e do mal.27

Judas primeiramente leva Martha ao Clube 400, um

lugar de classe para negros com mais dinheiro. Contudo,

Martha permanece brevemente por lá antes que o plano

verdadeiro seja revelado. Judas secretamente vende

Martha por 30 dólares a um colega chamado Brown

(Eddie DeBase), que está no clube esperando para pegar

a sua mais nova presa. Daí a narrativa de Williams, que

já é um conto moralizante, acrescenta um aviso para as

moças que metaforicamente “acabaram de saltar do

ônibus”, vindas da segurança do lar rural e recém-

chegadas na urbe traiçoeira. Brown leva Martha para um

bar decadente onde as mulheres recebem dinheiro para

dançar com homens (e talvez algo mais).

Enquanto o horror já havia prestado atenção nas

mulheres negras antes, frequentemente retratadas como

sacerdotisas vodu, raramente elas conseguiam ser

centrais e femininas. Mulheres negras não são elegíveis

para o pedestal simbólico onde as mulheres brancas são

colocadas pelos homens, para serem romantizadas,

olhadas com admiração, e terem seus corpos, suas

emoções e sua beleza protegidos. Esses momentos de

pura adoração tendem a ser reservados apenas para as

brancas, como Ann Darrow em King Kong (1933).

Contudo, Martha é uma personagem negra que chega

bem perto de ser colocada no pedestal. Razz sente sua

falta e reza incessantemente por ela. A última vez que

uma mulher negra se viu recebendo cuidados tão

atenciosos por parte de um homem, ela acabou sendo

estrangulada até a morte por ele (Klili, em The Love

Wanga [1936]). Ainda, Martha também é retratada como

uma “dama” sulista; por isso ela é um grande prêmio

para o Diabo. Quando Judas é enviado para tentá-la, ele

faz isso colocando-a em um pedestal, explorando a falha

de Razz em não reconhecer completamente não apenas

o valor daquela mulher, mas o que ela representa

enquanto uma dama. Nessa parte, Judas age como um

trapaceiro, confundindo Martha ao unir sexo

(sexualidade, atração sexual) com o feminino. Aqui há

uma diferenciação sutil e importante, distinguível em

grande parte quando comparamos a performance da

masculinidade de Judas, que é moldada pelo desejo e

pelos impulsos sexuais, com a performance de Razz mais

adiante no filme, que se concentra no amor e na

intimidade. Na verdade, o dilema de Martha é um conflito

em relação ao tipo de feminilidade que ela irá abraçar: a

“dama” ou a figura sexual em vestidos chiques e sapatos

(antes que ela seja “apagada”). Manatu argumenta que o

acesso e participação na feminilidade foi e continua

sendo negado às mulheres negras. Como resultado,

mulheres negras não têm a chance de lutar contra ou

escapar da performance feminina, incluindo o tal

pedestal.28 Notavelmente, a feminilidade que Martha

escolhe — ser uma dama respeitável e temente a Deus

— é o que lhe permite ter amor e romance (Razz) e

finalmente a assegura no pedestal.

Enquanto

,

está aprisionada com Brown no bar, Martha

cai de joelhos em oração, implorando perdão a Deus, e,

em resposta, uma guardiã celestial negra ajuda Martha a

escapar de seu destino. Sentindo-se restaurada e

empoderada, Martha (agora em um vestido esvoaçante e

angelical) volta para a encruzilhada. Durante a sua fuga,

os servos do diabo no bar aparecem, saem em seu

encalço e tentam apedrejá-la até a morte. A próxima

cena é uma das mais dramáticas e estilizadas do filme.

Cripps considera a imagética do filme como “diferente de

qualquer outra em filmes afro-estadunidenses”.29 Nas

cenas seguintes, assim que Martha chega na placa que

marca a encruzilhada, a placa se transforma em uma

grande cruz com uma imagem de Cristo. Martha,

prostando-se diante da cruz, é literalmente lavada pelo

sangue de Jesus, que escorre do corpo de Cristo pregado

na cruz acima dela. Por mais chocante que a cena seja

em aparência e simbolismo, também é significativa, pois

tem a ver com Martha negociando um estado complexo

de abjeção. Isto é, ela se encontra em um estado entre

objeto e sujeito. Martha representa vários níveis de

abjeção, já que ocupa uma posição limítrofe entre a vida

e a morte, e também entre um santidade falha mas nem

tão pecadora assim. Martha revela o quão traumático,

física e psicologicamente, pode ser o confronto com a

sua condição de ter sido separada do corpo (objeto) e

estar distante de sua característica humana/humanidade

(sujeito).

A escolha final de Martha, ficar com Deus, expelindo

assim aquilo que ela não deseja como parte do seu eu

subjetivo, é uma lição sobre rejeitar o “impróprio” e

“sujo”, substituindo-o por um “eu próprio e limpo”.30

Restaurada pelo sangue de Jesus, Martha de repente

acorda em casa. Ela e o agora crente Razz são reunidos

sob o olhar cuidadoso da guardiã.

Williams tomou muito cuidado com o seu primeiro

filme, buscando detalhes minuciosos para acomodar os

mais exigentes membros do público que poderiam

escrutinar sua mensagem religiosa. Ele apresenta o

(verdadeiro) reverendo R.L. Robertson e seu Coral

Celeste ao mesmo tempo que oferece um vislumbre

autêntico da igreja negra, de sermões até canções e

orações. Na verdade, os três primeiros minutos do filme

deixam evidente que se trata de uma produção que leva

a religião e sua iconografia a sério. A congregação fala

sobre os “dez mandamentos originais aceitos como a lei

civilizada” e que a religião deveria ser “praticada com

honesta sinceridade”. Bíblias, cruzes e retratos de Jesus

aparecem por todos os cantos. Hinos como “Good News”

e “Go Down Moses” são cantados pelo coral. O reverendo

Robertson realiza um autêntico batismo na beira de um

rio enquanto o coral canta e os paroquianos rezam e se

engajam em louvores e adoração.

O sangue de Jesus também populariza vários temas

que se tornariam centrais em “filmes negros” de terror

mais modernos a partir de 1990. Os temas de Williams,

de escolha entre o bem e o mal, tentação pela agitação

da vida (nortista) urbana versus a vida (sulista) humilde,

honesta e rural, com a figura de mulher salvadora e

árbitra moral, figuram de significativamente em filmes

como Def by Temptation (1990) e Spirit Lost (1997).

ALELUIA! ELOYCE GIST

Enquanto as mensagens de Williams e o estilo

cinematográfico eram duplicados várias vezes nos filmes

de terror, os próprios filmes de Williams não emergiam

de um vácuo cultural. Marca da vergonha (1927), de

Oscar Micheaux, usou o urbano, a música mundana e

tudo o que acompanhava o estilo de vida que esse tipo

de música incentivava como um aviso para as pessoas

permanecerem próximas às suas raízes (sulistas).

Seguindo os passos de Micheaux, a dupla de cineastas

formada pelo casal Eloyce e James Gist produziu dois

filmes por volta de 1930, Trem para o inferno e Veredicto:

inocente, que traziam temas relacionados ao bom/sul e

ao mau/norte. Trem para o inferno, aqui considerado um

“filme negro” de terror, é particularmente seminal. O

sangue de Williams lembra bastante a história de Trem

para o inferno, que é centrada em uma jornada, com

mensagens que ecoam o caminho para a retidão. A

iconografia do filme curto e mudo dos Gists pode ter

influenciado o filme de Williams, já que os dois

compartilham a figura do Diabo, encruzilhadas e imagens

de perdição. Embora não haja evidência de que Williams

tenha assistido ao filme dos Gists, fica claro que Williams

aplica em suas produções um estilo visto nos trabalhos

de Micheaux e dos Gists.

Gloria J. Gibson providencia uma das pesquisas mais

informativas sobre a vida dos Gists, Eloyce em

particular.31 De acordo com Gibson, Eloyce Gist nasceu

no Texas em 1892, e Washington, D.C. se tornou o seu lar

pouco depois da virada do século. Ela frequentou a

Universidade Howard. É dito que o pensamento de Eloyce

em relação à religião refletia suas próprias crenças na fé

baha’i e nas crenças de James, seu marido cristão

evangelista auto-ordenado. Eloyce trabalhou em parceria

com o marido, e suas contribuições para os trabalhos da

dupla são inegáveis, ainda que não sejam precisamente

conhecidas. Contudo, o filme mudo Trem para o inferno é

significativamente considerado fruto do trabalho de

Eloyce, já que o roteiro é amplamente de sua autoria,

além das várias cenas cujas filmagens foram preparadas

por ela. Os Gists não fizeram filmes para entretenimento,

mas como uma ferramenta para ajudar seu ministério. A

dupla viajou de igreja negra em igreja negra, de carro,

com seus filmes e equipamentos.32 Quando Gibson

entrevistou a filha de 82 anos de Eloyce, hom*oiselle

Patrick Harrison, no início dos anos 1990, Harrisson se

lembrou de como o casal exibia seus filmes: Eloyce

tocava piano e liderava a condução dos hinos na

congregação. Então, o filme era mostrado, seguido por

um pequeno sermão de James Gist. Os ingressos eram

vendidos com antecedência, ou uma coleta era realizada

no fim da celebração, e o dinheiro era dividido entre os

Gists e a igreja.33 Os filmes dos Gists foram bem-

recebidos, chamando até mesmo a atenção da NAACP em

1933, quando a organização entrou em contato com o

casal para oferecer apoio aos esforços realizados por

eles.

Graças ao trabalho de acadêmicos do cinema como

Gibson e S. Torriano Berry, que têm remontado e

digitalizado fragmentos de filmes, a história do cinema é

bem discernível. Trem para o inferno começa com uma

citação em que se lê “O trem para o inferno está sempre

trabalhando, e o Diabo é o seu engenheiro”, e em

seguida vem uma mensagem do Diabo: “Entrada grátis

para todos — apenas entregue sua vida e sua alma. Sem

devoluções — viagem só de ida”. O filme então mostra

um grupo de pecadores fazendo fila para pegar seus

ingressos: “sem devoluções — viagem só de ida

[assinado] Satã”. O trem dedica vagões para todos os

tipos de pecadores, uma narrativa apresentada por meio

das sinalizações feitas por Eloyce.34 Por exemplo,

aqueles que dançam em festas e clubes têm o próprio

vagão porque “a dança de hoje é indecente”, com Eloyce

associando a dança e a música ao lado mais pecaminoso

da vida. Aqueles que vendem álcool também possuem

um vagão: “há espaço no inferno para os TRAFICANTES DE

BEBIDA e seus seguidores”. O álcool é mostrado como a

porta de entrada para todos os problemas das mulheres.

Vemos uma personagem sendo encorajada a beber por

um homem, que então a guia até um quarto privado.

“Enganada pelo sussurro de um homem”, ela é mostrada

em seguida sozinha, cuidando de um recém-nascido. De

maneira interessante, também há uma cena relacionada

à reprodução, em que uma mulher morre apesar dos

grandes esforços de um médico. O cartão indica: “Ela

usou da medicina para evitar se tornar mãe. É MELHOR ela

se acertar com Deus, porque isso é assassinato A SANGUE-

FRIO”.

35 Também há outros pecados não identificados,

como apostas e assassinatos, assim como a

desonestidade e a mentira. O demônio tem um vagão

para os “desviados, hipócritas e ex-membros da

Igreja”.36 Tudo indica

,

que se trata de um trem muito

longo e com muitos vagões para acomodar todos os

pecadores; e nenhum deles evitará o julgamento e o

inferno.

Diferente de O sangue de Williams, não é mostrado ao

público que um retorno à religiosidade é possível depois

que alguém peca. Em vez disso, o pecador assim

permanece e embarca em sua jornada, com o trem se

movendo rapidamente na direção da “Entrada Para o

Inferno”. De acordo com Gibson:

o trem entra no Inferno com um estouro (por um

túnel), batendo e explodindo em chamas. O

Diabo circunda o trem para atormentar ainda

mais as vítimas. […] Na cena final, um homem,

talvez James Gist, afirma: “E assim eu mostrei a

vocês este quadro que pintei como uma visão

que tive depois de ouvir um sermão em um

culto”. Atrás dele há um grande pôster ou

fluxograma da jornada do trem para o inferno.

Essa cena pode ter servido como uma guia para

o sermão de Gist depois do filme.37

Após a morte do marido, Eloyce continuou sua jornada,

“viajando com os filmes, um projetor e um assistente por

algum tempo, mas logo chegou à conclusão de que não

conseguia aguentar sozinha as inúmeras

responsabilidades. As atividades de planejadora, diretora

e exibidora exigiam muito.”38 Ainda pior, o som deixou os

filmes mudos obsoletos, abrindo caminho para esforços

como os de Williams. Eloyce morreu em 1974. A

magnitude de seus feitos pode ser medida hoje pela

condição de seus filmes. De acordo com a Biblioteca do

Congresso, exibir tantas vezes as películas teve o seu

custo: “Os filmes foram exibidos tantas vezes que eles

literalmente desfarelaram nas emendas e foram

recebidos pela Biblioteca em centenas de pequenos

fragmentos”.39

As mensagens religiosas/“filmes negros” de terror dos

Gists e de Williams atuaram como poderosas

intervenções nos discursos cinematográficos que

envolviam os negros nas décadas de 1930 e 1940. Os

filmes de terror deram uma atenção dicotômica às

práticas religiosas dos negros, onde eram representados

como praticantes malignos de vodu ou (idealmente)

como cristãos fervorosos. Notavelmente, nem os Gists

nem Williams exploraram religiões negras de forma mais

ampla além do cristianismo. Williams, em particular,

tinha uma maneira de lidar a com religiosidade negra,

como mostrado no filme de 1934 da Sack Amusem*nt,

Drums o’ Voodoo, que examinava o vodu e o cristianismo

igualitariamente.

No filme, seguidores do vodu e do cristianismo

conviviam na mesma comunidade rural na Louisiana. O

letreiro inicial do filme mostrava os praticantes de vodu

como figuras malévolas por causa do batuque incessante

“às vésperas de um sacrifício”. Contudo, nenhum evento

do tipo acontece. Em vez disso, o mal surge na forma de

um vigarista cheio de estilo chamado obviamente de

“Tom Catt” (Morris McKenny). Aqui, Catt é muito parecido

com o Judas de Williams que persegue Martha, pois ele

deseja que uma jovem chamada Myrtle (Edna Barr)

trabalhe como um “agrado aos olhos” em seu bar. O

problema é que Myrtle não quer ter nada a ver com Catt

ou com seu bar. Outros lutam para que Catt não coloque

suas garras em Myrtle, incluindo um tio dela, que é

ministro da igreja, o Ancião Amos Berry ou Ancião Berry

(Augustus Smith), Ebenezer, o neto de tia Hagar, a bruxa

vodu local, e a própria tia Hagar (Laura Bowman). Hagar

usa sua magia para proteger a sobrinha do ministro. De

maneira significativa, ela tem o apoio do ministro, pois

ele anuncia: “Eu acredito que [ela] é a única pessoa por

aqui que pode expulsar Tom Catt desta comunidade”. Na

verdade, Hagar tem o apoio de toda a comunidade —

tanto a parte cristã quanto a vodu —, que deseja colocar

um fim nos modos perturbadores de Catt. É Catt quem

afasta as pessoas da igreja, mas é o trabalho de Hagar

que as une para declarar guerra contra Catt. Catt é

cegado, dentro da igreja, pela magia de Hagar. No fim,

atingido por Hagar, Catt cai em uma areia movediça e

morre. Tudo fica bem graças à união dos cristãos com os

praticantes de vodu, com os voduístas apresentando

uma religião negra diferente, mas nem um pouco

inferiorizada.40

Talvez Williams conhecesse o seu público e tivesse

optado por uma fórmula estritamente cristã que ele sabia

que funcionaria. O sangue de Jesus se provou popular e

lucrativo o suficiente para que a Sack Amusem*nt

oferecesse apoio ao segundo filme de Williams com uma

pegada sulista rural e religiosa.41 O próximo filme de

terror religioso de Williams, Go Down, Death (1944), é

centrado em Big Jim Bottoms (Williams), que está longe

de ser um personagem cômico. Em vez disso, Jim é o

dono de um clube noturno que também serve como um

parque de diversões para homens e mulheres de pouca

moral. A história faz um paralelo muito próximo com

Drums o’ Voodoo, pois Jim considera Jasper seu inimigo,

um jovem pregador (Samuel H. James) que cuida da

Igreja Batista Monte Sião, a qual está “acabando com os

negócios de domingo” no clube. Jim consegue a ajuda de

três “garotas de estilo”, ou prostitutas, para incriminarem

Jasper. Enquanto o ministro presenteia as mulheres com

bíblias e lê as escrituras para elas, as garotas o cercam,

colocam uma bebida em sua mão e o beijam

rapidamente, bem a tempo de Jim tirar uma foto.

Antes que Jim “exponha” Jasper e arruíne sua

reputação, a mãe (adotiva) de Jim, Caroline, descobre o

esquema e confronta o filho. Caroline, uma cristã devota

e frequentadora da igreja, exige as fotos. Caroline

também implora a Jim que reconheça Cristo para que

toda a família possa “estar junta no Além”. Em vez de

fazer isso, Jim zomba da mãe e ignora suas súplicas. Ao

som da canção “Nobody Knows the Trouble I’ve Seen”,

Caroline conversa em voz alta com o falecido marido,

Joe, e pede a ele que converse com Deus sobre Jim.

Caroline fica chocada ao ver a imagem fantasmagórica

de Joe aparecer, conduzindo-a até um cofre onde Jim

guarda a foto escandalosa e todas as cópias. O fantasma

de Joe abre o cofre para Caroline, e ela pega as fotos.

O uso que Williams faz do fantasma de Joe é muito

parecido com o uso de Martha em O sangue de Jesus, já

que ambos voltam dos mortos para falar com negros

sobre a experiência de pessoas negras. A história de

pessoas negras vivas é contada tão raramente na cultura

popular que chega a ser frequentemente representada

como se fosse contada pelos mortos. A eficácia de uma

comunicação desse tipo tem sucesso ou falha

miseravelmente, dependendo do lugar de onde o morto

fala. “Na modernidade”, escreve Holland, “a ‘Morte’ não

ocorre mais entre os vivos, e, para alcançar a separação

entre os alegres (vivos) e os miseráveis (mortos/quase

mortos), o hospital foi criado”.42 Nesses filmes negros, a

conversa dos mortos e moribundos acontece

notavelmente no lar. As lições de religiosidade de Martha

são dadas a partir da cama, em casa, enquanto é

cuidada e atendida por Razz, que reza por ela em sua

cabeceira.43 Da mesma forma, no filme de Williams, Joe

se aproxima de Caroline e só consegue se fazer ouvir

dentro do “lar” e durante as orações.

Jim surpreende Caroline antes que ela possa fugir com

as fotos e briga com ela, causando sua morte por

acidente. O título do filme, Go Down, Death, vem de um

poema/sermão fúnebre homônimo de 1926, de autoria

de James Weldon Johnson, que é pregado no funeral de

Caroline enquanto Jim escuta, com remorso, tendo

colocado a culpa da morte de Caroline em um ladrão.

Durante o sermão, palavras de conforto são oferecidas, o

que inclui a promessa de que Caroline não está

exatamente morta, mas que foi para o além.

Jim começa a receber sua punição durante o funeral

da mãe. Quando Jasper prega, “filho enlutado, não

chores mais”, Jim abaixa a cabeça envergonhado e

começa a ouvir uma voz — sua consciência falando. A

condição mental de Jim piora depois do funeral. A voz

demoníaca e incorpórea grita com ele: “Você matou,

você matou, matou a sua melhor amiga!” e “O Senhor

não perdoa assassinos”. Jim corre assustado, mas o

tormento piora. Jim corre, porém cai no chão

,

enquanto a

voz promete: “Eu vou mostrar para onde você vai […]

Inferno!”. Contudo, Jim não consegue encarar o inferno

de pé e em posição ereta, sendo derrubado, ainda que

não esteja morto, para que possa ter uma visão de seu

destino.

Como uma marca registrada de Williams, ilustrado de

forma assustadora em uma sequência estilizada, o

Inferno é revelado a Jim através de visões chocantes de

almas torturadas de mortos-vivos se contorcendo em um

lago de gelo, e um Lúcifer com chifres devorando

violentamente suas almas. A sequência é emprestada de

um assustador filme mudo chamado L’Inferno (1911),

uma adaptação do Inferno de Dante, a primeira parte do

poema épico do século XIV, A divina comédia, dirigido por

Francesco Bertolini e Adolfo Padovan. As limitações

orçamentárias de Williams o forçaram a ser criativo,

apelando para uma das mais assustadoras

representações alegóricas do bem e do mal como fonte

de imagens de arquivo. O filme exibe uma jornada em

espiral para o Inferno, onde os pecadores sofrem torturas

infinitas. O Diabo está presente, abusando dos perversos

e até mesmo devorando-os. Pouco depois de ser exposto

a tais visões, Jim é encontrado realmente morto, tendo

viajado para o “Lugar Terrível” por essência (não apenas

uma casa mal-assombrada ou um túnel assustador), um

elemento do terror obrigatório e até mesmo célebre.44

Contudo, esses tipos de filme não eram sustentáveis.

Em 1968 e 1970, o acadêmico de cinema Thomas Cripps

entrevistou Alfred e Lester Sack, da empresa Sack

Amusem*nt Enterprises, distribuidores de O sangue de

Jesus e Go Down, Death. De acordo com Cripps, antes da

guerra, O sangue de Jesus (para usar de exemplo) “já

tinha se tornado quase uma arte folclórica para a

clientela rural sulista [de Williams], sua falta de artifício

parecia mais uma falha charmosa do que uma ferida

debilitante”.45 Contudo, os Sacks revelaram que a

locação do filme “naqueles dias […] quase esquecidos”

foi motivo de riso no norte durante os anos da guerra e

depois.46 Além disso, os assim chamados “filmes com

elenco inteiramente de cor” estavam competindo com

filmes em que os negros apareciam como coestrelas, e

não apenas figurantes, ao lado dos brancos. No gênero

do terror, infelizmente, papéis coadjuvantes para negros

significavam o papel do parceiro negro engraçado.

Williams teria que dividir sua década de conquistas com

tipos como Mantan Moreland e Willie Best, cuja

popularidade era construída em cima de papéis

humilhantes.

“NÃO TEM NINGUÉM AQUI ALÉM DE NÓS, AS

GALINHAS”

Será que os produtores de Hollywood estão

cientes de seus atos nocivos, Ou apenas

ignoram na cara dura e desconhecem os fatos?

Eles nos mostram como engraçados,

vagabundos, criminosos e preguiçosos,

Eles não sabem que pessoas de cor são como

todas as outras?

— Razaf (16)47

O cinema já tinha meio século de criação de imagens nas

costas; contudo, levando em conta a representação dos

negros durante esse período, as obras ofertadas parecem

saídas de algum palco de show de menestréis do século

XIX. Durante a escravidão e o período pós-reforma nos

anos 1800, as performances teatrais tinham muito a

dizer sobre as relações raciais ao oferecerem uma

representação oportunista da relação entre mestre e

escravizado. Os brancos eram representados como

figuras pacientes, cuidadores paternais de suas posses

humanas ineptas, fracas, mas contentes de qualquer

forma. Essa relação racial entre os brancos superiores e

os “escurinhos” alegres era uma fantasia poderosa que

suplantava a realidade das brutalidades da escravidão.48

Inicialmente, essas fantasias eram encenadas nos palcos

por brancos com o rosto pintado de preto e que

reproduziam um sotaque negro — um jeito de falar

simplório e cheio de palavras erradas. Enquanto parece

difícil imaginar que os negros participariam de sua

própria subjugação nos palcos, no fim dos anos de 1800

eles eram escalados em papéis de “escurinhos”, e alguns

até pintavam os rostos. Para atrair o público branco dos

shows brancos de menestréis, os atores negros

afirmavam ser de verdade, “verdadeiros escravos da

plantação, não uma ‘imitação’ como os brancos com o

rosto pintado”.49 O cinema apenas pegou essas

performances dos palcos (e às vezes também seus

atores) e as colocou em celuloide.

Por exemplo, o ator de teatro Harold Lloyd encontrou

sucesso no cinema, aparecendo em mais ou menos

duzentos filmes de humor. Um dos mais conhecidos foi a

comédia muda de terror de 25 minutos chamada

Haunted Spooks (1920). Haunted e filmes do tipo eram

chamados de “comédias de arrepio”, que misturavam

cenas tensas e arrepiantes ou sustos com muito humor.50

Nesse filme de terror “com negros”, um jovem, “o

Garoto” (Lloyd), ajuda sua nova esposa, “a Garota”

(Mildred Davis), a receber a herança dela, uma grande

mansão. A Garota não pode ser dona da mansão até

viver nela por um ano. O Garoto afasta o tio ganancioso

da Garota (Wallace Howe), que “assombra” a casa numa

tentativa de assustá-la até que ela vá embora. O filme

apresenta um grande grupo de atores negros

(aproximadamente dez) que interpretam servos e

escutam o tio dizer: “fantasmas sorridentes dos mortos

gritam de dentro de suas covas e vagam por estes

quartos”. O filme retrata os servos como pessoas

crédulas, espalhando a história (com o uso de letreiros)

com suas vozes negras cheias de palavras erradas: “I u

simitério todo fica virado dus avesso! Fantasmas de dar

medu, assustador, vêm pra zanzar nus quarto”. À medida

que o tio “assombra” a casa, um criado infantil (Ernest

“Sunshine Sammy” Morrison) mergulha em uma lata de

farinha, emergindo todo branco e petrificado. O mordomo

(Blue Washington) é mostrado como uma figura tão

assustada que ele só consegue sapatear no lugar

enquanto a tinta preta que cobre o seu rosto começa a

escorrer. A representação de negros era tão abismal no

filme que era possível achar que a palavra “spooks”

[sustos] no título era um xingamento ofensivo usado

para descrever os personagens negros.

Hollywood foi notavelmente prolífica em apresentar

tais comédias de terror, com os filmes desse tipo

dominando o gênero durante a década. O humor que os

negros exibiam, “um show de menestréis híbrido”, ainda

era orientado para os brancos, com os negros sendo

empregados para validar e velar o racismo.51 Essa foi

uma era marcada pela representação obsessiva de

negros como figuras “culturalmente inferiores”, que se

transformaram no fardo dos homens brancos, uma vez

que os eram mostrados como defeituosos, mas estavam

nos Estados Unidos para ficar.52 Os negros eram cada

vez mais apresentados como norte-americanos (fossem

do sul ou de Nova York, mais frequentemente do

Harlem), e não apenas como nativos da África ou do

Caribe. A mudança representacional teve um pouco de

propaganda, pois o Departamento de Cinema do

Escritório de Informações de Guerra afirmou que seria do

melhor interesse da nação a representação de uma

América unida (embora não totalmente integrada).53

Ainda assim, os filmes de Hollywood continuaram com

seus insultos. Por exemplo, no filme de terror “com

negros” O castelo sinistro (1940), Bob Hope,

interpretando Larry, fala em viajar para “Black Island”

[ilha negra] a fim de (numa piada de duplo sentido)

“conhecer de perto os fantasmas”. A proeminência de

filmes do tipo era, em parte, o resultado de planos

incompletos de censura que identificavam facilmente e

exigiam a remoção dos estereótipos mais escandalosos e

viciosos, mas ignoravam aqueles calcados no humor.

Como resultado, comédias de terror racistas se tornaram

comuns, e tudo isso serviu para reforçar a ascendência

branca.54

UM PECADO E UMA VERGONHA

“Eu estou com uma vontade danada de sair,

mas as minhas pernas não ajudam!”

— Birmingham Brown, Charlie Chan em O mistério do

rádio (1945)

Willie Best se vendia como Sleep ’n’ Eat [dorme e come].

Nellie (Wan) Conley se tornou Madame Sul-Te-Wan [uma

brincadeira fonética cuja tradução seria

,

algo como

“southy one”, a sulista]. Ernest Morrison era conhecido

como Sunshine Sammy. Mantan Moreland não precisava

de truques do tipo, já que o seu próprio nome vendia.

Quando o nome de Moreland aparecia em um anúncio, o

público podia ter certeza de que iria ouvir os seus

melhores bordões e vê-lo arregalar os olhos e tremer de

medo. Os personagens que esses atores representavam,

e o que fizeram pela reputação deles e dos negros, têm

sido descritos nos termos mais implacáveis. Contudo,

parte do desdém mais feroz tem sido reservado para

Moreland. O acadêmico de cinema James Nesteby

descreveu os papéis que Moreland aceitou como “o

amigo alegre, o preto que vira um covarde ao primeiro

sinal de perigo, ou o preto que nem conseguia mexer os

pés enquanto o resto de seu corpo tremia”.55 O jornalista

britânico e historiador de cinema Peter Noble (181-182)

escreveu de forma brutal acerca de Moreland: “nenhum

ator negro revirou os olhos com tanta desolação quanto

Moreland, nenhum ator de cor se esforçou tanto para

retroceder às caracterizações sub-humanas de Stepin

Fetchit. Ele é a ideia aceita nos Estados Unidos do

supremo palhaço negro e atua na frente das câmeras

como um macaco bem treinado”.56

Nascido na Louisiana em 1902, Moreland começou sua

carreira como um artista itinerante, encontrando seu

caminho nos palcos de vaudeville por volta dos vinte

anos. Aparecendo em mais de cem filmes, foi a comédia

que deu fama a Moreland. Ele foi creditado como sendo

um artífice da comédia, exibindo um “arsenal de gestos e

caretas que os atores geralmente usavam para roubar a

cena e desenvolver personagens”.57 Suas performances

espirituosas eram perfeitas para as comédias de terror.

FIGURA 3.4 MANTAN MORELAND.

Toddy Pictures Co./Photofest

No filme de terror “com negros” O rei dos zumbis

(1941), que se passa durante a Segunda Guerra Mundial,

Moreland interpreta Jefferson “Jeff ” Jackson, um morador

do Harlem e motorista de seu mestre branco, Bill “sr. Bill”

Summers (John Archer). A dupla, juntamente com o seu

piloto, James “Mac” McCarthy (Dick Purcell), faz um

pouso forçado em uma ilha nas Bahamas. Lá, o trio

encontra a mansão do dr. Miklos Sangre (Henry Victor),

um cientista austríaco. Sangre também é um “agente

secreto” de um “governo europeu” que não é nomeado.

Ele usa os poderes do vodu como ferramenta de

interrogatório para conseguir segredos de guerra de um

almirante norte-americano a fim de que os inimigos da

América (que se comunicam por rádio em alemão)

tenham a vantagem militar. Os planos do cientista

dependem dos poderes de Tahama (Madame Sul-Te-

Wan), uma velha sacerdotisa vodu que também trabalha

como cozinheira. Apesar de seu pequeno tamanho,

Moreland rouba a cena quando arregala os olhos

enquanto fala uma coisa engraçada depois da outra a

despeito da própria negritude. Por exemplo, pouco antes

da queda, ele diz todo arrepiado: “Oh, oh!!! Eu sabia que

não tinha nascido pra ser um passarinho preto”. E

quando o seu personagem, Jeff, chega à conclusão de

que sobreviveu à queda, ele proclama: “Eu pensei que

tivesse a cor errada pra ser um fantasma”. O propósito

de Jeff no filme é ser acometido pelo medo, enquanto os

brancos ao redor dele são calmos e racionais, reforçando

dicotomias de emoção negra e razão branca.58

Quase todas as falas ditas por Jeff (ainda que corretas)

são sobre os perigos da ilha e a necessidade do trio de ir

embora rapidamente. De tal maneira, Jeff é covarde,

enquanto os homens brancos são sérios e heroicos. Mas,

claro, Jeff não corre, preferindo ficar perto do seu sr. Bill.

Em outra cena, Jeff recebe uma cama na ala dos

empregados, longe do sr. Bill. Ele é escoltado até lá pelo

estranho mordomo Momba (Leigh Whipper). Tanto por

medo quanto por lealdade, Jeff pergunta: “Ah, sr. Bill,

priciso memo ir, não posso ficá aqui com o senhô?”. Jeff

não apenas volta o seu humor contra si, mas implica

outros negros em sua ignorância ao descrever os zumbis

negros da ilha como “preguiçosos demais para deitar”.

Em 1943, a Monogram Pictures, a mesma empresa

que trouxe O rei dos zumbis ao público, lançou uma

sequência, A vingança dos zumbis. Enquanto os dois

filmes possuem basicamente a mesma premissa, as

narrativas não se conectam, e o segundo filme não faz

nenhuma menção ao primeiro. A vingança é situado na

Louisiana, com Moreland reprisando o papel de Jeff.

Madame Sul-Te-Wan também está de volta, mas desta

vez no papel de Mammy Beulah, uma velha empregada

tagarela. Eles se juntam a uma horda de zumbis

silenciosos que inclui James Baskett (vencedor do Oscar

por A canção do sul [1946]), como o sobrecarregado

escravo zumbi Lazarus.

A premissa de A vingança é parecida com a de O rei,

mas é ainda mais explícita em sua propaganda anti-

Alemanha/Nazi. O dr. Max Heinrich von Altermann (John

Carradine), que saúda os seus compatriotas alemães

com uma batidinha dos saltos de suas botas, está

fazendo experimentos com uma droga feita de “lírios do

pântano” que irá ajudá-lo a criar um exército de zumbis:

“Estou preparado para fornecer um novo exército ao meu

país, tantos milhares quanto necessário […] um exército

que não precisará ser alimentado, que não pode ser

parado por balas. Que é, realmente, invencível.”

Quando sua esposa zumbi (branca) desaparece, von

Altermann junta os negros em sua cozinha para

interrogá-los. A coisa mais interessante nessa cena é o

desprezo que os personagens negros têm pelo alemão.

Quando Altermann acusa sua empregada Rosella (Sybil

Lewis) de saber o paradeiro da zumbi, porque ela está

“sempre andando de fininho, observando e escutando

tudo”, Rosella responde em tom desafiador: “Num vi

nada, num ouvi nada”. Em seguida, uma desdenhosa

Mammy Beulah se intromete, desafiando o mestre: “Tem

certeza que num sabi pr’onde ela foi, tem certeza que

num consegue adivinhá?”. Quando Altermann responde

“Eu estaria perguntando se soubesse?”, Mammy Beulah

rebate: “Bem, mestre, ‘taria sim, se quisesse fingi que

num sabe”. No fim das contas, é uma ótima troca, dadas

as representações e relações raciais da vida real na

época. Os personagens negros não são “engraçadinhos”,

mas são oposição. É uma cena poderosa de propaganda

norte-americana mostrando os negros unidos pelo

desprezo ao alemão. Nos filmes dessa época, os negros

não eram mostrados em levantes em oposição aos

brancos dessa forma, e certamente não mereciam

impunidade. Os zumbis negros ou nativos praticantes de

vodu, na época, não eram os únicos monstros do período

da guerra. Os cineastas distribuíam monstruosidades

mais ao longe, e os zumbis se tornaram a representação

de um tipo de controle mental e social antidemocrático

que regimes mais fascistas empregariam.59

Mantan Moreland e Flournoy Miller, como Washington

e Jefferson, respectivamente, se uniram na comédia

negra de terror Lucky Ghost (1942). Lucky tinha um

elenco negro e mirava no público negro. Foi dirigido por

William Beaudine, um homem branco que, com mais de

350 filmes na carreira, era conhecido por fazer filmes B

em duas semanas ou menos. O filme foi distribuído pela

Dixie National Pictures, Inc. de Ted Toddy (mais tarde

transformada na Toddy Pictures Co.). Toddy, um homem

branco que apoiou vários filmes que estrelavam

Moreland, construiu sua fortuna produzindo e

distribuindo filmes com negros, como Harlem on the

Prairie (1937), Mantan Runs for Mayor (1947) e House-

Rent Party (1946).

Lucky Ghost conta a história de dois azarados,

Washington (Moreland) e Jefferson (Miller). Descobrimos

que eles estão encrencados com a justiça por causa de

um juiz que disse “Saiam da cidade e continuem

andando”, o que a dupla não muito inteligente fez de

forma literal, andando por dias a fio. Washington não

sabe escrever e não conhece os dias da semana, mas é

um exímio jogador de dados. Jefferson faz o homem sério

da dupla, que dá respostas sagazes e se engaja em

humor pastelão. A comédia deles não distancia os negros

dos velhos estereótipos.

,

cômico, em filmes

negros como esse, cada personagem em tela, o bom e o

mau, o alto e o baixo, representavam um vasto mundo

de peles mais pigmentadas que realmente existia na vida

real, mas que raramente era visto na tela grande.

Nas décadas de 1950 e 1960, os afro-estadunidenses

estavam mais uma vez sendo ignorados por Hollywood,

não apenas nas telas de cinema, mas nas telinhas da TV

também. Mais ou menos nessa época, fiquei surpreso em

ver Ben, o protagonista negro do clássico filme de terror

A noite dos mortos-vivos (1968) de George A. Romero,

sobreviver durante o filme inteiro, mas ainda assim a

produção se recusou a se afastar muito da tendência de

morte dos negros.

Contudo, na década de 1970 os filmes mudaram.

“Diga sem medo: eu tenho orgulho de ser negro!”* se

tornou o novo mantra à medida que um novo estilo de

filme começou a aparecer nas telas para abrir as portas

de nosso novo orgulho racial e despertar social. Os filmes

da era blaxploitation não forneceram apenas dramas

urbanos violentos como Shaft (1971) e The Mack (1973)

aos negros, mas também produziram várias

interpretações de histórias clássicas de terror, como

Blácula: o vampiro negro (1972), Blackenstein (1973) e

Monstro sem alma (1976). Conforme essa curta era de

afro-iluminismo nas telas ia sendo esquecida, ao que

parece, as portas do horror popular começavam a abrir

com rangidos, mas apenas o suficiente para que alguns

poucos negros fossem para o abate.

PERGUNTA: Por que o personagem preto é sempre o

primeiro a ser comido pelo monstro?

RESPOSTA: Carne preta tem gosto bom e enche

menos!

Foi na década de 1980 que Hollywood entrou em sua

fase “Mate um Negão”. (Nota: Eu sei que a Associação

Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor [NAACP]

enterrou a palavra que começa com N, mas eu a uso aqui

pelo bem da precisão histórica.) Durante esse período,

parecia que se um personagem negro fosse permitido em

cena, ele ou ela estariam mortos quando os créditos

rolassem. Em Lobos (1981), Gregory Hines foi atacado

por um lobo; em Gremlins (1984), Glynn Turman virou

almoço; em Quadrilha de sádicos 2 (1985), Willard E.

Pugh foi esmagado; em Coração satânico (1987), Lisa

Bonet foi abusada sexualmente por uma arma

carregada… e assim por diante. A grande maioria dos

personagens negros não era apenas morta durante esse

período, mas eles eram os primeiros a morrer, e existe

pelo menos um site que documenta esse fenômeno:

.*

Meu interesse pessoal no terror começou há muito

tempo e se estende ao meu trabalho pessoal. Em virtude

da minha tese apresentada na Universidade da

Califórnia, em Los Angeles, em 1985, The Black Beyond,

uma série antológica estilo Além da imaginação/Quinta

dimensão, mas sob uma perspectiva negra, eu fui

convidado por Warrington Hudlin, da Black Filmmakers

Foundation em Nova York, para participar de um fórum

sobre negros no terror, ficção científica e fantasia.** Eu

dirigi da Filadélfia, onde eu morava na época, até Nova

York ansioso para participar e ver os outros trabalhos

independentes do gênero que estavam sendo feitos, só

para descobrir que, naquele momento, na metade para o

final dos anos 1980, eu estava sozinho.

Já tinha lido em algum lugar que não há um filme de

terror feito que tenha perdido dinheiro. Sendo assim,

quando eu decidi fazer o meu primeiro filme, The

Embalmer (1996), escolhi fazer um filme de terror e

acabei declarando falência… Eu sei, informação

desnecessária. Independentemente disso, aquela

afirmação acabou se provando verdadeira porque o filme

deu lucro… Só que eu não fiquei com nada. Produzi The

Embalmer com um elenco e equipe formados por alunos

da Universidade Howard com um orçamento abaixo de

30 mil dólares, financiado em sua maior parte por um

empréstimo cuja garantia era a minha casa. O filme

rendeu mais de 100 mil dólares no mercado audiovisual

amador, mas os distribuidores, Yvette Hoffman e Toni

Zobel da Spectrum Films em Mesa, Arizona, preferiram

sair do mercado a me pagar os direitos autorais.

Posteriormente, cheguei à conclusão de que eu estava

bem antenado em relação ao conceito, pois vários outros

filmes de terror estavam sendo produzidos por afro-

estadunidenses, incluindo Contos macabros (1995) de

Rusty Cundieff e Os demônios da noite (1995) de Ernest

Dickerson.

Nos anos que se seguiram, mais e mais negros

apareceram em filmes de terror, fossem eles os primeiros

a morrer ou não. A popular e lucrativa série Todo mundo

em pânico, introduzida por Keenen Ivory Wayans, que se

destina a parodiar filmes modernos de terror, foi um

acréscimo ao grande escopo do gênero e ajudou a

aumentar ainda mais a bilheteria desses filmes. O

mercado de filmes que vão direto para o suporte do DVD

tem agora várias produções de horror com negros para

serem escolhidos, com variados níveis de medo,

qualidade e orçamentos. E, com as novas e avançadas

tecnologias que tornam a produção de filmes mais

acessível para as massas, além de lugares para exibição

on-line como o Facebook e o YouTube, muitos outros

negros irão morrer de forma horrível em futuros filmes de

terror. Os produtores de filmes de horror de hoje,

independentemente da cor de suas peles, sabem que só

existe uma cor de sangue na tela e para eles tanto faz a

cor do dinheiro usado para comprar os ingressos na

bilheteria…

STEVEN TORRIANO BERRY

Agosto de 2010

STEVEN TORRIANO BERRY é cineasta e professor adjunto da Universidade

Howard, em Washington, D.C. Dirigiu o filme The Embalmer, considerado um

dos primeiros exemplos de horror urbano no cinema e escreveu alguns

livros, entre eles The 50 Most Influential Black Films e Historical Dictionary of

African American Cinema.

* De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) de 2018, 55% das pessoas no Brasil se declaram

negras ou pardas, tornando o público uma maioria minorizada,

enquanto nos Estados Unidos, a população negra é também minoria

numérica. [Nota da Editora, daqui em diante NE]

* O título do filme faz referência a uma expressão (originada na

época da escravidão nos Estados Unidos) que denota algo suspeito

ou oculto. O filme então usa a expressão de modo literal para

ampliar seu significado. No livro Migrating to the Movies: Cinema and

Black Urban Modernity, de Jacqueline Najuma Stewart, a autora

comenta que, no filme, há dois homens negros se esgueirando em

uma pilha de lenha e, com isso, não há necessidade de motivar de

forma narrativa suas ações criminosas. Segundo a autora, eles

confirmam a expressão popular, incorporando seus significados

literais e figurativos. [NE]

* Referência à canção escrita por James Brown e Alfred “Pee Wee”

Ellis em 1968, “Say It Loud - I’m Black and I’m Proud”. [Nota do

Tradutor, daqui em diante NT]

* Desde a primeira publicação do livro Horror Noire, em 2011, alguns

dos sites indicados podem ter saído do ar, mas foram preservados

em suas menções. [NE]

** Uma forma usual de classificar a junção de gêneros como a fantasia,

ficção cientifica e horror sobrenatural é o “termo guarda-chuva”

ficção especulativa, sobretudo porque as barreiras entre eles são

tênues. A categorização de Coleman de que o terror estético

significa para pessoas negras, e um fórum que se dispõe a discutir

sobre negros no terror e fantasia evidencia a proximidade, mas pode

nos fazer questionar se obras como Kindred (Octavia Butler)

poderiam ser classificadas assim. O texto se refere a uma

experiência vivida nos anos 1980, certamente não poderia prever as

implicações teóricas que, na década seguinte, seriam discutidas

sobre uma perspectiva nova: o Afrofuturismo. Sobre Afrofuturismo,

ver: SOUZA, Waldson Gomes de. Afrofuturismo: o futuro ancestral na

literatura brasileira contemporânea. 2019. Dissertação (Mestrado em

Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília.

[NE]

HORROR

NOIRE

PREFÁCIO

A PROMESSA REVELATÓRIA DO

CINEMA DE GÊNERO

Rick Worland

,

Por exemplo, os dois possuem

um radar interno para encontrar galinhas. Quando

Washington invade um viveiro para roubar galinhas, ele é

surpreendido pelo dono, que grita “Quem está aí!?”,

dando espaço para o coloquialismo popular de

Washington: “Não tem ninguém aqui além de nós, as

galinhas”. À medida que Washington foge do viveiro, o

proprietário atira em seu traseiro. Em 1915, a Lubin

Manufacturing Company produziu um desenho chamado

A Barnyard Mix-Up, centrado “no ladrão de galinhas

Rastus que escapa dos tiros do fazendeiro, mas é

derrubado pelo machado, embora seja ressuscitado de

forma inusitada por uma explosão de dinamite”.60 Lucky

serviu como lembrete de que o estereótipo de “negros

amando galinhas” pode ser uma coisa perigosa.

A sorte da dupla muda quando Washington ganha

uma bolada, um carro, um motorista e roupas em uma

partida de dados contra dois transeuntes que estão se

dirigindo para um clube ilegal (que funciona dentro de

uma mansão). Washington e Jefferson vão para o clube e,

enquanto estão lá, Washington ganha o clube inteiro em

um jogo de dados. No fim das contas, o clube é um lugar

mal-assombrado por uma família insatisfeita pelo fato de

seu “sobrinho inútil” ter transformado a casa, agora

propriedade de Washington e Jefferson, em um lugar

onde ocorrem “estripulias, dancinhas de jazz e

algazarra”. As assombrações dão grandes oportunidades

para que Washington, alternadamente, fique paralisado

de medo ou comece a implorar “que meus pés não me

falhem agora”.

A atuação de Moreland como “o pretinho que se

acovarda” não se limitava às comédias de terror.61 No

mistério The Strange Case of Doctor RX (1942), no papel

de Horatio Washington, seu cabelo ficou branco de medo.

Quando foi escalado na série de comédias de mistério do

detetive Charlie Chan como o motorista Birmingham

Brown, de 1944 até 1949, ele geralmente soltava frases

como: “Eu estou com uma vontade danada de sair, mas

as minhas pernas não ajudam!”.62

Cedric Robinson, em Forgeries of Memory & Meaning:

Blacks & the Regimes of Race in American Theater & Film

Before World War II, se esforça para reabilitar o legado de

Moreland63 argumentando que ele “não era um tolo” e foi

alguém que usou de um tipo de subterfúgio com o qual

fazia pouco caso e zombava dos brancos por não serem

tão superiores quanto diziam. Robinson cita O rei dos

zumbis (1941) como um filme em que Moreland entalhou

uma réplica negra. Por exemplo, Robinson enxerga

capacidades intelectuais em Jeff que são propositalmente

evidenciadas com o uso que Jeff faz de palavras como

loquaz, kosher e prevaricador. Realmente, Jeff usa tais

palavras, mas em Jeff, cuja fala também é repleta de

malapropismos, esse linguajar é usado para causar um

efeito cômico.

E, em relação à representação de Birmingham Brown

de Moreland, Robinson até enxerga esperança ali,

observando que Brown transformou a casa de Chan em

um lugar mais “diverso, vivaz, carinhoso e cômico”.64 A

inclusão de Moreland é certamente vivaz e cômica,

embora seja mais utilizada como um acessório do que

para proporcionar uma diversidade racial.

É difícil enxergar como, num todo, essas comédias de

terror fazem alguma coisa além de mostrar os negros

como inferiores. Enquanto os personagens de Moreland

permanecem ao lado de seus mestres, grudados feito

cola, os filmes comunicam que está tudo bem entre

negros e brancos. Tais representações mostram uma

“visão da harmonia racial ao apresentar para o seu

público-alvo uma imagem dos negros como figuras

engraçadas (eles não podem ser infelizes; eles nos fazem

rir), confusas (veja, eles precisam de nós para guiá-los) e

ansiosas para agradar (nós obviamente merecemos a

atenção deles)”.65 Esses filmes também são únicos

porque a violência neles é muito trivializada. Em filmes

de terror mais tradicionais, a violência está sempre

presente, mas dificilmente é trivializada. Quando uma

múmia estrangula ou quando um gorila esmaga, essas

ações são entendidas como violência. Quando o

personagem de Moreland leva um tiro no traseiro

durante uma fuga ou quando o personagem de Eddie

Anderson, Eddie, o motorista, em A volta do fantasma

(1941), leva repetidas cabeçadas de uma foca e quase se

afoga, as consequências da violência infligida contra

corpos negros (nessa era das leis Jim Crow, ainda por

cima) são silenciadas.

FIGURA 3.5 WILLIE BEST.

RKO Radio Pictures/Photofest

Willie Best era o outro ícone das comédias de terror na

década de 1940. Ele também começou a atuar cedo,

“com o preto alto e magro passando por toda a ladainha

banal do comediante vaudeville com o rosto pintado de

preto”.66 Bogle escreve, com um pouco de chiste, que

Best era o “step” de Stepin Fetchit (Lincoln Perry), com

Best se apropriando das caracterizações cômicas,

vacilantes e de gestos toscos de Perry, e, dessa forma,

roubando papéis que teriam ido para Perry.67 Best não

era nem de longe um bom ator como Perry e não

conseguia realizar as performances de pretos

preguiçosos e lentos com a mesma criatividade. Ele

simplesmente não era um bom ator. Em O castelo

sinistro (1940), Best aparece juntamente com Bob Hope,

fazendo bico enquanto atura frases como: “Você parece

um blecaute durante um blecaute. Se isso continuar

assim, eu vou ter que pintar você de branco”. Best era

sempre o mesmo, não muito engraçado, apenas um

parceiro idiota que não reagia a insultos ou disparava

alguma ferroada ocasional, como Moreland fazia. Best,

notoriamente, esticava o lábio inferior, arregalava os

olhos e vagava por filmes de terror “com negros” como O

passo do monstro (1932), no qual ele considera sua

semelhança com um gorila, e O fantasma risonho (1941),

em que ele acrescenta cruzar os olhos e ultrapassar

cavalos em debandada ao seu arsenal de performances

de “negrinho assustado”. Best seria chamado de novo e

de novo para fazer pouco mais do que tremer de medo e

pular por causa de sombras em outras comédias de

terror como The Body Disappears (1941), Veleiro

fantasma (1942) e Cara de mármore (1946).

NEGRO ASSUSTADO… MARIONETES?!

“Se eu sou ’marelo, cê é daltônico.”

— Scruno, Spooks Run Wild (1941)

A grande proliferação de comédias de terror pareceu

quase sufocar as conquistas de Spencer Williams. Até

mesmo a série de filmes The East Side Kids (1940-1944),

com o jovem Scruno (Ernest “Sunshine Sammy”

Morrison), usou do recurso do negro assustado. Em

Spooks Run Wild, enquanto Scruno anda por uma

mansão escura e assombrada, ele é repreendido pelos

colegas: “Da próxima vez que você for sair do escuro, se

cobre com uma mãozinha de tinta branca, ouviu?”, ao

que Scruno responde: “Tô tão assustado que tô ficando

branco agora”. Em Fantasmas à solta (1943), outro filme

de gravação rápida de William Beaudine, Scruno treme e

gagueja: “Quem é… diz quem é quando eu pergunto

quem é”, enquanto Emil (Bela Lugosi), um espião nazista,

o persegue.68 Não surpreende que Hollywood iria deixar

de infantilizar homens para implicar crianças — reais e

desenhadas — na encenação do negrinho assustado.

George Pal fez filmes em stop-motion com marionetes

de madeira chamadas de “puppetoons”. Os filmes mais

infames de Pal são os curtas da série Jasper (1942-1947)

que estrelam a marionete Jasper como “o pretinho”

(como Jasper era apelidado nas propagandas), retratado

numa caricatura de pintura blackface — olhos

arregalados, lábios sorridentes largos e brilhantes,

contrastando com sua pele preta como carvão —, que

vive com a sua “Mammy” em uma cabana decrépita.

Jasper e aqueles ao redor dele conversam com sotaque

negro. Ao longo da série, o amor de Jasper por melancias

é algo constante e representa a fonte de muitos de seus

problemas, situando-o no território dos filmes de terror,

com Jasper experimentando uma “violência arrepiante”

realçada por cenas escuras, mal iluminadas e que

emprestam um tom sinistro e agourento.69 Em Jasper and

the Watermelons (1942), Jasper rouba melancias de uma

plantação proibida. O filme

,

então se transforma em uma

“sequência assustadora com a criança [mortificada]

sendo perseguida por figuras ameaçadoras”.70 À medida

que o dia vira noite, melancias aparecem cantando: “Vai

ter problema na Terra das Melancias hoje à noite”,

enquanto se transformam em monstros assustadores que

vão atrás de Jasper. As melancias monstros se tornam

predadoras ao se esforçarem para devorar Jasper, que

por pouco escapa delas, correndo e saltando e lutando

para se afastar de suas bocas. Uma cachoeira de suco de

melancia finalmente fornece a Jasper a vantagem de que

ele precisa, pois a correnteza o leva de volta para casa,

para sua Mammy… que dá a ele um pedaço de melancia.

Em Jasper and the Haunted House (1942) não é uma

melancia, embora normalmente seja, o que mete Jasper

em confusão, mas uma torta de groselha. Por ordem de

Mammy, Jasper precisa levar uma torta para o diácono

Jones, mas acaba em uma casa mal-assombrada. A

sombra de Jasper vira as costas e sai correndo, deixando

o menino sozinho. Aqui, com efeitos especiais, os olhos

de Jasper se arregalam e flutuam de medo, na velocidade

do som. Há um interlúdio musical em que fantasmas

tocam um pouco de jazz no piano e aparições dançam ao

redor.71 Por fim, Jasper foge da casa e, durante a fuga,

fica preso em uma placa onde é possível ler: “Dá próxima

vez, experimente a torta de groselha dos fantasmas”.

Jasper foi criado pela imaginação de Pal, que nasceu

em 1908 na Hungria e morreu em 1980 nos Estados

Unidos. Durante a sua carreira, seu trabalho de animação

lhe rendeu um Oscar, além de outras seis indicações. Pal

afirmava não ter nenhuma animosidade racial em mente

quando criou Jasper, dizendo que ele estava apenas

“trazendo à vida um verdadeiro personagem afro-

estadunidense e que não nutria nenhum preconceito

racial”.72 Ignorou-se o fato de que a série foi construída

em cima de uma sopa de estereótipos negros e

disfunções unidos à pobreza abjeta, um lar

monoparental, pai ausente e mãe negra, tendo como

centro um negro “à toa e problemático”, que, ainda por

cima, rouba melancias.73 Pouco importava a intenção do

criador, a recepção por parte dos negros foi ruim. A

revista Ebony publicou um artigo, “Little Jasper Series

Draws Protest from Negro Groups”, lamentando a

representação de um garoto negro que ama melancias

tanto quanto teme casas mal-assombradas.74

Richard Neuert faz um paralelo entre os filmes de

Jasper e, de maneira interessante, as produções de

Spencer Williams, escrevendo: “contudo, é válido notar

que alguns dos temas de Jasper, como o incentivo para

que o povo do campo permaneça onde está, que respeita

as velhas tradições e rechaça o furto, também

apareceram em filmes raciais com atores de verdade na

década de 1940, filmes como o famoso O sangue de

Jesus de Spencer Williams, feito por e para afro-

estadunidenses”.75 Contudo, os filmes de terror/religião

de Williams eram incomparáveis e se tornaram um

gênero por si só, “pristinamente negros em [sua]

advocacia, locação, ponto de vista, ética social, e […]

técnica popular resolutamente não hollywoodiana”.76

Não havia nada em Jasper que refletisse negritude, e ele

certamente não adotou os objetivos adicionais de

advogar ou privilegiar os valores da burguesia negra.

Williams apresentou sistemas de valores, posicionamento

de classe, rituais e comportamentos, relações amorosas

e ideologias de empoderamento que não haviam sido

vistos durante esse ciclo de filmes de terror. Os filmes de

Pal não apenas falharam em dialogar com essas visões,

mas eram simbolicamente devastadores. Na verdade,

quase duas décadas depois de Pal apresentar Jasper, os

grupos negros ainda tentavam manter estereótipos

desse tipo afastados dos telespectadores. Em 1959, um

canal de televisão de Portland, Oregon, precisou ser

persuadido pela Liga Urbana a cancelar a série por causa

de seus estereótipos óbvios. A imprensa negra — os

jornais Los Angeles Sentinel, Chicago Defender e Afro-

American (de Baltimore), entre outros — noticiou que a

Liga Urbana escreveu para o canal KOIN sobre a

representação de Jasper, que servia para “perpetuar

noções falsas sobre as peculiaridades dos negros como

raça”. O apelo também chegou a afirmar: “É uma coisa

trágica que Jasper e seus associados sejam

continuamente apresentados de maneiras que

solidificam noções falsas e atendam a uma demanda de

superioridade racial por parte dos telespectadores

brancos”.77

CONCLUSÃO

As produções de Spencer Williams não eram

tecnicamente complexos. Afinal, um dos filmes (O

sangue de Jesus) mostrava o Diabo como um homem

vestido com algo semelhante a uma fantasia de

halloween. Alguns críticos chegaram a dizer que suas

lições simplistas de piedade não correspondiam com os

tempos mortais em que eram transmitidas. Ainda assim,

Williams usou literalmente de sua fé para criar “filmes

negros” de terror populares e de sucesso centrados na

cultura negra (sulista) e pensados para o público negro.

Infelizmente, Hollywood ignorou as evidências e

continuou a procurar narrativas banais e estereotipadas.

Ainda assim, grupos de indivíduos instruídos e

organizações continuariam a fazer apelos a Hollywood,

pedindo que o tratamento dos negros sofresse alguma

revolução. Joel Fluellen (Pongo, o gorila branco [1945]) e

Betsy Blair (atriz e esposa de Gene Kelly), em 1946,

apareceram diante da Guilda dos Atores de Cinema (SAG)

e propuseram que a associação advogasse pela afiliação

de negros: “AGORA, PORTANTO, SEJA RESOLVIDO que a Guilda dos

Atores de Cinema use de todos os seus poderes para se

opor à discriminação contra os negros no cinema”.78 Em

1947, Boris Karloff (A múmia [1932]), como membro do

comitê antidiscriminação da SAG, notou os desafios que a

guilda enfrentava e o acréscimo de mudanças que a

organização buscava:

Se insistirmos que os produtores escrevam

papéis para os negros de acordo com um certo

padrão, é bem possível que excluam

completamente os papéis para negros. Contudo,

o que pretendemos fazer é lutar pela inclusão de

negros em todas as cenas que tenham

multidões. Planejamos insistir para que em

todas as cenas pelo menos 10% dos

personagens sejam negros fazendo coisas

normais como as outras pessoas.79

A proliferação de comédias de terror enterrou e minou os

pedidos de mudança. Nessas ficções, os negros são, de

maneira alternada e/ou simultânea e “de forma natural”,

autenticamente dóceis e selvagens, cuidadores e

monstruosos. Tais tratamentos exigiam que se

questionasse a possibilidade de algum dia os negros

interpretarem o monstro cotidiano nos filmes de terror,

ou criaturas retratadas na mitologia, ou serem inseridos

em um terror psicológico. Poderia o terror criar um

monstro negro sem apontar a raça inteira como

monstruosa, ou talvez retratar um personagem negro

como uma figura corajosa ou salvadora? Os Gists e

Williams começaram a responder essas perguntas de

forma afirmativa com alguns recursos. Enquanto se

provou fácil exibir uma participação inteira e complexa

dos negros no gênero do terror, a indústria do cinema

continuou a falhar em agir ao longo dos anos seguintes

por uma série de razões sociais (e algumas financeiras).

Os filmes de terror deixaram a década de 1940 assim

como entraram: ameaçados. Chamar de “filmes B”

alguns dos filmes que seriam produzidos na década

seguinte seria terrivelmente generoso, já que cineastas

dos anos 1950 seriam considerados sortudos se

conseguissem contratar algum humano de verdade para

entrar em roupas de borracha e interpretar monstros.

Cada vez mais, o terror virou motivo de chacota à

medida que os monstros se tornavam criaturas infláveis

(O cérebro do planeta Arous [1957]), tocos de árvore

feitos de borracha e papel machê (Veio do inferno

[1957]) e marionetes tinhosas controladas por cordas (O

ataque vem do Polo [1957]). Isso deixou tudo ainda mais

fácil para a televisão, que começou a transmitir

nacionalmente em 1948, tornando-se uma rival para o

cinema. Embora

,

a TV fosse mais rigidamente regulada

pela Comissão Federal de Comunicações (FCC), se um

telespectador quisesse ver algo assustador, a televisão

tinha, fosse transmitindo filmes de terror ou criando uma

programação de suspense (nem tanto terror, mas algo de

ficção científica) como Alfred Hitchco*ck Presents (1955-

1965). Se o negro engraçado era desejado, a televisão

também oferecia isso, com negros “menestréis da TV”

80

aparecendo em programas como Beulah (1950-1953) e

Amos ’n’ Andy (1951-1953).

Já com relação aos filmes de terror, invisibilidade e

ridículo são os melhores termos para descrever o que

havia adiante para os negros pelas próximas duas

décadas (1950 e 1960). Nos anos 1950, a ficção

científica e o terror tenderiam a criar monstros

deformados por bombas atômicas. Diferente de Spencer

Williams, que imaginou uma mulher negra cientista,

Hollywood não conseguia fazer o mesmo. Já que

Hollywood não conseguia imaginar cientistas negros em

laboratórios onde bombas e produtos químicos eram

criados e experimentos davam errado, não era possível

ter negros lidando com esses temas. Os negros se

tornaram basicamente invisíveis nos filmes de terror da

década de 1950 — a menos que algum cientista

precisasse fazer um safári africano. Com essa exceção,

os negros só apareceriam novamente nos anos 1960 em

híbridos de show de menestréis (por exemplo, The Horror

of Party Beach [1964]). Seria apenas em 1968, quase 25

anos depois dos filmes de Williams, com Ben, o

protagonista negro de A noite dos mortos-vivos, que o

gênero alcançaria a visão de Williams.

HORROR

NOIRE

1950/60

INVISIBILIDADE NEGRA, CIÊNCIA

BRANCA E UMA NOITE COM BEN

Eu sou um homem invisível. Não, eu não

sou uma assombração como aquelas que

atormentaram Edgar Allan Poe; nem sou

um dos seus ectoplasmas de Hollywood.

Eu sou um homem de substância, de

carne e osso, fibra e líquidos — e pode-se

até dizer que tenho uma mente. Sou

invisível, compreenda, simplesmente

porque as pessoas se recusam a me ver.—

ELLISON, 19521

Parecia algo saído do espaço sideral, e

também parecia um pesadelo, não uma

parte de mim. — MAMIE TILL BRADLEY,

mãe de Emmett Till, garoto de quatorze

anos que foi assassinado por brancos

racistas2

Algo estava errado. Na pacata e afável cidadezinha de

Santa Mira, a paz idílica da década de 1950 estava sendo

perturbada por um grupo de “eles” perigosos que se

esforçavam para invadir o “nós” comunitário. A cidade

reage rapidamente, embora de forma controversa, contra

a ameaça. Quando ônibus interestaduais deixam

forasteiros em Santa Mira, os intrusos são recebidos de

maneira agourenta pelo xerife da cidade, colocados na

parte de trás de seu carro e levados embora para nunca

mais serem vistos. Controle e conformidade eram as

novas preocupações de Santa Mira; logo, seus habitantes

não tolerariam mais visitantes (baderneiros de fora) que

tivessem potencial para fazer perguntas e que poderiam

influenciar os outros com suas agendas diferentes. A

cada dia, os cidadãos apertavam as rédeas, eliminando

toda e qualquer divergência. Uma banda de jazz/swing

que chegou alguns meses atrás para tocar em um dos

restaurantes populares da cidade, logo sinalizando um

flerte entre Santa Mira e o progresso — “estamos no

caminho” —, foi, neste novo clima, expulsa. A banda foi

substituída por um jukebox pré-programado. No geral,

era uma representação lamentável dos Estados Unidos,

que reprimia a humanidade de seus cidadãos: ser

“mecânico” nesse contexto era ser um “zumbi

ambulante!”.3

A cidade fictícia de Santa Mira do filme de terror/ficção

científica Vampiros de almas (1956) funcionava como

uma metáfora para as muitas ameaças que os Estados

Unidos enfrentavam em 1950 — mudança, guerras

(atômica/fria), invasão estrangeira, comunismo e

integração racial. E evidenciou, como muitos filmes dos

anos 1950 e 1960, “uma forte ressonância entre os

elementos do filme com várias ansiedades existentes na

cultura mais ampla”.4 No filme, embora a noção de

segurança-na-igualdade tenha sido levada por imigrantes

(ilegais) do outro lado do mundo, isso não obscureceu o

fato de que os norte-americanos estavam felizes em

assegurar a insularidade e estabilidade pelos meios que

fossem necessários. Vampiros, um filme de terror sem

nenhum personagem negro, evidenciava como alguns

norte-americanos acreditavam que, embora a estrada

para o fascismo cultural pudesse ser desagradável —

como ficar de pé na frente de uma escola para repelir o

individualismo —, o fim justificava os meios.

Vampiros permanece até hoje como um clássico cult

não apenas para os fãs, mas continua a ser um dos

filmes mais celebrados nos Estados Unidos.5 O filme

narra a história de como vagens alienígenas aterrissaram

na Terra, trazendo com elas a habilidade de replicar

completamente os humanos e então matá-los para

produzir clones emocionalmente neutros, ou “pessoas

vagens”.6 Metaforicamente, Vampiros pode ser visto

como o termômetro para o tratamento dispensado a

qualquer coisa que se mostrasse uma ameaça à

conformidade branca nos filmes de terror das décadas de

1950 e 1960. Acertadamente, houve pouca variação de

representação no gênero do terror ao longo das décadas

de 1950 e 1960, já que os negros eram invisíveis para os

invasores de Santa Mira.

OS INVISÍVEIS

À medida que os anos 1950 emergiam, os personagens

negros se tornaram uma presença rara no terror. O que

no passado constituía na representação do trabalho

“negro”, como empregados ou trabalhadores rurais, se

tornou menos necessário numa era em que o cinema

estava mais preocupado com ameaças científicas e

extraterrestres. Nesses desafios, os brancos, e

notavelmente as personagens femininas, assumiam o

papel de ajudante. Por exemplo, num filme de 1957, O

ataque vem do Polo, um (hilário) pássaro monstro

gigantesco com uma tela de energia anti-matéria

ameaça o planeta (os Estados Unidos, em particular).

Embora a invenção mais mortal da ciência, a bomba

atômica, não seja capaz de exterminar esse alienígena,

os cientistas permanecem resolutos, esforçando-se para

encontrar uma solução. Nesse filme, há pouca

necessidade da presença de negros carregando bolsas ou

servindo refeições. O pássaro é um dilema para

intelectuais, e o espaço em que essas pessoas trabalham

são laboratórios ou centros de pesquisa. Nesse contexto

de trabalho, os negros não servem, teoricamente, para

nada.

No filme, a “srta. Caldwell” (Mara Corday), uma

mulher branca matemática e analista de sistemas,

exerce a função de ajudante. Embora prometa ser uma

pessoa estudada, ela é incapaz de mapear o padrão de

voo básico do pássaro (isto é, analisar o seu sistema). Em

vez disso, Caldwell se transforma naquela que recebe

ordens e tolera abusos sexuais de maneira afável — ela é

referida como “mãe, querida mãe” e recebe ordens de

um colega de trabalho, “me beija e fica quieta” —, o que

ela faz avidamente. Esse tipo de “repressão severa da

sexualidade/criatividade feminina”, escreve Wood, não

apenas atribui passividade, subordinação e dependência

à figura da mulher, mas “em uma cultura dominada por

homens […] a mulher como o Outro assume uma

significância particular”.7 Embora o trabalho primordial

de Caldwell seja parecer bonita e servir como algum tipo

de empregada, servindo bebidas aos homens, ela é

capaz de fazer notas e cuidar de painéis eletrônicos —

tarefas que presumidamente vão muito além da

capacidade dos negros.

Até mesmo na ausência geral de diversidade racial, o

uso do simbolismo racial era abundante ao longo da

década de 1950. O filme A noiva do gorila (1951) une a

diferença e a aberração de forma parecida. Aqui, o

personagem Barney (Raymond Burr) é o capataz de uma

plantação de seringueiras que cuida do gerenciamento

de uma residência construída no interior da selva

amazônica. Barney é um gerente cruel que possui

lembranças saudosas: “Oh, quando eles tinham

escravos!”. Os cineastas sabiam que filmes de selva do

,

tipo tinham implicações raciais, e essa produção não foi

uma exceção, trazendo frases como: “Pessoas brancas

não deveriam viver por muito tempo na selva”. De

acordo com Thomas Cripps em Making Movies Black, um

escritor do jornal AfroAmerican, de Maryland, Carl

Murphy, “foi chamado para ser um consultor em […] A

noiva do gorila [daí] estabelecendo um ponto de vista

negro em relação a coisas que iam além do uso da

palavra ‘crioulo’ nos diálogos”.8 Na verdade, insultos não

estão presentes no filme, tampouco participações

significativas de negros. No filme, Barney passa a cobiçar

a esposa do chefe, Dina (Barbara Payton), e mata o chefe

para poder possuí-la. O assassinato é testemunhado por

Al-Long (Gisela Werbisek), uma bruxa que amaldiçoa

Barney. O homem é atormentado por alucinações nas

quais ele acredita que está se transformando em um

gorila. O filme apresenta uma pequena ponta do famoso

ator negro Woody Strode no papel de Nedo, um policial

local. Sua presença é breve aqui, e Strode interpreta de

maneira direta. Ele é estoico e profissional. Suas ações

estão largamente centradas na procura rápida pelo

quarto de Al-Long para ver se ela tinha escondido

alguma evidência do assassinato do chefe. Seus

princípios funcionam para dar credibilidade ao poder

assustador do vodu. Alarmado pelo poder da bruxa, Nedo

a censura de forma veemente: “Eu não acredito em

magia negra […]. Mas fique longe da minha casa. Eu não

quero bruxas perto das minhas crianças”. Ele então sai

de cena (e do filme) rapidamente. A brevidade da

participação de Strode é triste, já que serve para lembrar

o que atores negros poderiam acrescentar ao gênero —

um medo real, sem precisar arregalar os olhos para

parecer assustado. Contudo, qualquer tipo de

representação, assustada ou normal, na metade do

século XX, ainda era uma raridade.

Outra produção pertencente a esse ciclo de filmes de

terror, A noiva e a besta (1958), traz gorilas/primitivismo

e civilização no centro de tudo. Contudo, mais uma vez,

os negros desaparecem das telas. A noiva e a besta não

tem nenhuma pessoa negra em seu elenco, mas ainda

assim obteve sucesso ao exibir o “continente escuro” e

tudo que vem dele como algo grotescamente assustador.

No filme, Dan (Lance Fuller), um grande caçador, se casa

com Laura (Charlotte Austin). A licença de casamento

deles custa 6 dólares, o que faz Dan exclamar de forma

inexplicável: “Eu poderia comprar seis esposas por esse

preço no meio da África!”. Dan apresenta Laura para

Spanky, um gorila africano que ele capturou e mantém

aprisionado no porão de sua casa no topo de uma

montanha nos Estados Unidos. Laura exibe uma estranha

atração sexual pela besta ao conhecer Spanky, olhando

de forma luxuriosa para o gorila e, mais tarde, sonhando

com o animal. Em uma cena chocante, Spanky visita

Laura no quarto, onde a besta e a mulher se abraçam, e

o animal despe Laura em seguida. Dan mata Spanky

imediatamente. A estranha atração de Laura pelo animal

é explicada sob hipnose: em uma vida passada Laura foi

um gorila, a rainha dos gorilas, para ser mais exata.

Laura e Dan, juntamente com o “criado” Taro9

(interpretado pelo ator branco Johnny Roth com o rosto

pintado de marrom), cujo vocabulário é limitado a se

dirigir a Dan como “Bwana”, vão até a África para que

Dan volte a caçar. Aqui, os monstros (gorilas negros) e o

lugar (África) são abertamente racializados. Enquanto

está na África, a atração de Laura por todas as coisas

africanas — um tipo de febre da selva — se torna ainda

mais profunda, e Dan tentar curar a obsessão dela. O

filme termina com uma Laura entusiasmada sendo

levada para os confins da selva nos braços de um gorila

negro. Contudo, a cena provoca inquietação, mostrando

Dan como a verdadeira vítima, que perde o seu amor

para um tipo de miscigenação grotesca, uma mistura de

espécies que provoca um medo parecido com aquele da

mistura de raças. Em resumo, animais e negros são a

mesma coisa.

PRETO SAI, PRETO FICA

O filme de terror “com negros” de 1957 chamado

Monster from Green Hell evidenciou como os negros

poderiam ser empregados de maneira efetiva no gênero

do terror. Trata-se de uma produção B de terror/ficção

científica — baixo orçamento, efeitos especiais cômicos.

O filme começa com o questionamento: o que

aconteceria com a vida “no vácuo sem ar acima da

atmosfera da Terra” em uma “aglomerado de radiação

cósmica?”. Para descobrir a resposta, o programa

espacial dos Estados Unidos envia um macaco, vespas,

um caranguejo, aranhas e um porquinho-da-índia para o

espaço em dois foguetes não identificados. O desastre

acontece quando um dos foguetes é perdido “perto da

costa africana”. Dan (Robert Griffin) e Quent (Jim Davis),

dois cientistas norte-americanos brancos que trabalham

no projeto espacial, logo recebem relatos de vespas

monstruosas e misteriosas que estão causando

destruição na África Central e decidem fazer algo. Lá os

homens conhecem o médico branco dr. Lorentz (Vladimir

Sokoloff) e sua filha Lorna (Barbara Turner), que tratam

os nativos africanos com medicina “real” e cuja missão

secundária é ajudá-los a se livrar de suas crendices, o

que inclui medicina tradicional e orações para deuses

não judaico-cristãos. O filme toma um rumo previsível

com a inclusão de um safári pela selva com nativos

mudos, descamisados e de tangas que andam em fila

indiana e carregam bagagens na cabeça.

Contudo, entre os nativos há um homem chamado

Arobi. Arobi é interpretado por Joel Fluellen, um ator

negro que advogou incansavelmente por papéis

complexos e dignos de nota para os negros em

Hollywood. A influência de Fluellen é evidente, com o

personagem Arobi quase roubando o filme para si (se

assumirmos que alguém estaria prestando atenção em

tal personagem). Arobi é um personagem orgulhoso e

articulado que está bem longe do “Mumbo Jumbo”

interpretado por Fluellen, um servo no filme de terror

“com negros” Pongo, o gorila branco (1945). Arobi está

sempre bem-vestido com roupas ocidentais de safári —

calças cáqui, um chapéu característico, camisa passada,

meias até os joelhos e um cinto de utilidades com

munição e um rifle. Embora Arobi receba frequentes

instruções dos cientistas para trabalhar ou “fazer” coisas

— como a importante atividade de montar explosivos —,

ele também é questionado com frequência acerca de

suas ideias em relação ao plano que estão tramando.

Enquanto os guias nativos são subservientes aos

cientistas brancos, Arobi se torna um membro importante

da equipe, contribuindo com conselhos em tom

profissional. Ele não dorme com os nativos, mas ao redor

do campo com os brancos — perto, mas não junto (afinal,

há uma mulher branca na equipe).

O filme termina com o grupo assistindo ao fim dos

monstros e um diálogo final. Os três integrantes brancos

falam primeiro. Os dois homens e, então, a mulher, falam

brevemente. No fim, é Arobi quem solta o tocante trecho

final: “A morte das criaturas trará a libertação do meu

povo. Os deuses foram bons. Eles nos ensinaram, como o

dr. Lorentz nos ensinou, a ter fé.” A fala evidencia uma

dependência continuada em relação à sabedoria branca.

Contudo, também funciona para restaurar algum valor

cultural à negritude. Muito do filme tem a ver como

desdém pelos modos dos nativos, mas Arobi enfatiza

uma noção da existência de deuses (plural). Porque, na

verdade, não é a ciência que mata os mutantes. Quem

faz isso é a África, por meio de um de seus vulcões, que

os destrói, trazendo equilíbrio para a natureza.

Monster from Green Hell não é uma obra perfeita, e os

problemas são significativos. Com a exceção de Arobi,

ainda é um filme que invisibiliza os negros. Por exemplo,

uma das mortes mais ligeiras e corriqueiras ocorre

apenas dois minutos e 51 segundos após os créditos

iniciais. Aqui, um homem negro chamado Makonga (sem

créditos), de uma das vilas africanas, é encontrado

morto. Sua morte não é vista, e é simplesmente dito que

o homem encontrou o seu

,

fim pelas mãos de um monstro

da selva — “o inferno verde” — que injetou uma

quantidade enorme de veneno nele. A cena serve para

estabelecer o que falta na negritude e aquilo que é

superior na branquitude. O corpo de Makonga é levado

até o dr. Lorentz. O dr. Lorentz representa a

modernidade, a sofisticação do iluminismo científico e

religioso dos brancos. Makonga é submetido a uma

autópsia sob a sombra de uma grande cruz pendurada

acima de seu corpo no hospital improvisado. A morte de

Makonga também simboliza o que há de errado na África

— seu “caos”, como menciona o filme. Seis meses depois

da morte de Makonga, os monstros se multiplicaram,

mas não há o menor sinal de qualquer forma de governo

africano, tampouco militares, centros médicos, indústrias

ou cidades modernas — há apenas a selva. A África é

retratada como rebelde, uma terra primitiva cheia de

superstições, sem modernização ou civilidade. Logo, são

os norte-americanos, cujos próprios experimentos

colocaram o continente em perigo, que saem voando

(literalmente, pois o filme faz uma propaganda das linhas

aéreas TWA) para tornarem-se os salvadores. Dan e Quent

chegam na África, de uma maneira que Sontag chamaria

de “fortemente moralista”, para fazer com que todos

saibam que eles dominam o uso próprio e humano da

ciência, e que eles, os homens brancos, não são

cientistas loucos.10 Em relação aos personagens negros,

com exceção de Arobi, há apenas “nativos” trabalhando

como uma junta de animais e sendo retratados como

vítimas desafortunadas dos monstros em fúria. Esses

papéis — carregadores e vítimas — não são mutuamente

exclusivos.

“EU REALMENTE AMO MULHERES

BRANCAS”11

Os cineastas continuaram a forçar a tendência de

oferecer aquilo que Gonder chama de “monstros

grosseiros racialmente codificados”, mas alguns também

acrescentaram mensagens antimiscigenação de maneira

aberta ou velada, só por via das dúvidas.12 O monstro da

lagoa negra (1954) é para os anos 1950 aquilo que King

Kong foi para a década de 1930, um filme

metaforicamente racializado e contra a mistura de raças.

O filme apresenta uma equipe de cientistas/arqueólogos

brancos viajando pela Amazônia em busca de uma

criatura negra que é ao mesmo tempo marinha e

terrestre — o Homem Guelra (Ricou Browning/Ben

Chapman). Assim como em O ataque vem do Polo, a

equipe conta com uma pesquisadora branca cujo papel

principal é ser um colírio aos olhos e gritar assustada

quando o Homem Guelra é avistado. Obviamente, ela

também é o objeto de desejo do monstro, que ataca

repetidamente a equipe para capturá-la. Os

pesquisadores são guiados na expedição por um grupo

de brasileiros que, assim como os africanos em Monster

from Green Hell, encontram fins terríveis e caóticos logo

no início do filme. As mortes desses homens — nativos —

são desimportantes, já que apenas a morte de um

cientista seria “um desperdício de experiência e

habilidade”.13 Contudo, o monstro evoca uma

racialização problemática.

Nesse filme a criatura é violenta e obstinada em seu

desejo por uma mulher branca. O Homem Guelra é Kong

e Gus de O nascimento de uma nação unidos em um só

corpo. Em relação ao seu corpo, o monstro parece uma

caricatura racista — os lábios são grandes e exagerados,

sua pele é pigmentada. É aparentemente vazio

mentalmente. Seus movimentos são trôpegos, exceto

quando faz um manobra rápida para roubar a mulher

branca. O monstro serve como uma imagem inversa da

evolução branca, que é mostrada como moderna,

intelectual e civilizada. Isto é, o filme nos diz que os

brancos — homens brancos no topo da hierarquia —

evoluíram, enquanto, note, outras raças permanecem

estáticas e imóveis em seu progresso. Logo, o filme fala

sobre onde, ou em quais lugares (a Amazônia exótica e

perigosa), e em quais populações (os brasileiros negros

ou não brancos) é possível encontrar a inferioridade.

Quando o monstro encara o seu esperado fim em seu

próprio território, pelas mãos da elite científica branca,

não apenas sua subordinação é assegurada, mas

também fica evidente que um Outro não tem lugar nem

pode contribuir para o mundo branco, e que sua mera

presença, ainda que em seu mundo não branco, é um

incômodo — algum tipo de fardo do homem branco.

Patrick Gonder, em seus ensaios “Like a Monstrous

Jigsaw Puzzle: Genetics and Race in Horror Films of the

1950s” e “Race, Gender, and Terror: The Primitive in

1950s Horror Films”, apresenta uma leitura detalhada e

profunda de O monstro da lagoa negra, argumentando

que a função do filme não é só reforçar a superioridade

branca e a inferioridade dos não brancos, ou sua

monstruosidade. Além disso, o filme também “toca nos

medos racistas de dessegregação”,14 como o monstro

negro, saindo do seu lugar na água e tentando se

integrar com aqueles que estão em terra, que é um

lembrete darwinista do motivo pelo qual a segregação é

necessária.15

É importante lembrar que O monstro não é apenas

uma história sobre uma ação sísmica na escala Richter

evolucionária. Mas, sim, uma história em que

pesquisadores brancos são levados a destruir o Homem

Guelra, em vez de estudar a criatura, pois ele cometeu o

maior pecado de todos: ter colocado seus olhos sobre

uma mulher branca.

A vida real e a arte foram amalgamadas em relação a

uma ameaça sexual à feminilidade branca. Em agosto de

1955, um garoto de quatorze anos de Chicago, Emmett

Till, foi assassinado por ter assobiado para uma mulher

branca enquanto estava de férias no Mississippi. A

brutalidade do assassinato do garoto foi terrível, pois ele

sofreu espancamentos e traumas graves, teve seus olhos

arrancados e levou um tiro na cabeça. Seu corpo

mutilado foi amarrado a uma peça de maquinário

agrícola de 45 quilos e jogado em um rio. A mãe de

Emmett, Mamie Till Bradley, exigiu que o mundo voltasse

sua atenção para essa atrocidade, bem como aos demais

horrores que os negros enfrentavam nos Estados Unidos,

quando abriu o caixão do filho e insistiu para que a

imprensa negra tirasse fotos e as publicasse em seus

periódicos.

Goldsby (250) escreveu sobre o impacto imagístico da

decisão de Till Bradley: “Em uma decisão surpreendente

que reformulou o escopo e a direção do caso, ela

autorizou um velório de quatro dias aberto a todos e

permitiu que a imprensa negra fotografasse o cadáver do

filho. As imagens do corpo mutilado de Till apareceram

em jornais e revistas de alcance nacional como Jet,

Chicago Defender, Pittsburgh Courier, New York

Amsterdam News e na Crisis”.16 As fotos do corpo

terrivelmente abusado e inchado de uma criança

representaram o ápice das imagens de horror. Em uma

rápida sucessão, vieram à tona casos históricos e de

grande notoriedade que reclamavam direitos e justiça

para os negros. Brown vs. Conselho de Educação de

Topeka, Kansas (1954), e o caso dos nove alunos afro-

estadunidenses que frequentaram a Central High School

em Little Rock, Arkansas (1957), foram desafios diretos

ao caso Plessy vs. Ferguson (1896), que assegurou a

segregação nas escolas. Até mesmo aqui, a segurança

das mulheres brancas era invocada — estariam as jovens

brancas a salvo de homens negros em suas salas

integradas? Till e o Homem Guelra sofreram destinos

similares, pois seus corpos foram destroçados de várias

maneiras e mortalmente feridos antes de serem jogados

em um túmulo cheio d’água. “Homens brancos não

apenas lincharam e torturaram afro-estadunidenses na

vida real”, escreve Butters, “mas viveram essa fantasia

por meio dos ataques cinematográficos violentos contra

homens negros”, fossem eles figuras reais, ficcionais ou

metafóricas.17

MUITO CHÃO PELA FRENTE

Não houve uma mudança muito discernível entre os

filmes de terror dos anos 1950 e as produções da década

de 1960. Os anos 1960 começaram da mesma forma que

a década anterior havia começado, com

cientistas/homens brancos procurando maneiras de

intervir na progressão da natureza enquanto os negros

sofriam com medidas de invisibilidade. A distância

,

entre

brancos e negros foi mais bem ilustrada no filme de

terror The Alligator People (1959). Situado em uma

Louisiana “primitiva, selvagem”, numa casa em uma

plantação que até uma “bruxa conjuradora sabe que é

ruim”, o filme conta a história de um cientista branco

cujos experimentos científicos transformam humanos em

crocodilos e que agora trabalha para reverter os efeitos

por meio da radioatividade. Esse filme conta com a

participação de dois negros, Toby, o mordomo (Vince

Townsend Jr.) e Lou Ann, a empregada (Ruby Goodwin).

Os estranhos experimentos científicos são feitos em um

laboratório que fica separado da casa. Toby e Lou Ann

ficam limitados à casa, onde limpam, cozinham e cuidam

de outros afazeres domésticos; apenas os brancos e

homens-lagartos brancos saem da casa e entram no

laboratório. Durante sua breve participação, Toby e Lou

Ann se engajam com a branquitude, esforçando-se para

controlar um trabalhador rude, Mannon (Lon Chaney Jr.),

um bêbado violento e sujo cujo comportamento errático

(tentativa de estupro) ameaça a pesquisa. Contudo, o

encontro entre eles é limitado ao momento em que

Mannon vai até a casa ou o jardim, já que esse é o limiar

para a dupla. Mannon, ao contrário, anda por toda a

parte, indo inclusive até a entrada do laboratório, um

lugar que está fora de cogitação para os empregados

negros.

The Horror of Party Beach (1964), um “musical de

terror” muito sério, é parecido com The Alligator People

em seu tratamento dispensado aos negros. Os negros

não figuram na narrativa, com a exceção de uma

empregada mal-humorada, esforçada mas não muito

inteligente, chamada Eulabelle (Eulabelle Moore), que

nunca é vista fora da casa do empregador, um

médico/pesquisador cientista. Quando monstros saídos

do lixo tóxico começam a matar jovens veranistas

brancos, é Eulabelle quem entra em cena para afirmar

não menos que três vezes ao médico designado para

resolver o problema que deve haver algum tipo de vodu

no meio daquilo tudo: “É o vodu, é isso que é!”. Não é.

Ainda assim, a supersticiosa Eulabelle serve para apontar

a religião negra como algo ruim, chegando ao ponto de

andar com uma boneca vodu para amaldiçoar o monstro,

ou, como ela diz: “aqueles malditos zumbis”. O

verdadeiro culpado é o lixo tóxico radioativo despejado

na água e que reanima os mortos, cujos corpos estavam

em naufrágios, trazendo-os de volta à vida como figuras

meio-humanas/meio-monstros-marinhos. A implicação é

que, ainda que o perigo seja branco e criado pelo

homem, o vodu negro é a medida para todas as

monstruosidades.

Contudo, a segunda contribuição de Eulabelle é bem

mais interessante. Antenada em todas as questões

domésticas, é Eulabelle quem descobre que o sódio

caseiro pode matar os monstros marinhos radioativos.

Porém, o modo como Eulabelle descobre a solução

reafirma a noção de que os negros não possuem lugar

em um laboratório. No filme, Eulabelle tem medo de ficar

sozinha no escuro e ousa descer no laboratório do

doutor, onde ele trabalha em uma arma química para

matar os monstros. Apesar de ter a habilidade de

carregar travessas, limpar e cuidar da parte de cima da

casa, no laboratório Eulabelle é um desastre. Ela derruba

produtos químicos e quebra tubos de ensaio, e então

pede desculpas aos gritos. Por acaso, o acidente dela

conduz à solução — sódio. Mas Eulabelle não possui a

capacidade intelectual para dizer “sódio”, então ela se

refere ao produto como “nem sei o nome disso”. The

Horror of Party Beach se mostrou problemático de duas

maneiras diferentes. Primeiro, o filme realmente serviu

para reforçar a crença de que apenas os brancos,

qualificados ou não (fossem as esposas ou outras

mulheres apaixonadas), deveriam estar nos laboratórios.

Em segundo lugar, para o ano de 1964, quando os

movimentos dos Direitos Civis e do Nacionalismo Negro

se complementavam, parecia regressivo ver uma

personagem estilo mãezona negra ressuscitada.

De maneira significativa, Vaidade que mata (1960)

apresenta uma personagem principal negra como adepta

e central aos experimentos de um cientista branco. Paul

Talbot (Phillip Terry) espera criar uma fonte da juventude

farmacêutica, uma droga capaz de cessar e até reverter

o processo de envelhecimento. É aí que entra uma

mulher negra de 152 anos de idade chamada Malla

(Estelle Hemsley), uma ex-escravizada que carrega,

como ela explica, “a marca do mercador de escravos

árabe que roubou a mim e a minha mãe da África e nos

vendeu do outro lado do mar há 140 anos”. A origem

africana de Malla a torna misteriosamente mágica, já

que, ao encontrar a esposa de Paul, ela (corretamente)

declara: “Você não vai precisar se divorciar do seu

marido. Não será necessário. Ele vai morrer. A morte dele

vai te dar vida […]. Você aparece nos meus sonhos

sangrentos.” Por acaso ela também tem Nipea, uma

mistura orgânica capaz de retardar o envelhecimento.

Uma negociadora dura e esperta, Malla insiste para que

Paul pague por seu retorno à África, e somente então ela

fornecerá a segunda substância que, misturada com a

Nipea, reverte o envelhecimento, restaurando a

juventude. A droga só pode ser encontrada na África,

entre o povo Nando, uma “raça selvagem e orgulhosa

[…] que tem um ódio imortal pelos europeus”. Paul paga

pela passagem de Malla, mas ele e sua esposa June

(Coleen Gray), que caminha já para os seus setenta anos,

aproximadamente dez anos mais velha que Paul, seguem

Malla em segredo até a África para assegurarem o

segundo ingrediente da droga — a fonte da juventude.

Eles descobrem que a tribo de Malla realiza um ritual no

qual homens são mortos e têm a glândula pineal

extraída, e então essa secreção é misturada ao pó de

Nipea e ingerida para reverter o processo de

envelhecimento. Dando continuidade ao ritual, Malla se

torna a bela “ jovem Malla”, interpretada pela popular

atriz Kim Hamilton. O filme então muda o seu foco de

atenção para June tentando fugir da África (com a Nipea

roubada), deixando todos os personagens negros para

trás, rumo aos Estados Unidos. June, nos Estados Unidos

— velha e considerada pouco atraente —, mata os

brancos ao redor dela a fim de extrair suas glândulas

para que ela mesma possa fazer a droga da fonte da

juventude. A mudança para os Estados Unidos é

necessária, pois June não pode capturar homens

africanos e injetar os fluídos deles em seu corpo. O filme,

cuidadosamente, evita qualquer mistura de sangue e

implicações de miscigenação.

Para dar os devidos créditos, Vaidade que mata foi um

dos poucos filmes de terror “com negros” de sua época a

elencar uma mulher negra em um papel principal. Mais

do que isso, a personagem é uma feminista, afirmando

os direitos das mulheres ao mesmo tempo que protesta

contra o etarismo, notando que os cabelos grisalhos dos

homens são injustamente respeitados como símbolo de

intelecto e maturidade, enquanto mulheres envelhecidas

são alvo de zombaria e negligência. Malla foi uma das

personagens negras mais substanciais durante essa

época do cinema de terror e foi considerada uma

melhora em relação ao tipo de representação que os

negros experimentavam em filmes como The Alligator

People. Ainda assim, a inclusão dos negros nos filmes de

terror do período continuava desigual e confusa.

AQUI VAMOS NÓS OUTRA VEZ: VODU E

NEGROS ENGRAÇADOS

Filmes de terror adotaram novamente a África e o Caribe

como locações, lugares livres das tensões raciais

testemunhadas nos Estados Unidos durante o movimento

dos Direitos Civis, e portanto lugares em que era possível

ter uma presença de personagens negros sem que o foco

recaísse em questões de igualdade racial. A estratégia

era voltar aos temas vistos nos filmes de terror da

década de 1930. Como resultado, zumbis, vodu e a selva

tiveram uma segunda chance em filmes como Serpent

Island (1954), A ilha do terror (1957), Voodoo Woman

(1957) e O fantasma de Mora Tau (1957). Mas poucos (ou

nenhum) negros apareceriam em tais filmes. Em vez

disso, durante

,

a maior parte da década de 1950 e em

boa parte dos anos 1960, como evidenciado pelo filme

Voodoo Bloodbath (1964), “quase todos os filmes de

terror com algum componente racial discernível

mantinham a presença dos negros restringida a

narrativas com ilhas exóticas, brancos se casando em

segredo e nativos (‘selvagens’) desinibidos praticando

vodu e experimentando zumbificação”.18 Por exemplo, o

filme de terror O fantasma de Mora Tau (1957) não tinha

nenhum personagem negro, mas esse fato não impediu

que a África fosse implicada, aquela terra “esquecida

pelo tempo”, no vodu maligno. Nesse filme com teor

político, que critica o colonialismo ocidental, é revelado

que, em 1894, um grupo de norte-americanos navegou

até a África para saquear diamantes. Os marinheiros

localizaram os espólios com sucesso e embarcaram os

diamantes em seu navio enquanto nativos africanos

praticantes de vodu (que não são mostrados)

amaldiçoam os homens, transformando-os em zumbis e

naufragando o navio. Como zumbis, os marinheiros são

condenados a proteger os diamantes para sempre. Ao

longo das décadas, outros caçadores de tesouros tentam

encontrar os diamantes, mas são mortos pelos zumbis.

Diferente da representação dominante de zumbis, esses

mortos-vivos norte-americanos brancos não têm um

“mestre”; isto é, esses zumbis brancos não são

controlados por africanos. Em vez disso, são monstros

bem autônomos que estão simplesmente aprisionados

em seus corpos mortos. Marinheiros estadunidenses

tentam novamente recuperar os diamantes. Uma mulher

velha branca (a esposa do capitão norte-americano que

foi transformado em zumbi) revela que os zumbis só

poderão finalmente descansar em paz quando os

diamantes estiverem perdidos para sempre no mar. No

fim, os diamantes são jogados ao mar, libertando os

brancos mortos-vivos da praga zumbi.

Com o retorno do terror para a África, o gênero

continuaria a culpar a negritude de formas diferentes. O

filme Bwana, o demônio, de 1953, tinha o potencial de

examinar o domínio colonial britânico sobre o Quênia e o

caminho de resistência do povo Kikuyu, que enfrentou

fome (devido ao racionamento britânico de comida),

excesso de trabalho em condições deploráveis,

humilhação, brutalidade e execuções nas mãos de seus

colonizadores. O protesto, por fim, culminou no

movimento Mau Mau de 1952, um levante contra o

domínio estrangeiro. Em vez disso, o filme mostra o

Quênia como uma terra inerentemente selvagem,

implicando até mesmo com a vida selvagem do país,

especialmente com os leões, em uma história de

vitimização racista em que os brancos são os

prejudicados. No filme, os leões quenianos decidiram que

os britânicos seriam a melhor escolha para o lanchinho

de um predador felino.

O público recebeu um filme de terror que referencia as

narrativas da década de 1940, em que os negros ficavam

assustados e sofriam abusos com o fim de causar um

efeito cômico. O filme Spider Baby or, The Maddest Story

Ever Told (1968) conta a história da família Merrye, que é

afligida pela Síndrome de Merrye. A doença herdada é

resultado de incesto e causa retardo mental. Um membro

da família, Virginia (Jill Banner), é obcecada por aranhas,

acreditando ser uma e usando cordas como teias e facas

de açougueiro como ferrões. Mantan Moreland, escalado

simplesmente como um “entregador”, abre o filme e

morre nos primeiros cinco minutos. O entregador sobe na

varanda da mansão isolada e decrépita da família Merrye

e espia pela janela, chamando por algum dos moradores.

A janela se fecha com força, prendendo-o de maneira

que sua cabeça e seu corpo ficam pendurados no interior

da casa enquanto suas pernas balançam do lado de fora,

na varanda. Virginia aparece com uma faca de

açougueiro em cada mão. Ela joga a sua “teia” no

entregador, enrolando-o. Alegremente, Virginia grita

“Ferroe, ferroe, ferroe!” enquanto retalha o entregador

com suas facas. O ataque tem tons de comédia. Uma

tomada da varanda mostra as pernas do entregador

sacudindo de maneira burlesca. Uma filmagem do

interior da casa mostra o torso superior do entregador

esmagado pela janela e Virginia segurando a orelha dele

como um souvenir. É uma cena típica do terror, exceto

pelo fato de que Moreland ressuscita sua risada e seus

olhos arregalados. Moreland, nessa ponta, é incluído

apenas com o objetivo de relembrar a figura do negro

engraçado sofrendo violências em filmes de terror.

Mantan Moreland talvez possa ser considerado uma

das pontes mais evidentes entre os filmes de zumbi dos

anos 1940, como O rei dos zumbis (1941) e A vingança

dos zumbis (1943), e a representação dos negros nos

filmes de terror. Moreland foi central na criação de filmes

sobre zumbis (e outros monstros) negros. Sua aparição

em Spider Baby marcou o fim de uma longa e árida

estação de filmes de terror livres de racialidades. Além

disso, as performances de Moreland lembraram ao

público de filmes de terror que negros e zumbis, para o

bem e para o mal, formavam uma dupla interessante, e

todos sentiam falta deles. Então não foi nenhuma

surpresa que o retorno dos negros ao gênero tenha

acontecido em um filme de zumbis (longe de ser

engraçado), A noite dos mortos-vivos (1968). A obra, que

merece ser discutido em detalhes, representaria uma das

mudanças mais dramáticas e provocativas em relação à

participação dos negros em filmes de terror.

UMA NOITE COM BEN

Foi na noite de 4 de abril de 1968. Algumas horas antes,

o diretor de cinema George R. Romero escutou, junto

com o resto do mundo, que o ativista dos Direitos Civis e

ganhador do Prêmio Nobel, dr. Martin Luther King Jr.,

havia sido assassinado em Memphis, Tennessee. Romero

já estava ansioso enquanto dirigia de Pittsburgh para

Nova York carregando no porta-malas A noite dos mortos-

vivos, o seu19 filme de terror de baixo orçamento e

produzido de maneira independente. Será que ele

conseguiria uma distribuidora para o seu filme, uma obra

que forçava o gênero do terror a novos limites com sua

violência gráfica e sanguinolenta e sua narrativa

sombria? A noite dos mortos-vivos, um filme de terror

“com negros”, traz um personagem negro como

protagonista, Ben (Duane Jones), que sobrevive de forma

heroica e única a uma noite longa e implacável de

ataques de monstros canibais apenas para ser morto em

plena luz do dia por um grupo de vigilantes brancos que

espetam seu corpo com ganchos para içá-lo acima de

uma fogueira. Certamente, no contexto do assassinato

de King, esse filme poderia ser considerado inflamatório

demais para conseguir financiamento. Contudo, pouco

depois de chegar em Nova York, Romero conseguiu o

financiamento para o filme com a Walter Reade

Organization/Continental, e (de maneira apropriada) no

halloween de 1968, A noite dos mortos-vivos estreou nos

cinemas, entrando para a história por conta da reforma

dramática que propôs ao gênero do terror. A noite dos

mortos-vivos é um filme de zumbis diferente de tudo que

veio antes e vem sendo copiado múltiplas vezes desde

então. O filme tem sido creditado pela revolução e

solidificação dos zumbis no subgênero do terror.

A noite dos mortos-vivos começa no cemitério de uma

cidade pequena próxima a Pittsburgh. Os irmãos Barbara

(Judith O’Dea) e Johnny (Russell Streiner) estão visitando

uma sepultura nesse cemitério. Um homem de terno se

aproxima lentamente da dupla, e ele parece normal de

longe. Contudo, à medida que o homem se aproxima,

fica claro que há algo de errado com ele — seu andar não

é lento, mas cambaleante; seu rosto duro não é solene,

mas guarda o olhar vazio de um morto-vivo. O homem

ataca Barbara, e Johnny corre para resgatá-la apenas

para ser morto quando o homem o empurra e ele cai,

batendo a cabeça em uma lápide durante a briga insana.

Barbara foge em pânico e assustada, incapaz de ajudar o

irmão, enquanto o “fantasma” ou zumbi a persegue.

Desfazendo-se mentalmente por causa do encontro

inexplicável, Barbara acaba em uma casa de fazenda,

onde

,

encontra refúgio. Pouco depois ela se junta a Ben (a

única pessoa negra do filme), que também está tentando

sobreviver ao ataque dos zumbis.

Enquanto Barbara fica catatônica, Ben assume o

controle de modo confiante. Ele se ocupa reforçando a

segurança da casa com tábuas para bloquear a

passagem dos zumbis que tentam entrar. Ben encontra

uma espingarda na casa e repele a horda de zumbis com

tiros em seus cérebros, golpes em suas cabeças e fogo.

São as últimas defesas de Ben, e ele está vencendo de

maneira heroica e efetiva. Contudo, sem que Ben e

Barbara saibam, um grupo de sobreviventes se trancou

no porão da casa e se encontra em silêncio, escondendo-

se daquilo que acreditam ser zumbis andando no andar

acima. Depois o grupo emerge. Vemos Tom (Keith Wayne)

e Judy (Judith Ridley), um jovem casal. E também a

família Cooper: Harry (Karl Hardman), Helen (Marilyn

Eastman) e a jovem Karen (Kyra Schon), sua filha, que foi

mordida por um zumbi e, adoentada, permanece no

porão. Quase imediatamente uma briga se inicia entre

Ben, uma pessoa altamente competente e ativa, e Harry,

um homem irritado e reclamão que exige autoridade e

respeito. Harry propõe que o grupo se tranque no porão

até que a ajuda chegue. Sua sugestão é recebida com a

oposição de todos. Tom fica do lado Ben e implora para

que Harry reconsidere a ideia de isolamento no porão —

o que Ben chama de uma “armadilha mortal” sem saída.

Helen se pergunta por que Harry tem que estar sempre

“certo e os outros errados”. Para Helen, que melhor

conhece Harry, a questão não é tanto a solidez de

qualquer um dos planos, mas o fato de seu marido

desejar ser o chefe. Ben Harvey, em seu livro Night of the

Living Dead (2008) argumenta que: “Ben também não é

nenhum santo; embora ele seja mais heroico, honrado e

carismático do que Harry, ele também pode ser pouco

razoável, às vezes”.20 Por exemplo, quando Harry

continua a se esconder no porão, deixando todos que

ficaram contra ele entregues à morte, Ben se recusa a

deixar que Harry leve comida para a filha.

Uma reportagem na televisão mostra que os mortos-

vivos estão em todos os lugares, e em uma das várias

notícias os cientistas especulam se o surgimento dos

mortos pode ter alguma coisa a ver com uma sonda

enviada da Terra até Vênus, que voltou repleta de

radiação. Diferente de muitos filmes de terror anteriores

e subsequentes, A noite dos mortos-vivos não acusa a

negritude do mal que está acontecendo. Os zumbis não

são negros e não surgem de lugares negros como a

África, o Caribe ou algum pântano da Louisiana, nem se

levantam como resultado de algum ritual vodu. Em vez

disso, Noite usou de um hábito comum na década de

1950, que era culpar cientistas (brancos) e invasões

alienígenas. Chegam notícias de que abrigos estão sendo

erguidos para os sobreviventes. Com os zumbis ainda

cercando e atacando a casa, Ben cria um plano para que

o grupo fuja em uma caminhonete que está próxima,

mas sem combustível. Tom, Ben e Harry — os homens —

trabalham em equipe para levar a caminhonete até um

posto de gasolina nas proximidades. No último minuto,

Judy corre para ficar ao lado de Tom enquanto ele luta

para se aproximar da caminhonete a fim de abastecê-la.

O plano dá errado, e a caminhonete ensopada de

gasolina explode com Tom e Judy dentro dela. A morte

deles é uma surpresa chocante — certamente o jovem

casal representaria a imagem do futuro norte-americano

depois que sobrevivessem. Não. Os zumbis jantam os

corpos chamuscados de Tom e Judy.21

Ao ver a cena, Harry se encolhe dentro da casa,

deixando Ben do lado de fora lutando contra os zumbis.

Aqui, o filme, de maneira esperta, coloca Ben, o herói,

entre dois tipos diferentes de monstros, ambos munidos

de uma humanidade decadente. Essa é também uma

reviravolta única no filme, pois a representação da

monstruosidade geralmente funcionava para realçar os

traços iluminados e favoráveis dos personagens

brancos.22 Aqui, o filme nos faz lembrar que humanos e

monstros não são assim tão diferentes e, na verdade,

podem ser a mesma coisa. Mas a tensão da cena é

aumentada pelo componente racial.

Enquanto Ben implora para que Harry abra a porta,

Harry fica parado; ele está petrificado pelos zumbis e

irritado com Ben. Harry alternadamente olha para fora e

se esconde de Ben. Logo, Ben encontra uma maneira de

entrar na casa. Assim que entra, ele e Harry se unem

momentaneamente enquanto tentam consertar a

abertura na casa que Ben foi forçado a fazer. Ainda

assim, Ben está possesso, gritando: “Eu deveria ter

arrastado você pra fora e deixado que aquelas coisas te

devorassem”. E fica subentendido que Ben, mais alto,

mais jovem e em melhor forma poderia dar um jeito no

velho e atarracado Harry. Mas Ben não faz isso. Quando

os reparos são terminados, Ben apenas xinga Harry por

ter tentado abandoná-lo à morte. As ansiedades raciais

são realçadas quando Ben faz algo que nunca havia sido

feito por um personagem negro em um filme de terror

(pelo menos não sem uma reprimenda severa contra o

personagem): Ben derruba Harry com uma pancada, o

levanta e bate nele de novo, deixando Harry

ensanguentado e com hematomas. Na verdade, até

aquele momento, em 1968, era raro que qualquer tipo de

filme mostrasse um homem negro batendo em um

branco. Ben, que não está mais em perigo imediato, bate

em Harry porque está frustrado e com raiva. Não se trata

de uma representação exagerada, mas a questão racial

dos homens aumenta o drama.

Mais tarde, depois que Ben se oferece para carregar

Karen (a filha de Harry) até um lugar seguro, Harry está

ainda mais interessado na espingarda de Ben e no poder

que a arma promete. Helen diz a Harry para deixar Ben e

a arma em paz: “Já não foi o bastante?”. Harry não

consegue deixar isso de lado, pegando a espingarda e

apontando para Ben. Mas Ben consegue lutar, então a

arma dispara e fere Harry mortalmente. Harry vai até o

porão e descobre que sua filha morreu. Os zumbis

começam a encher a casa, e Johnny, o irmão morto-vivo

de Barbara, acompanhado da horda zumbi, quebra a

janela e as portas, capturando a jovem para ser

consumida. Harry morre no porão. Karen revive e começa

a se alimentar do cadáver do pai. Ela então encontra a

mãe encolhida no porão, ainda viva. Com uma pá, Karen

golpeia brutalmente a mãe repetidas vezes para que

possa se alimentar dela também. Ben se vê forçado a

“matar” todos eles de novo e, com os zumbis invadindo o

andar de cima, ele se tranca no porão até o dia seguinte.

À medida que o dia amanhece, Ben sai do porão ao ouvir

o som de vozes humanas. A polícia e um grupo de

moradores locais estão cercando os zumbis e os

matando. Ao sair, Ben é repentinamente baleado na

cabeça por alguém que o confunde com um zumbi.

Os realizadores do filme se mantêm inabaláveis na

afirmação de que a escolha de um ator negro aconteceu

por acaso — “ele apenas era a melhor pessoa para o

papel” — e que a questão racial não teve importância no

roteiro, o que fica evidenciado pelo fato de a raça de Ben

não ser mencionada no filme.23 Embora Romero

estivesse ciente de que seu filme seria o “primeiro filme

a ter um homem negro interpretando o papel principal

independentemente e apesar de sua cor”, ele também

diz que “nem mesmo quando Duane leva um tiro na

cabeça no final, nós estávamos pensando em conotações

de brancos e negros”. Apenas décadas mais tarde ele

descobriu “o que aquilo significava de verdade”.24

Se Romero precisou de anos para entender o que o

papel de Ben significou, parte do público compreendeu

de imediato. Nos meses seguintes ao lançamento de

Noite, Romero foi bombardeado com perguntas sobre

aqueles “caipiras” que mataram Ben — eram pessoas

reais (já que alguns figurantes do filme eram “reais”,

como o repórter televisivo Bill Cardille interpretando ele

mesmo em uma ponta) atuando, ou simplesmente sendo

elas mesmas? Em uma resenha de 1970, Romero explica:

“a maior parte das pessoas, na verdade, morava na

cidadezinha

,

em que filmamos […] tivemos bastante

cooperação por parte das pessoas da cidade — da polícia

e dos administradores […] [eles ficaram] felizes em

poder empunhar armas”.25 Claro que rótulos de “milícia”

branca, “turba”, “caipiras” e até mesmo polícia

“provinciana” traziam à tona conotações racistas. Como

resultado, o desgosto que o público é levado a sentir em

relação aos personagens é aumentado e se transforma

em desprezo real e ódio quando fica entendido que se

tratam de pessoas reais dos fundões de Pittsburgh. Além

disso, em entrevistas, embora Romero seja cuidadoso

para não alienar aqueles que tanto o ajudaram ao se

voluntariar para o filme, ele admite não “ter feito muita

coisa” para dirigir a atuação dessas pessoas, já que “a

fantasia metafórica confronta uma realidade mal

filtrada”.26 Essa colisão entre fantasia e realidade se

torna ainda mais real quando, no remake do filme, feito

por Romero em 1990, o ator Tony Todd (famoso por O

mistério de Candyman) foi escalado como Ben. Todd se

lembra dos tons de intolerância real partindo dos

figurantes que interpretavam a turba:

Todo mundo na cidade queria ser um zumbi. E

nós filmamos em Washington, PA, que não é o

lugar mais progressista dos Estados Unidos.

Você deve ter visto O franco atirador. Coisas

estranhas acontecem na Pensilvânia. Então,

estou cercado por zumbis que eram caipiras na

vida passada […]. Eu sabia que seria um lance

fodido, porque eles estavam esperando para me

agarrar de verdade. Um pouco da tensão que

você vê é real, coisa genuína.27

Na versão original de Noite, o fato de que a turba

caçadora de zumbis estivesse acompanhada de cães

treinados para atacar os alinhava com as imagens já

familiares de cães policiais sendo incitados a atacar

ativistas dos Direitos Civis. Sua vestimenta rural, camisa

de flanela e jeans, o jeito de falar — “Bata neles ou

queime, eles morrem fácil” — e seus acessórios que

consistiam em balas, charutos e armas, no geral

anunciavam os “cidadãos de bem”,* que também

representavam perigo para os negros. O perigo que os

homens representam é mostrado na maneira descuidada

com que recolhem o corpo de Ben. Ele é baleado e tirado

do enquadramento da câmera apenas para ser visto

novamente em uma longa tomada que mostra seu corpo

sendo arrastado pelo chão. O xerife, de modo simplista,

diz: “Bom tiro” e “Mais um pra fogueira”. Hervey escreve:

“E acaba assim: sem nenhuma longa sequência de

morte, sem nenhuma glória para o herói”.28

Ao contrário das afirmações de Romero de que a raça

não havia sido levada em consideração, o ator Duane

Jones (que trabalhava como professor de inglês durante o

dia) rejeitou a ideia de que Barbara sairia do estupor

para se levantar e salvá-lo dos zumbis. Para Jones, tal

final teria sido “racialmente errado”. Jones acreditava

que “a comunidade negra iria preferir me ver morto a ser

salvo […] de uma maneira brega e simbolicamente

confusa”. A morte de Ben foi chocante, mas talvez tenha

sido um dos momentos mais realistas do filme, já que ele

é morto pelos seus “inimigos naturais, os policiais e

caipiras de Pittsburgh”.29

Aqueles que saíram do cinema antes de os créditos

finais rolarem não viram a forma como lidaram com o

corpo de Ben. Uma série de imagens granuladas são

exibidas rapidamente durante os créditos. Elas parecem

o que poderiam ser fotos antigas de Emmett Till, baleado

na cabeça, sendo jogado na parte de trás da

caminhonete de seus executores para ser levado até o

rio Tallahatchie, onde seu corpo seria sujeitado a mais

abusos. Em vez disso, as fotos são do cadáver sem vida

de Ben, sendo empalado por ganchos de açougues e

erguido para ser colocado em uma fogueira. O corpo de

Ben então é esmagado nas chamas por madeira e

destroços. No fim, “nosso herói não está apenas morto,

mas obliterado. Não haverá registro de sua luta, nenhum

funeral ou cerimônia, nenhuma esperança de justiça”.30

Há muito o que se dizer sobre a produção de A noite

dos mortos-vivos, assim como sobre seu simbolismo e

poder. Richard Dyer, em seu famoso ensaio “White”,

chama a atenção para o simbolismo de cor no filme,

como a fotografia em preto e branco numa era de cor

com o objetivo de acentuar e complicar os

entendimentos de bem e mal. A noite é escura (negra),

mas a luz do dia traz outro mal na forma da multidão

(branca).31 O filme foi acusado inicialmente de

apresentar uma “p*rnografia da violência” com suas

impávidas cenas de zumbis estripando suas vítimas e

então devorando suas entranhas, fazendo com que a

Associação Cinematográfica da América analisasse seu

sistema de classificação.32 E houve aqueles que

escreveram sobre a “família” disfuncional em guerra e

incapaz de trabalhar em união mesmo em um desastre

que transcendia raça e classe.33 Contudo, pouco se sabe

sobre a reação de Noite entre os negros — isto é, além

do fato de que uma grande quantidade de pessoas

negras apoiou o filme, contribuindo para a sua

popularidade.

FIGURA 4.1 BEN SENDO ATIRADO NUMA PIRA EM A NOITE DOS MORTOS-

VIVOS.

Ten/Photofest

A surpreendente bilheteria de Noite — tendo custado

aproximadamente 115 mil dólares, mas arrecadando 90

mil só no primeiro fim de semana — pode ser atribuída,

em grande parte, a sua recepção popular entre o público

negro.34 Kevin Heffernan aponta a contribuição dos

negros frequentadores de cinema para o sucesso de

Noite em seu livro Ghouls, Gimmicks, and Gold: Horror

Films and the American Movie Business 1953-1968 e em

seu artigo de jornal “Inner-City Exhibition and the Genre

Film: Distributing Night of the Living Dead”. Ele observa:

(1) normalmente, os negros compunham 30% da

primeira leva de público em comparação com os 15 a

20% cento da população geral; (2) os cinemas em bairros

negros contribuíram para o sucesso de Noite, pois tinham

dificuldade de conseguir filmes (especialmente durante o

boom do 3-D, quando adaptar os cinemas se mostrou

caro demais), e assim A noite dos mortos-vivos foi

recebido com ansiedade e por um longo período de

tempo; (3) um filme como Noite, com sua atenção

implícita ao assunto de raça, ficava em cima do muro

entre ser um “filme de prestígio sobre um problema

social” e um “produto apelativo”; e (4) o público negro

fez filas para ver um filme com um afro-estadunidense

orgulhoso, esperto e habilidoso como protagonista e

estrela principal.35 Heffernan também nota que, quando

cinemas de comunidades afro-estadunidenses (em

cidades como a Filadélfia, por exemplo) conseguiam

exibições de estreia (um acontecimento incomum), os

filmes geralmente eram de terror.

De fato, se a atenção que a impressa negra dispensou

ao terror nas décadas de 1950 e 1960 serve de

termômetro, é possível afirmar que o gênero tinha um

status favorecido na comunidade negra. Em jornais como

o Chicago Daily Defender, o New York Amsterdam News e

o L. A. Sentinel, artigos curtos e reportagens que davam

conta do gênero eram frequentemente publicados,

notavelmente quando nenhum outro filme ou gênero era

mencionado. O jornal Daily Defender era particularmente

prolífico: por exemplo, publicou um artigo em 1957,

“Horror Films Debut Soon”, prometendo que

pessoas que gostam do tipo de filme que faz

gelar o sangue serão agraciadas em breve com

a chegada de uma nova série chamada “Shock”.

Cinquenta e dois filmes de terror dos arquivos

da Columbia e da UniversalInternational

prometem um ano inteiro de entretenimento

sangrento […] fiquem atentos a esses filmes —

eles serão um agrado terrível.36

Um artigo de 1960 no mesmo jornal proclamava: “uma

tríade de filmes horripilantes em exibição no Royal

Theatre está metendo medo e provocando risadas em

espectadores que nunca experimentaram isso antes. Um

balde de sangue, O ataque das sanguessugas gigantes e

Ordem de matar compõem uma programação

eletrizante”.37 Em outro artigo de 1960, o Daily Defender

detalha alguns dos clichês do terror ao promover o filme

Paranoia, que estava em exibição no Oriental Theatre em

Chicago:

,

muitos filmes de terror desenvolvem um enredo

ao redor de uma bela vítima que está sozinha e

vulnerável ao assassinato […] outra técnica dos

filmes assustadores é deixar que o espectador

acredite que a vítima pode escapar […] um dos

ingredientes comprovados do terror é tentar

levar a vítima à loucura.38

Esse estilo de escrita estilizado sobre o terror continuou

até os anos 1970:

Dois filmes excelentes de terror e suspense,

chocantes e de dar calafrios, que são

assustadores e agoniantes mesmo nos

momentos mais amenos de suas histórias, estão

com sua dupla estreia marcada para a sextafeira

(17 de abril) em mais de trinta cinemas de

bairro, nos subúrbios e drive-ins por toda a

Chicago […]. Porém, tomem cuidado, pois esses

dois filmes não são para os fracos de coração.

Aqueles que duvidam do oculto, que são

assustadiços e nervosos, estão duplamente

avisados.39

Estar ciente da promoção e popularidade dos filmes de

terror nas comunidades negras é essencial para entender

como, de maneira geral, o gênero evoluiu graças ao

público negro, e por que Noite, especificamente, foi um

sucesso tão grande. Na época em que Noite chegou aos

cinemas, a Walter Reade/Continental estava pronta para

capitalizar com o mercado afro-estadunidense tão

maltratado normalmente. “Muitos dos cinemas que

exibiram A noite dos mortos-vivos”, escreve Heffernan,

“ficavam no interior das cidades e atendiam

majoritariamente um público negro”, em parte porque os

cinemas de bairro, ou nabe houses,* como eram

apelidados, que atendiam os negros tinham dificuldade

de conseguir filmes.40 Esses cinemas abraçaram uma

programação independente, eclética, fora do escopo dos

grandes estúdios. Noite, por exemplo, apareceu em

conjunto com o drama Um amor para Ivy (1968), de

Sidney Poitier, em sua primeira exibição em um cinema

negro de bairro na Filadélfia, e em outra sessão ele foi

pareado com o filme policial Quadrilha em pânico (1968)

que estrelava Jim Brown.41 Em cinemas desse tipo, A

noite dos mortos-vivos rodou bastante.42

Em 1999, A noite foi inserido na lista da US National

Film Registry e é material de referência para inúmeras

obras de zumbis, incluindo uma franquia de sequências e

outras histórias derivadas, ao mesmo tempo que ganha

status de clássico cult entre seus fãs.

DESPERTAR DOS MORTOS

Romero continuaria, em seus três filmes seguintes —

Despertar dos mortos (1978), Dia dos mortos (1985) e

Terra dos mortos (2005) —, a empregar homens negros

em papéis centrais importantes. Despertar dos mortos é

situado algumas semanas após o primeiro levante dos

mortos e revela que a praga zumbi se infiltrou em cada

canto da sociedade. Aqui, o desespero da situação é

revelado quando os zumbis são vistos causando

destruição na cidade altamente populosa da Filadélfia.

Grupos de oficiais da SWAT, predominantemente brancos

(uma versão urbana dos caipiras mostrados em Noite)

atravessam cortiços, pouco se importando em distinguir

zumbis dos residentes humanos negros e não brancos

dos prédios: “Acabe com todos os porto-riquenhos e os

crioulos de uma vez!”. Uma violenta limpeza racial/étnica

e de zumbis começa quando os residentes se recusam a

sair de suas casas conforme ordenado.

Um tema contínuo de Romero em seus muitos filmes

dos Mortos, os zumbis são metáforas para a branquitude,

mesmo que alguns zumbis sejam mostrados como não

brancos. Numa cena, uma zumbi negra ataca um homem

negro. A zumbi não só é pálida para evidenciar seu

estado defunto, mas parece embranquecida, um

contraste de cor “enfatizado em uma tomada de uma

zumbi negra embranquecida mordendo o pescoço do

homem negro”.43 Entra o herói negro, Peter (Ken Foree),

um membro da SWAT que se levanta contra os seus pares

brancos, exigindo que interrompam a matança de

inocentes. Quando um membro do grupo não para

imediatamente, Peter o mata, como faria com um zumbi,

dando um fim à performance hiper-masculina e de

dominação racial do outro. Peter está fora e acima de

ambas as coisas. Ele faz amizade com outro oficial tático,

Roger (Scott H. Reiniger), um homem branco que

despreza igualmente o tipo de violência que

testemunham. Peter e Roger decidem tentar escapar da

loucura zumbis/polícia procurando um refúgio livre do

caos. Eles se juntam a outros que possuem a mesma

intenção — um casal branco, Stephen (David Emge) e

sua amante Francine (Gaylen Ross), que são repórteres

de uma estação de notícias e têm acesso ao helicóptero

da estação. Mais tarde, é revelado que Francine está

grávida. Os quatro encontram um local seguro em um

shopping.

O filme é uma crítica ao consumo e ao consumismo

norte-americano, assim como um engajamento — graças

à presença da mulher grávida — com o movimento

feminista e a revolução sexual. Ao locar o filme em um

shopping, Romero continua a trazer mudanças

impressionantes e inovações ao terror. A escolha foi

importante porque décadas de cientistas malucos,

mulheres em transe, histórias de experimentos que

deram errado e locações como antigos laboratórios

domésticos se tornaram “chatas e rotineiras”.44 O

shopping foi uma novidade emocionante, com o grupo

atuando em meio a suas mercadorias.

A vida em Despertar é feita de materialismo, que é

ocasionalmente interrompido por zumbis. Da mesma

forma, a negritude não interrompe (muito). Em uma

cena, tambores da selva servem de trilha sonora quando

o grupo explora uma loja de armas com a foto de um

safári africano. Enquanto os tambores e a música

“africana” geralmente sinalizam vodu, não há zumbis de

vodu aqui, apesar do comentário (inexplicável) de Peter

dizendo que seu avô era um sacerdote vodu. Em vez

disso, esse é um filme sobre exploração econômica, que,

de acordo com Romero, significa que todos os norte-

americanos se tornaram zumbis consumindo sem pensar

— canibalizando os produtos, em sua maioria

desnecessários para a sobrevivência e o sustento. Não

dá para culpar o vodu negro por isso.

A vida de Peter se transforma em uma rotina chata,

que, de maneira pouco progressista, inclui assistir

Francine “limpar a casa”, em um apartamento que o

grupo montou no shopping. A esperta e talentosa

Francine “dá uma de Caldwell”, como no filme O ataque

vem do Polo, cozinhando e limpando para os homens

(embora ela exija ser consultada acerca dos planos e ter

permissão de aprender a atirar e pilotar o helicóptero).

No restante do tempo, a existência de Peter é vazia,

limitada a conversar com seu amigo Roger, que foi

mordido por um zumbi, até que ele morre e Peter precisa

atirar no parceiro.

FIGURA 4.2 PETER SE PREPARA PARA LUTAR CONTRA ZUMBIS EM DESPERTAR

DOS MORTOS.

United Film Distribution

Company/Photofest

Com o tempo, a relativa paz do grupo é perturbada

por uma gangue de motociclistas que deseja os espólios

do shopping. A gangue invade o local e hordas de zumbis

vêm atrás, enchendo o lugar. Os motociclistas se tornam

comida de zumbi, e Stephen é morto e transformado em

morto-vivo. Peter e Francine — que, após meses no

shopping, já se encontra em um estágio avançado da

gravidez — são os únicos sobreviventes. Francine os

conduz pelos ares para longe do shopping. O filme

termina convidando o público a se preocupar com o

destino da dupla. Eles têm pouco combustível e não

fazem ideia do rumo que deveriam tomar. Contudo, há

coisas que o filme não aborda — será que Francine

conseguira parir seu bebê sozinha? Peter, um oficial

treinado, seria capaz de ajudar? Qual será o futuro da

dupla? São nessas questões que a negritude e

masculinidade de Peter e a branquitude e feminilidade de

Francine aparecem de maneira mais óbvia.

DIA DOS MORTOS

A terceira produção de Romero, Dia dos mortos (1985),45

não teve a inovação política e, até certo ponto, racial,

dos outros filmes da série. O filme é situado em uma

época “após o fechamento de todos os shoppings” (uma

referência a Despertar dos mortos) e se passa em um

bunker militar subterrâneo na Flórida em que

experimentos grotescos são feitos

,

(2007), em seu livro The Horror Film,

observa de forma jocosa, ainda que astuta, que autores

que escrevem sobre filmes de terror têm uma propensão

a incluir “declarações mais ou menos irônicas indicando

que seu interesse [em filmes de terror] começou na

infância ou recentemente, argumentando de forma

implícita que a credibilidade que uma pessoa possui para

falar sobre o tema foi de alguma forma melhorada ou

piorada apenas em relação à época em que o interesse

do autor começou”.1

Aqui eu me junto a essa banal tradição para oferecer

minha própria declaração de interesse — comecei a

gostar de filmes de terror bem cedo, talvez com apenas

cinco anos de idade. Essa revelação vai além das minhas

confissões em relação às “florestas psicológicas” da

minha infância levemente insana.2 Minha honestidade

quanto ao consumo do terror — e quanto a gostar disso!

— é oferecida para fornecer a vocês alguma base

relacionada às minhas experiências únicas com o gênero.

Tenho esperança de que este vislumbre do meu mundo

psicológico ajude você a compreender de onde surgiram,

em parte, minhas interpretações sobre a representação

dos negros no cinema.

CONFISSÕES DE UMA CRIANÇA DO TERROR

Escrevo este livro cheia de um sentimento de posse. Eu

nasci e fui criada em Pittsburgh, Pensilvânia. Para os

verdadeiros fãs de terror, eu não preciso dizer mais nada,

pois vocês entendem o motivo de eu dizer que este livro

é o meu destino. Para aqueles que precisam de uma

pista: o lugar do meu nascimento foi o berço do Hércules

do terror, George “A noite dos mortos-vivos” Romero,

assim como do extraordinário criador de efeitos visuais

Tom “Padrinho do Gore” Savini.3

Na pré-adolescência, eu estava levemente ciente de

que literalmente seguia os passos de Romero e Savini em

meu shopping favorito de Pittsburgh — o Monroeville

Mall. O “Shopping” (como nós de Monroeville o

chamamos) é a assustadora peça central em espaço e

ideologia no filme Despertar dos mortos (1978) de

Romero. O filme também continha a magia dos efeitos

espetaculares de Savini nos mortos-vivos, ele, que

também faz uma ponta como um “zumbi motoqueiro”.

Em 1979, aos dez anos de idade, eu gostava de fazer

o que crianças entediadas do país inteiro gostam de

fazer — andar no shopping. O personagem adolescente

Flip Dog (Danny Hoch) do filme Garotos brancos (1999)

colocou este rito de passagem mundano da juventude

moderna em perspectiva de forma sucinta: “Tudo que

eles fazem é andar pelo shopping o dia todo […] Indo da

Chi-Chi’s pra Footlocker e da Footlocker pra Chi-Chi’s […]

Umas ocupações idiotas pra caralho”.4 Idiotas mesmo.

Foram as crianças da minha geração que, de forma

desavergonhada, começaram a abandonar os parquinhos

e os cantinhos de areia, preferindo andar pelas alas dos

shoppings como zumbis.

Mas o Monroeville Mall nos anos 1970 era uma coisa

realmente especial. Primeiro, porque o seu primeiro

andar era uma pista de patinação no gelo coberta. Com o

rinque envolto em acrílico, o lugar parecia o Civic Arena

(também conhecido como O Grande Iglu), lar dos

Pittsburgh Penguins. Você podia se sentar perto do Pup-

A-Go Go, um restaurante que se parecia com uma

barraca de cachorro-quente, e assistir ao pequeno Mario

Lemieuxs patinando de forma acanhada pra lá e pra cá

no gelo enquanto a pequenina e futura Michelle Kwans

ficava no centro do rinque, cruzando as pernas e

pulando. Alguns anos depois, a direção do shopping, não

aquiescendo à missiva de Romero sobre os perigos da

produção em massa, iria desmontar o idiossincrático

rinque de gelo com o Pup-A-Go Go. O lugar foi

abocanhado por uma loja de biscoitos Mrs. Fields

(trocadilho proposital).

Eu assisti Despertar dos mortos com a minha avó e

com a minha mãe no Greater Pittsburgh Drive-In, que

frequentemente exibia filmes de terror tarde da noite.

Embora tenha surgido uma década depois de A noite dos

mortos-vivos, o Despertar de Romero pareceu atrair sua

parcela de negros. Existem pelo menos duas teorias

interseccionadas sobre a afinidade dos negros em

relação ao Despertar. A primeira explicação é que, uma

década antes, muitos dos cinemas que exibiram A noite

dos mortos-vivos atendiam cidades do interior, servindo

uma audiência predominantemente negra.5 Talvez o

acesso tenha contribuído para o amor inicial dos negros

para com Romero. Contudo, creio que essa proximidade

foi apenas uma parcela daquilo que atraiu espectadores

negros para os filmes seguintes do diretor. O outro ponto-

chave foi que Noite tinha Ben! Ben (Duane Jones) — um

personagem principal negro complexo e corajoso, que se

mostrou calmo sob pressão, tomou controle de uma

situação mortal com competência, e, de forma

surpreendente, chutou alguns traseiros (brancos) e

mostrou respeito (afinal de contas, ele bate e atira em

um homem branco).

Nós, duas mulheres e uma criança, nos dirigimos até

aquele drive-in para ver se Romero nos daria mais uma

vez outro herói negro empoderado que não vacilava e

não era apelativo. Romero não nos decepcionou. Ele

provocativamente proporcionou um conquistador negro e

mais, através do personagem durão Peter (Ken Foree),

que sobrevive à praga zumbi e busca segurança com

uma estranha — uma mulher branca grávida (suspiro),

Francine (Gaylen Ross). Poderiam Peter e Francine

encontrar esperança e uma vida sem zumbis em outro

lugar? Quem vai fazer o parto do bebê de Francine

(suspiro duplo)? Seja em 1968 com Noite, 1978 com

Despertar, ou até mesmo hoje, representações desse

tipo de raça, sexo e relações de gênero continuam a ser

muito importantes.

Se não me falha a memória, minha viagem até o

drive-in com a minha família ficou ainda mais sublime

quando Noite passou logo depois de Despertar como

parte de uma dobradinha de Romero. Eu mantive o meu

sono distante para que pudesse ver Noite outra vez (eu

já tinha assistido antes), com os olhos “maduros” de uma

criança de dez anos de idade. Vi o canibalismo como algo

“nojento”. Contudo, fiquei profundamente afetada, de

forma indescritível, pelo infame final de Noite, que, na

minha mente, serviu, tanto na época quanto hoje, como

uma crítica poderosa a respeito das relações raciais. Nas

doloridas cenas finais de Noite, depois de Ben ter

vencido todas as dificuldades para sobreviver à noite

contra os zumbis canibais, ele é (simbolicamente)

linchado por uma turba de homens brancos com

espingardas. O filme refletia diretamente o clima social

da sua época. O assassinato de Martin Luther King Jr.

aconteceu no mesmo dia — 4 de abril de 1968 — em que

Romero levava Noite até Nova York para ser distribuído.

Para muitos negros em 1968, depois do assassinato do

dr. King, era plausível se questionar se um homem negro

seguro de si como Ben poderia ao menos sair da tela

grande em segurança. Embora o filme de Romero fosse

uma fantasia com seus zumbis comedores de carne,

ainda assim era um obra de realismo significante. Ele

dirigiu a atenção da audiência, exigindo que levássemos

em consideração que no mundo real dos negros as

multidões brancas são bem mais mortais.

Eu me lembro da minha avó disposta a colocar a mão

sobre uma pilha de bíblias e jurar que reconhecia um

daqueles “matadores de pretos com armas nas mãos,

este e aquele”, à medida que os via aparecendo no filme.

Eu odeio dizer isso, mas ela podia estar certa. Policiais da

área de Pittsburgh e de outros locais atuaram como

figurantes na cena principal que decidiu o futuro de Ben.

O que vimos em Despertar e Noite era realmente as

nossas experiências em Pittsburgh naquela tela.

Pittsburgh, assim como várias cidades dos Estados

Unidos nas décadas de 1970 e 1980, tornou fácil ter

certa hesitação em relação ao seu potencial progressista

(especialmente para as minorias). Pittsburgh era, e ainda

é, uma cidade segregada. Seus bairros são ricos

culturalmente, mas também servem como fronteiras

raciais. O bairro de Bloomfield é predominantemente

italiano. Polish Hill [Colina Polonesa] fala por si só. No

lado

,

nos zumbis por

cientistas civis sob direção militar. Acima do chão, as

coisas parecem sem esperança, com pouca vida restante

à medida que os zumbis tomam conta de tudo. Os

membros restantes do governo e do Exército esperam

que os experimentos revelem uma maneira de acabar

com o reino dos zumbis. O filme se foca em um zumbi,

Bub (Sherman Howard), que parece estar evoluindo e

pode sentir a maldade nos cientistas e militares de moral

decadente. Os cientistas são distantes, às vezes ríspidos.

Um deles faz experimentos em soldados mortos-vivos, e

até mesmo os joga como alimento para os outros zumbis.

Os cientistas são “loucos”. Os militares são a versão da

década de 1980 dos caipiras de Romero. Os soldados são

mostrados como figuras sádicas, racistas e machistas. Os

militares é que são os monstros, prontos para matar e

torturar tanto zumbis quanto humanos. Os homens

ameaçam estuprar a única cientista mulher, Sarah (Lori

Cardille), importunam e até matam os outros civis da

equipe por serem diferentes.

O personagem negro indispensável no filme é John

(Terry Alexander), um piloto civil de helicóptero oriundo

das Índias Ocidentais. Nesse contexto, John é uma tripla

minoria — negro, não militar/cientista e estrangeiro,

como fica evidente em seu sotaque. John também é

educado e civilizado. Ele cria um lugar de convivência

improvisado, mas idílico, que chama de “Ritz”, dentro do

bunker, e que tem até mesmo a réplica de uma cabana

na beira do mar que ele usa como sala de leitura. Ele

divide seus aposentos sem dificuldades com um civil

branco e direito chamado William (Jarlath Conroy), em

um acordo de convivência que alude a uma definição de

masculinidade mais iluminada, não associada aos

soldados, que dormem com suas armas.

No filme, as coisas dão errado, e Sarah, William e John

precisam lutar em duas frentes de batalha: contra os

zumbis, que lotam o bunker, e contra os soldados, cuja

sede de sangue é igual a dos mortos-vivos. Todos são

dispensáveis em potencial nesse filme, com exceção de

John, porque ele é o único que sabe como pilotar um

helicóptero e pode levar os sobreviventes até um lugar

seguro. Embora os militares precisem dele, ele é

claramente desprezado. John zombou do comportamento

primitivo dos soldados e não baixou a cabeça para suas

ameaças. Quando ele se recusa a abandonar Sarah e

William para encarar a morte iminente nas mãos dos

zumbis que estão no bunker, John é espancado até

obedecê-los — uma referência clara à escravidão.

Contudo, ele luta contra os soldados, resgata Sarah e

William, e salva o dia ao levá-los pelos ares para longe do

bunker e para uma ilha deserta que só ele parece

conhecer. O filme termina com John pescando em paz em

uma praia, junto com Sarah e William.

Em uma convenção de terror em 2010, em

Indianápolis, o ator Terry Alexander e o diretor Romero

falaram sobre o personagem John e, especificamente, a

respeito dessa cena final que mostra os três personagens

desfrutando uma sobrevivência pacífica. Ao notar a

capacidade do personagem John, Romero disse que,

embora tenha havido centenas de outros filmes em que

zumbis-dominam-o-mundo, talvez o público continue a

acreditar que “Terry ainda está pescando naquela praia”,

uma hipótese que Alexander abraçou de forma

entusiasmada.46 O comentário de Romero sobre o

personagem John confirma sutilmente a análise de Dyer,

de que “o ponto principal em relação a Ben, Peter e John

é que, de maneiras diferentes, todos eles possuem

controle sobre seus corpos, conseguem usá-los para

sobreviver, sabem como fazer coisas com eles”. Embora

os brancos percam o controle enquanto permanecem

vivos, muitas vezes voltando “na forma descontrolada de

zumbis”,47 esses homens negros, especialmente John —

que, diferente de Ben, sobrevive, e, diferentemente de

Peter, conduz o grupo até um local seguro —, continuam

donos de si, seguindo em frente.

TERRA DOS MORTOS

Em 2005, Romero lançou Terra dos mortos. Aqui, a

profundidade política de Romero volta, pois ele trabalha

para criticar o classismo. Em Terra existem duas classes.

A primeira é a classe superior, composta de humanos

ricos que vivem em um prédio requintado de frente para

a água, de vidro e aço, que tem três lados protegidos

pelos três rios da cidade e, do lado que dá para a terra,

há barricadas eletrificadas. O estilo de vida dessas

pessoas é mantido pela segunda classe, forrageadores

profissionais que vasculham as ruínas da cidade

enquanto lutam contra zumbis, ou “fedidos”, em busca

de mercadorias — comida, vinhos finos, tecidos e outros

suprimentos. Os forrageadores vivem, assim como a

maior parte dos cidadãos, numa terra devastada, caótica

e brutal. Essa segunda classe se encontra faminta e

imunda, vivendo e morrendo nas ruas. A terceira classe,

ainda que não seja a “mais baixa”, é formada pelos

zumbis, que andam livremente e, à medida que os

humanos morrem ou são capturados do lado de fora das

cercas, têm muito o que comer.

Um zumbi, um homem negro chamado “Big Daddy”

(Eugene Clark), acaba por ser especialmente evoluído e é

ciente da brutalidade continuada direcionada aos zumbis.

Ele se torna o líder de uma facção zumbi, aprende a se

comunicar com rugidos e rosnados, e descobre como

usar armas para destruir seus opressores humanos. Ele

até mesmo ensina seus compatriotas a pegarem em

armas como facas e facões. Em uma cena importante,

Big Daddy evidencia um alto nível de pensamento

racional, pois conclui que seu exército zumbi pode

alcançar o prédio — um símbolo que ostenta exclusão

até mesmo para os zumbis — indo pelo fundo do rio em

vez de arriscar uma eletrocussão na cerca. De fato, os

zumbis invadem, e Big Daddy busca uma vingança

particularmente brutal contra o malvado dono do prédio.

O filme termina com um grupo de sobreviventes

humanos, estrelas do filme, entregando a cidade para

Big Daddy enquanto os humanos procuram um novo

lugar para viver. Por sua vez, Big Daddy parece

reconhecer essa trégua enquanto lidera seu exército

zumbi.

Como um todo, os filmes de Romero podem ser

celebrados por seu tratamento complexo e até mesmo

positivo dos negros. Parte da profundidade de seus

personagens talvez venha da crença de Romero de que

raça não fazia diferença quando ele escalou os atores

Duane Jones, Ken Foree ou Terry Alexander.48 Contudo,

seus personagens não estão livres das histórias e

políticas que a pele deles traz de herança. Os

personagens negros de Romero são revolucionários no

que se refere à representação cinematográfica de raça

nos Estados Unidos, fossem heróis humanos ou zumbis. E

mais ainda: esses personagens negros são retratados

como pessoas diferentes dos brancos ao redor deles.

Ben, Peter, John e Big Daddy são autoconscientes de

suas identidades, e, enquanto buscam sobreviver entre

os demais, eles não passam necessariamente uma

mensagem de integração, mas de coexistência — uma

diferença sutil, mas importante. A diferença deles se

torna mais evidente quando, como Dyer insiste, a

negritude dos personagens é compreendida em

contraste com a branquitude. Através de tal análise, fica

óbvio que o heroísmo desses quatro personagens vem,

em parte, do fato de se elencarem enquanto alheios às

hierarquias raciais e outras normas dominantes. É por

meio de sua rejeição a essas limitações e de sua

resistência à dominação que se torna “possível ver que

os brancos [ou pelo menos aqueles investidos na

branquitude] são os mortos-vivos”.49

CONCLUSÃO

As décadas de 1950 e 1960 trouxeram um novo

significado para o velho ditado “um passo para frente,

dois para trás”. Hollywood não estava pronta para

desistir da fórmula insípida de situar o mal em lugares

negros ou entre os negros. Lembre-se, é a empregada

negra Eulabelle, em The Horror of Beach Party, que

pronuncia aleatoriamente que um monstro saído do lixo

tóxico deve ser um trabalho de vodu (negro). Assim, ao

continuar com o impulso de entender o mal e o

monstruoso como algo inspirado nos negros,

,

norte da cidade, os negros, especialmente aqueles

que vivem nas segregações elevadas e remotas do

projeto habitacional Northview Heights, precisam fazer

um grande esforço para chegar ao centro de Pittsburgh.

São obrigados a descer a colina mais íngreme da cidade,

atravessar “as planícies” e as pontes acima dos três rios

famosos de Pittsburgh — o Allegheny, o Monongahela e o

Ohio — para chegar no centro da cidade, também

conhecido como o “distrito cultural”. O distrito cultural

sedia alegremente shows da Broadway em turnê,

convenções e, ocasionalmente, até mesmo um festival

de filmes de terror. Para se conectar com os negros que

vivem, por exemplo, nas altitudes da região leste,

esforços comparáveis são necessários. Logo, não apenas

a conexão inter-racial é um desafio na antiga Cidade do

Aço, mas a união intrarracial também não é nem um

pouco fácil.

Romero fez a sua quarta produção da franquia dos

mortos em 2005 com o filme Terra dos mortos. O

comentário social de Terra tem tudo a ver com limites —

corporativo versus público, ricos versus pobres,

integrados versus marginalizados — e localização,

especialmente sobre como aqueles três rios reforçam

todas as formas de divisas e separações. Ao assistir

Terra, eu vibrei quando o frentista negro, que se tornou o

líder de uma facção zumbi rebelde, tomou o longo

caminho para sair do seu bairro. Ele mergulhou na área

em que os três rios se encontram e marchou no fundo

escuro das águas com seu exército de compatriotas

destituídos para expressar sua insatisfação, de uma

forma bem “especial”, em relação aos valores daqueles

que se encontravam do outro lado das faixas raciais, de

classe e corporativas no distrito cultural. Romero entende

Pittsburgh tão bem.

Pittsburgh também tem, de forma dúbia, me fornecido

algum capital de horror cultural para chamar de meu. Em

1982 o filme de terror Cão branco contou a história de

um cruel pastor-alemão treinado por um racista branco

para matar negros. Quando as pessoas comentam sobre

o enredo fantasioso de Cão branco, eu as recordo de

Dolpho, um pastor-alemão da polícia. Em um subúrbio de

Pittsburgh, em 2002, Dolpho teve três reclamações

registradas contra ele por negros que relataram ataques

sem provocação. As coisas chegaram ao limite quando o

cão preferiu atacar um menino negro de nove anos de

idade em vez de perseguir, sob o comando de seu

treinador branco, um homem branco suspeito de tráfico

que estava por perto.6 Dolpho foi suspenso da força

policial.

Atualmente, Pittsburgh também é o lar de um “clube

de encontros” de vampiros (mas qual cidade não é?) e

está trabalhando para expandir seu grupo de lobisomens

para pessoas como “Nicole”, que postou no grupo de

mensagens do site : “Olá,

pessoal. Tenho 20 anos de idade, sou mulher e

lobisomem. E só”. A cidade também possui a Associação

dos Caçadores de Fantasmas de Pittsburgh (PGHA), que

investiga atividades paranormais na área desde 2002. Os

“caçadores” da PGHA afirmam conhecer particularmente

um instrumento transcomunicador (ITC). Isso significa que

eles gravam “mensagens do além” (imagine Michael

Keaton em Vozes do além [2005]).7

Então, sim, o fato de eu ser de Pittsburgh, e de ser

uma fã de terror desde cedo, significa que trago uma

nova relação com, e uma perspectiva única sobre, os

filmes de terror.

DESAFIANDO O TERROR

Meu interesse nos filmes de terror e em suas narrativas

acerca de raça certamente não começam e muito menos

terminam nos filmes de Romero. Filmes como King Kong

(1933), com seus nativos de pele preta entoando “uga-

buga” e que se enamoram da pele branca, são

extraordinariamente úteis para jogar uma luz na forma

como entendemos o papel de raça, assim como

(imaginárias) práticas culturais. E nem me fale de filmes

http://werewolf.meetup.com/

como Bones: o anjo das trevas (2001), inspirados pela

cultura hip-hop, com seus temas neo-blaxploitation ao

som de rap. A corda que une todos os filmes que vou

examinar aqui é a sua habilidade de inspirar abordagens

raciais provocativas e que oferecem lições únicas e

mensagens acerca das relações raciais.

Eu mostrarei neste livro que existem muitos filmes de

terror que contribuem para a conversa sobre negritude.

Acredito que seja particularmente importante entender

que existe uma miríade de filmes de terror, geralmente

feitos por criadores negros como Spencer Williams (O

sangue de Jesus, 1941), Bill Gunn (Ganja & Hess, 1973) e

Ernest Dickerson (Def by Temptation, 1990), que exibem

temática negra, elenco negro e cenários negros que

contribuem para o conteúdo inovador do gênero.

O horror tem algo a dizer sobre religião, ciência,

estrangeiros, sexualidades, poder e controle, classe,

papéis de gênero, origem do mal, sociedade ideal,

democracia etc. Esses tópicos mudam completamente de

figura quando são examinados sob a ótica da cultura

negra. Meu ponto é: a história da negritude contada pelo

terror é interessante e complexa. Enquanto o terror às

vezes tem sido marcado pela sua reputação de “filme B”,

de baixo orçamento e/ou de gênero explorador, é

impossível negar sua capacidade única de expor as

questões e preocupações do nosso mundo social,

incluindo nossas sensibilidades raciais.8

“Uma forma de rebaixar o gênero do terror”, escreve

Hutchings, “é subestimar sua audiência […] dizendo que

as únicas pessoas que possivelmente podem gostar

desse tipo de coisa são doentes ou estúpidos (ou doentes

e estúpidos)”.9 Eu não quero desconsiderar o que para

alguns é uma “pulga atrás da orelha” no que diz respeito

aos filmes de terror. Muitos desses filmes são, realmente,

repletos de sanguinolência (a doença) e com roteiros

fracos (a estupidez). Filmes de terror raramente são

coisas dignas de vencer um prêmio no Festival de

Cannes, mas o seu público pode ser bem mais esperto do

que alguns críticos e acadêmicos imaginam. Esse público

entende que o gênero como um todo não é inerte, e que

realizadores de filmes de terror revelam algo muito,

muito mais horrorizante: que o nosso mundo e as

relações são realmente unidos por pouco mais do que

cola de peruca spirit gum.

A noite dos mortos-vivos é um clássico cult agora. Os

aficionados do gênero concordam que foi uma das

maiores contribuições de Romero para o gênero e para a

mídia. Contudo, já se passaram algumas décadas desde

que Noite exigiu que nos perguntássemos o que era mais

assustador: zumbis comedores de carne, ou aquilo que

fazemos uns com os outros diariamente.

Então, aí está. Eu obviamente acredito que o gênero

do terror tem uma grande promessa revelatória e é isso

que me move a explorar sua miríade de definições de

negritude, assim como aquilo que o gênero revela sobre

os tipos relevantes de personagens negros, em relação

aos níveis de participação dos negros em filmes e a

respeito da contribuição negra para o nosso mundo

social.

HORROR

NOIRE

INTRO

ESTUDANDO NEGROS E FILMES DE

TERROR

:01 segundo de início do filme Jurassic

Park: o parque dos dinossauros (1993): O

guarda negro sem nome #1 é empurrado

para dentro de uma cela com um

velociraptor em movimento [Oh, não.

Tome cuidado guarda negro #1!] :04

segundos depois, o guarda negro #1 é

transformado em um verdadeiro purê pelo

velociraptor.

Jurassic Park talvez tenha sido um entretenimento de

ficção científica emocionante para alguns naquele

cinema escuro em Columbia, no estado do Missouri, mas

para mim essa primeira cena de aniquilação negra

prometia um show de terror. Eu me lembro de ter

passado vários minutos em luto pelo guarda negro #1

(Jophery C. Brown), cuja morte foi testemunhada com o

único propósito de evidenciar o que todos já sabíamos —

que o velociraptor é um monstro terrível. Para se

certificarem disso, diretores como Steven Spielberg

brincam de forma sagaz com as expectativas da

audiência, incluindo a descoberta de que não há modo

melhor de mostrar a letalidade extrema de alguém, ou

algo, do que assegurar uma vitória sanguinária

,

em

detrimento de um homem negro com uma gigantesca

arma negra.

Enquanto as pessoas ao meu redor no cinema davam

risadinhas com as bizarrices do encontro entre crianças e

dinossauros, eu me sentia estranhamente

desconfortável… talvez porque eu estivesse olhando

para o cepo ensanguentado do engenheiro (negro) Ray

Arnold (Samuel L. Jackson) do Parque dos Dinossauros.

Ele também tinha sido capturado pelos dinossauros. Ray

não era o advogado desagradável, o ladrão de segredos

corporativos, ou mesmo o grande caçador, que foram

todos merecidamente devorados pelas criaturas. Assim

como o guarda negro #1, Ray Arnold era inocente;

portanto, os dois únicos personagens negros do filme

foram unidos pelo fato de terem experimentado mortes

horríveis e absolutamente injustificadas.

O objetivo dessa lembrança é revelar que, às vezes,

os negros têm uma relação bastante única com a

representação dos negros em filmes estadunidenses. Ao

assistirem um filme, alguns levam, ou vão embora

carregando, expectativas culturalmente específicas — o

que Kozol chama de “o olhar racial”1 —, esperando ver a

si mesmos como sujeitos completos, redondos e

complexos em vez de simples “ornamentos no set de

filmagem”2 ou carne humana para elevar a

sanguinolenta contagem de corpos.

Em Horror Noire: A Representação Negra no Cinema

de Terror, eu estou interessada naquilo que o terror pode

revelar, por meio das representações, sobre nosso

entendimento dos negros e dos tropos da cultura negra,

ou negritude, bem como em saber com que tipos de

discursos sociopolíticos esses filmes contribuem e quais

significados provocam. Mais ainda, eu especulo sobre os

ímpetos acerca das narrativas e imagens racializadas dos

filmes de terror. Em meus esforços para rehistoricizar e

recontextualizar os filmes de terror, eu noto como o

gênero “fala” sobre diferença. Isto é, marcando as

pessoas negras e sua cultura como o Outro — à parte

das populações e culturas dominantes (brancas) nos

Estados Unidos. O título principal do livro, Horror Noire,

funciona como uma espécie de duplo sentido. Ele

referencia o “escuro”, ou o “noire” (como em bête noire),

e ao mesmo tempo oferece um reconhecimento das

relações complexas do horror com o bem e o mal, certo e

errado, assim como um outro gênero, o filme noir,

também lida com essas questões. Contudo, este livro não

toma o filme noir como foco. Em vez disso, Horror Noire é

um título que trabalha para saudar e unir a riqueza das

formas populares de cultura oferecidas com foco nos

negros norte-americanos — que também se apropriam

da palavra francesa noir(e) para se referir a “negro” —

por exemplo: Noire Digerati, uma organização

tecnológica que foca na inclusão de negros no

desenvolvimento de jogos, computação móvel e mídia

interativa;3 ou o livro Black Noir, composto por escritores

afro-estadunidenses de histórias policiais;4 ou o site

NetNoir, um portal de notícias e política que trabalha sob

“uma perspectiva afro-estadunidense”.5

O terror é um gênero que, de acordo com Mark Reid

em Black Lenses, Black Voices: African American Film

Now, exige escrutínio quando “a diferença demoniza

personagens e cria ou resiste a noções estáticas de bem

e mal”.6 Isso não quer dizer que apenas os filmes de

terror que apresentem, ou lidem, com nossas

desigualdades sociais ou que debatam nossa hipocrisia

mereçam ser estudados. Para o escritor de livros de

terror Stephen King, aquilo que está enterrado sob a

fantasia de terror é válido o suficiente; como ele afirma:

“para início de conversa, nós entendemos que a ficção é

uma mentira. Ignorar a verdade dentro da mentira é um

pecado contra o ofício”.7 Para nos certificarmos, a

intrínseca “qualidade fantástica [do horror] produziu mais

pensamentos imaginativos, inovadores e provocadores

(bem como tortuosos e confusos) do que é por vezes

aparente naquelas áreas de representação mais

engessadas pelas exigências do realismo”.8 Por meio da

sua imaginação, inovação e inclinação à provocação, o

terror não apenas comenta sobre a cultura negra, mas,

como Clover afirma, também “dedura” a mídia

dominante, reparando seus lapsos em relação a

convenções, visões culturais e representacionais e

coragem.9

O que eu procuro evitar aqui é tratar o gênero do

terror como “uma longa cadeia de códigos imutáveis”

onde as mudanças históricas significativas são

descartadas como “pouco mais do que variações

insignificantes”.10 Outros estudiosos têm trabalhado de

forma eficiente e influente para identificar e organizar o

tratamento dos negros ao longo do tempo na cultura

popular e na mídia. Por exemplo, Brown categoriza os

tipos de personagens negros frequentemente vistos na

literatura dominante no início do século XX como

“escravo contente” ou o “livre miserável”.11 Clark12

contribuiu com uma tipologia organizada em torno da

participação negra, ou da falta dela, na mídia. Ele

identifica representações recorrentes e modismos como

o “não reconhecimento” (ou ausência) e o “ridículo”.

Nelson13 e Coleman14 focam nos sitcoms de televisão

para providenciar uma rubrica que elucida o impacto

sociopolítico dos discursos de mídia que incluem as

mensagens nas entrelinhas de “separados mas iguais” e

“assimiladores”. Em Horror Noire, eu comecei a apreciar

essas e outras contribuições organizacionais

importantes, enquanto inovo meu próprio exame

histórico — década por década — da participação negra

no gênero dos filmes de terror.

Ainda assim, tomei bastante cuidado para não

encaixar forçosamente este histórico dos filmes de terror

em décadas. Contudo, a posteriori, minha análise

realmente revelou um ciclo de representações que

coincide com a ascensão e queda dos rumos

sociopolíticos em cada década, e apresento aqui meu

entendimento e a minha interpretação dos eventos.

Ainda que delineado por década, o gênero do terror

apresenta tanto tendências de longa duração e que

atravessam eras quanto alguns modismos temporários.

Eu trabalho bastante para notar exemplos de cada um.

O TERROR COMO UM GÊNERO (RESISTENTE)

A questão imediata, dada a constante simultânea (por

exemplo, medo e violência) e a natureza flexível (por

exemplo, bom gosto e estética) do gênero, é: “O que,

então, constitui um filme de terror?”. É válido notar de

imediato que discutir o que entra ou sai dos limites de

um gênero é um processo complexo, quiçá impossível e,

às vezes, infrutífero. Hoje, especialmente na era da

multimídia e das novas mídias tecnológicas, limites

puristas e genéricos são extremamente difíceis de ser

definidos. Seria um filme de terror, um filme de verdade,

apenas se estiver, vamos dizer, numa tela de cinema

hollywoodiana, ou podemos aceitar agora que o terror

encontrou sua casa em telas cada vez menores (como as

tecnologias digitais portáteis)? Pode o filme de terror ser

feito não apenas por grandes estúdios, ou estúdios

independentes, mas também por um ou dois indivíduos

com uma câmera digital, um roteiro que de roteiro não

tem quase nada e orçamento zero? O Jurassic Park, por

exemplo, seria um filme de aventura, ficção científica,

uma comédia, ou todas as opções ao mesmo tempo?

Continuando com o exemplo de Jurassic Park, o filme se

aproximaria da categoria de terror por causa dos seus

monstros assassinos, do sentimento de medo que causou

ou mesmo porque ao menos uma pessoa da plateia o

interpretou como um filme de terror com base em sua

crença de que a taxa de mortalidade entre as pessoas

negras no filme, embora baixíssima, seja assustadora?

Essas questões revelam que, mesmo juntando mídia,

produção e recepção, não é possível conseguir uma

definição clara.

Hutchings, em seu livro The Horror Film, está certo em

sua observação de que as definições são fugidias: “quais

filmes são terror e quais filmes não são é uma questão

que continua sendo uma incógnita […], talvez a

característica mais emocionante e impressionante do

cinema de horror nesse aspecto seja que, assim como

um de seus monstros metamorfos,

,

o gênero está sempre

mudando, sempre em processo”.15 Contudo, aceitar a

inconclusão é insatisfatório aqui, já que, dentro do

contexto deste livro, é útil abordar pelo menos algum

entendimento sobre o que seria, e o que não seria, um

filme de terror.

Certamente, a noção de gênero e a prática de

distribuir tipologias, especialmente dentro do terror, são

“particularmente contestadas”.16 Hoje, nosso

entendimento de gênero vai além das noções iniciais

aristotélicas/Poética e daquelas de Northrop

Frye/Anatomia da crítica17 de desafiar as fórmulas e

convenções distintas e separadas das formas de arte

para criar um sistema classificatório. Em vez disso, o

gênero tem muito a ver com o poder heurístico que

envolve a nomeação de “algo”, e também se relaciona

com eufonia sociopolítica. Ao “nomear algo”, Gateward

nos ajuda a revelar a profundidade do problema; como

ela aponta: “na verdade, existem tantos filmes de

vampiro com tantas convenções compartilhadas em

relação a temas e personagens, que o filme de vampiro

acabou se tornando um gênero por si só”.18 O mesmo

pode ser dito sobre negros em filmes. Isto é, existem

tantos filmes exibindo a negritude, compartilhando de

tantas convenções, que filmes negros se tornaram um

gênero por si só.19

Marcar ou nomear alguma coisa, no fim das contas, é

intrinsecamente perigoso porque pode subordinar ainda

mais essa coisa (como a figura da mãe versus a mãe que

depende da ajuda do governo).* Contudo, a nomeação

de algo contém o potencial de ser politicamente

poderoso e pode funcionar para expor materiais de

qualidade que teriam permanecido invisíveis de outra

forma. Por exemplo, existem categorias úteis e criativas

criadas em reconhecimento aos motivos recorrentes e

papéis disponíveis para a negritude. Quando chamamos

certos filmes de “blaxploitation”, por exemplo, a

nomenclatura serve tanto para expor uma certa

categoria de filmes cheia de estereótipos sobre as

relações raciais, papéis de gênero, sexo e violência, e

também funciona como uma crítica em relação àqueles

que criaram os estereótipos, a economia política

(investimentos financeiros, distribuição e marketing) por

trás de tais esforços, e a recepção e o grande impacto

cultural que as imagens contêm dentro e fora do escopo

da negritude. Categorias adicionais, guiadas pelo

consenso cultural, impacto social, assunto tratado, estilo,

técnica ou qualidade, continuam a surgir a todo

momento, como os “filmes de gueto”, tipo Os donos da

rua (1991) ou Perigo para a sociedade (1993). De forma

compreensível, muitos se recusam a categorizar filmes

por meio de alguma espécie de raciologia. Esse tipo de

alocação corre o risco de criar uma sobredeterminação

de todas as formas de variáveis das diferenças, como

visão de mundo, classe, sexualidade, gênero etc. Ainda

assim, David Leonard criou um argumento convincente e

persuasivo para delinear filmes negros a fim de facilitar o

estudo em Screens Fade to Black: “é preciso analisar o

cinema negro como um fenômeno em si — como algo

que possui a sua própria história, tradição cultural e

normas expressivas (africanismo, tradição oral, estilo

narrativo, espiritualidade, sincretismo, hibridização)”.20

Assim sendo, o que, então, é o terror conceitualizado

aqui? Eu tomo a discussão de Phillips acerca das

definições em seu livro Projected Fears: Horror Films and

American Culture.21 Nessa obra, ele argumenta que o

terror, como um gênero, é marcado por aquilo que é

reconhecível instantaneamente como aterrorizante;

aquilo que corresponde a nossa compreensão e

expectativa do que é aterrorizante; e por aquilo que é

discutido e interpretado como sendo parte do terror.

Isabel Christina Pinedo, em Recreational Terror: Women

and the Pleasure of Horror Film Viewing, sintetiza de

forma hábil a variedade das considerações acerca do

terror, definindo o gênero de acordo com cinco

descritores: (1) o horror perturba o mundo corriqueiro;

(2) infringe e viola limites; (3) incomoda a validez da

racionalidade; (4) resiste aos fechamentos narrativos; e

(5) trabalha para evocar o medo.22 Na verdade, neste

livro, eu acredito que seja mais proveitoso abordar o

nosso entendimento dos filmes de terror por meio de um

apanhando de considerações. Ao fazê-lo, eu tento evitar

as armadilhas e os limites de estabelecer categorias

fixas, enquanto dou crédito à ambiguidade e abertura

textual ou polissemia.

Há muito o que considerar quando exploramos o

terror, e existem limites em minha análise. Em minha

abordagem crítica cultural/crítica racial, eu notavelmente

omito o psicanalítico, além da ênfase na agressão e na

violência, que contribuíram na definição de um

conhecimento sobre os filmes de terror. Meu

questionamento sobre identidade cultural e mensagens

mediadas apresenta um interesse diferente daquelas

questões focadas nos efeitos do terror e da violência

sobre a psicologia e o desejo de sangue dos

telespectadores reais. Enquanto o meu desinteresse em

relação à psicanálise é guiado pelas minhas questões

culturalmente focadas, Hutchings apresenta uma

perspectiva mais pessimista das leituras psicanalíticas,

descrevendo tais críticas cinematográficas como

“profundamente problemáticas”, em grande parte por

causa de seu embate naquilo que se refere a “noções de

coletividade, economia, tecnologia, história, raça e

classe”.23 Jonathan Lake Crane, em Terror and Everyday

Life, também expressa dúvidas acerca do foco em

“violência nas telas […] desejo libidinoso ou qualquer

outro tipo de agitação psíquica”.24

Outra marca do gênero de terror é a sua

complexidade. Assim como é capaz de fornecer as

narrativas mais empolgantes, heroicas e imaginativas, o

terror também pode produzir filmes de violência

assustadora, repugnante e indescritível. Não é possível

ignorar que as violências psíquicas e emocionais são

frequentemente centrais no gênero. Enquanto filmes

(hiper)violentos e dramáticos dos gêneros de guerra,

crime e suspense, como Pulp Fiction: tempos de

violência, O resgate do soldado Ryan e Onde os fracos

não têm vez são aclamados criticamente e poupados dos

desvios acadêmicos em pesquisas experimentais sobre

agressão e perturbações psicológicas, é impossível

ignorar a dependência que o horror guarda na violência

como ferramenta narrativa. É reconhecido aqui que não é

apenas o derramamento de sangue que constitui um

filme de terror, mas “o contexto niilista no qual a

violência ocorre”.25 É fácil perceber como a violência do

filme de terror veio a ser vista como algo esvaziado de

qualquer valor elucidativo. Talvez tenhamos que

agradecer aos filmes de assassinos sanguinolentos por

isso (por exemplo, Baile de formatura [1980]). Contudo, o

que observamos aqui é que, muitas vezes, a violência no

terror e na negritude trabalham juntas para prover

incursões discursivas importantes, como a violência

exibindo algum tipo de “retorno do re/oprimido”. Aqui, a

violência, seja ela gratuita ou assertiva, não irá encobrir

as narrativas revelatórias de negritude que os filmes de

terror têm para oferecer.

NEGROS NOS FILMES DE TERROR

(VERSUS FILMES NEGROS DE TERROR)

Este livro contribui para o diálogo acerca do filme de

terror ao oferecer duas categorias adicionais para o

léxico. A primeira é filmes de terror “com negros” e a

segunda é “filmes negros” de terror.

Filmes de terror “com negros lidam com a população

negra e a negritude no contexto do terror, ainda que o

filme de terror não seja completamente ou

substancialmente focado em um ou outro. Contudo,

esses filmes possuem um poder discursivo particular em

seu tratamento da negritude. Esses filmes de terror

geralmente são produtos de grandes estúdios, embora

não universalmente. Eles têm sido produzidos, histórica e

tipicamente, por pessoas não negras para o consumo

mainstream. Filmes de terror “com negros” apresentam

algumas das imagens mais importantes para se entender

como a negritude é representada. Exemplos de filmes de

terror “com

,

negros” que serão discutidos neste livro

incluem King Kong (1933), A noite dos mortos-vivos

(1968), A maldição dos mortos-vivos (1988) e O mistério

de Candyman (1992). O elo que une muitos desses

filmes, primeiramente, é que eles tendem a provocar um

consenso do que constitui um filme de terror — eles

perturbam nossas noções de uma vida racional,

mundana e segura. Em segundo lugar, esses filmes

contribuíram de maneira significativa para as discussões

e debates em relação não apenas à negritude, mas

também à sua proximidade com interpretações acerca do

que é aterrorizante e onde ela é incorporada. Esses são

filmes que frequentemente “codificam o monstro como

um Outro racial associado a uma poderosa religião

selvagem”.26 Na verdade, nós vemos o Outro racial em

filmes como O mistério de Candyman, e a religião negra

como selvagem e poderosa em A maldição dos mortos-

vivos. Além disso, esses filmes são “mais

hiperbolicamente preocupados do que nunca com a

questão da diferença” (citado em Grant 2).27

Não estão incluídos neste livro os filmes de terror que

não fornecem uma percepção significativa relacionada ao

legado que une a negritude com o horrorizante. Excluí os

filmes nos quais personagens negros são incidentais ou

estão ali só para marcar presença, e dos quais algum

comentário sobre a negritude também está ausente —

exceto para dizer que se trata de algo com pouca

relevância. A inclusão de filmes como Chamas da

vingança (1984) ou O mestre dos desejos (1997), em que

os negros são relegados “ao status de vítimas,

personagens descartáveis amplamente

subdesenvolvidos”,28 foi omitida desta análise. Contudo,

aqui foram incluídos casos de filmes que falam muito

sobre negritude, ainda que por meio de sua exclusão. A

omissão completa dos negros e da negritude revela

muito sobre a nossa cultura estadunidense em diferentes

pontos da história. Por exemplo, existem razões

intrigantes para o fato de haver poucos — ou uma total

ausência de — negros nos subúrbios da década de 1980

em que monstros como Freddy Krueger e Michael Myers

caçavam e eram caçados. Isso significa que um filme não

precisa ter um personagem negro para dizer algo sobre

ou contra a negritude. As discussões a respeito de filmes

que parecem oferecer metáforas raciais também serão

incluídas. O monstro da lagoa negra (1954), em

particular, é um filme que não possui uma presença

negra significativa em tela, mas merece atenção por

exibir o herói branco ocidental moderno cuja missão

primordial é proteger uma mulher branca similarmente

situada de um monstro negro primordial.29

Também é válido levar em consideração as noções de

aparência do bem e do mal em um filme. Isso quer dizer,

por exemplo, que existem alguns contribuintes para a

categoria de filmes de terror “com negros” que merecem

a nossa atenção por causa de sua significativa

contribuição para o nosso entendimento do negro-como-

monstruosidade. O nascimento de uma nação (1915), o

épico pró-Ku Klux Klan da Guerra Civil, é um filme que

elenca os negros de forma escandalosa como figuras

horríveis — eles são monstruosos, bichos-papões

selvagens (frequentemente homens) que possuem

práticas culturais perturbadoras. Logo, neste livro, a

definição de filmes de terror “com negros” pode ir além

das expectativas tradicionais daquilo que constitui um

filme de terror para revelar — em forma e processo —

que aquilo que aterroriza é solidificado na imaginação.

Alguém irá se perguntar inevitavelmente por que este

ou aquele filme não entrou no livro. O critério para a

inclusão que foi empregado aqui se relaciona à saliência

em exemplificar as eras históricas e os temas que os

próprios filmes trabalharam para criar e informar. O

objetivo não é ser enciclopédico.

FILMES NEGROS DE TERROR

(VERSUS FILMES DE TERROR COM NEGROS)

Existe um segundo tipo de filme tratado neste livro, os

“filmes negros” de terror. Filmes negros de terror são

constituídos por muitos dos mesmos indicadores dos

filmes de terror, como a perturbação, monstruosidades e

medo. Contudo, filmes negros de terror são filmes

“raciais” na maioria das vezes. O que significa que

possuem um foco narrativo adicional que chama a

atenção para a identidade racial, nesse caso, a negritude

— cultura negra, história, ideologias, experiências,

políticas, linguagem, humor, estética, estilo, música e

coisas do tipo. Filmes negros, diz (e acautela) Cripps:

[…] têm um produtor, diretor e escritor, ou

artistas negros; que falam com o público negro

ou, de forma incidental, com o público branco

possuidor de curiosidade sobrenatural, atenção

ou sensibilidade em relação aos assuntos

raciais; e isso emerge de intenções conscientes,

sejam elas artísticas ou políticas, para iluminar a

experiência afro-estadunidense. […] Se

fôssemos trazer essa definição para âmbitos

mais pontuais, nós iríamos discutir eternamente

sobre quem tem o direito de participar da

dança.30

Em resumo, os negros podem aparecer em todos os tipos

de filmes de terror, mas os próprios filmes podem não ser

negros em si, em relação ao criador, público ou a

experiência que apresentam. É válido notar o

apontamento que Yearwood coloca de que a compleição

do criador do filme e do público não são medidas

suficientes para se definir um filme negro, seja de terror

ou não. O filme negro trata sobre a experiência negra e

as tradições culturais negras — um meio cultural e

histórico negro girando e impactando as vidas negras nos

Estados Unidos. Embora seja difícil definir um filme

negro, isso não quer dizer que ele não exista, apenas que

é algo dinâmico de onde novas estéticas e limites

surgem.31

Neste livro, Def by Temptation (1990) é um “filme

negro” de terror. É feito por produtores negros: James

Bond III é o autor, diretor e produtor, e Ernest R.

Dickerson é o diretor de fotografia. Apresenta um elenco

todo negro, incluindo Bond, Kadeem Hardison e Samuel

L. Jackson. Ele saúda o público negro ao apresentar

cantores de R&B, como Melba e Freddie Jackson, e lida

com tropos específicos da cultura negra — invoca rituais

das igrejas sulistas negras, espaços negros urbanos,

performances de masculinidade negra, vernáculos

negros, música, estilo e outras características estéticas.

Contudo, é importante notar que nem todos esses

elementos precisam estar presentes para que um filme

seja “negro”.

Ao contrário, existem filmes de terror que voltam sua

atenção para a negritude, mas falham em ser filmes

negros. As criaturas atrás das paredes (1991) é oferecido

por um criador de imagens não negro (Wes Craven). O

filme é notável por ter o personagem “Fool”, uma criança

negra ladra, como protagonista. Mas a produção também

estrela um casal branco incestuoso, “Mãe” e “Pai”, que

são os antagonistas grotescos. As criaturas atrás das

paredes exibe Mãe e Pai como senhores do gueto em um

bairro pobre predominantemente negro. Além dos negros

criminosos e negros pobres, o foco narrativo recai em

cima de Mãe, Pai e de uma “filha” branca, Alice, que foi

sequestrada e sujeitada a abusos. Assim sendo, As

criaturas atrás das paredes trata da branquitude com um

elenco e uma equipe majoritariamente brancas, assim

como seu impulso textual. Pelas minhas contas, trata-se

de um esforço do tipo filmes de terror com negros.

Contudo, o ponto de igualdade entre os dois filmes, Def e

As criaturas, é que, como argumenta Tony Williams,

assim como vários outros filmes de terror, ambos contêm

“temas altamente relevantes para o público que ocupa

uma posição marginal na sociedade”.32

Outro filme dirigido por Wes Craven, Um vampiro no

Brooklyn (1995), foi escrito pelos afro-estadunidenses

Eddie e Charlie Murphy e Vernon Lynch. O filme estrela,

além de Eddie Murphy, os atores negros Angela Bassett,

Allen Payne, Kadeem Hardison e John Witherspoon. A

produção conecta o Caribe com uma vizinhança negra no

Brooklyn, apresenta formas de arte negras e conta com

um humor derivado culturalmente. Aqui, Um vampiro

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